"PL do estuprador" deve reduzir denúncias de estupro ao dar maior punição à vítima
Uma menina de 12 anos ficou grávida do avô em Mossoró, cidade que fica a pouco mais de 4h de distância de Natal (RN). A criança levou a gestação adiante e o homem, que deveria protegê-la, encontra-se foragido atualmente. Esse é apenas um dos muitos casos registrados pelo Conselho Tutelar da cidade.
Se quisesse denunciar o avô e interromper a gravidez, a depender do mês da gestação, a criança do caso acima poderia sofrer uma penalidade maior do que a do próprio avô que a violentou. É o que prevê o Projeto de Lei 1904/ 2024 (PL 1904), apontado como "PL do estuprador", que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados e que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio.
“Qual o tipo de segurança que a vítima adolescente terá, já não basta ela ter passado por todo esse ato tão cruel e marcante, ainda querem fazer com a vítima pague por algo que é um crime e que não foi cometido por ela? É um retrocesso! E todo o trabalho desenvolvido com a sociedade para esclarecer que a vítima não é culpada, será enterrado! É um verdadeiro absurdo!”, avalia Jennifer Gemayma, que atua como Conselheira Tutelar em Mossoró.
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O PL, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL) e mais 32 parlamentares, fixa em 22 semanas de gestação o prazo máximo para abortos legais e aumenta de dez para 20 anos a pena máxima para quem fizer o procedimento, mesmo nos casos em que a prática está prevista legalmente.
“Esse PL sendo aprovado, além de criminalizar as mulheres, vai gerar medo e agravar ainda mais a subnotificação de casos de estupro no Brasil. Já é uma situação de muita vergonha para as mulheres que passam por isso, a falta de informação das meninas e das famílias que têm medo da exposição pública. A gente sabe que 60% das vítimas de estupro no Brasil têm menos de 13 anos e que essa violência acontece muitas vezes dentro de casa. É um ataque bárbaro aos direitos humanos das mulheres e da democracia”, alerta Claudia Gazola, integrante do Coletivo Leila Diniz e da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), arquiteta e urbanista.
Como é hoje
Atualmente, não há um tempo máximo de gestação para a realização do aborto legalmente. O procedimento está previsto nos casos de estupro, de risco de vida à gestante e de anencefalia fetal (quando o feto não desenvolve o cérebro).
O Código Penal estabelece pena de detenção de um a três anos para a mulher que aborta; reclusão de um a quatro anos para o médico ou outra pessoa que provoque aborto com o consentimento da gestante; e reclusão de três a dez anos para quem provoque aborto sem o consentimento da gestante.
Caso o PL 1904/2024 seja aprovado, a pena máxima para esses casos – e também no caso de gravidez resultante de estupro – passa a ser de seis a 20 anos nos casos de abortos cometidos com mais de 22 semanas de gestação, uma pena igual à do homicídio.
PL oprime denúncias
Caso seja aprovado, além de punir mais a vítima do que o estuprador, o PL também vai interferir nas iniciativas de denúncia, aumentando as subnotificações e a impunidade.
“Hoje já há o medo de ser responsabilizado pela denúncia e isso deve aumentar com o PL, que traz a ideia de que a pena da vítima deve ser maior do que a do agressor, já é um ponto para a pessoa não querer denunciar... é ilógico, tanto que está sendo chama de PL do estuprador!”, pondera Gilliard Laurentino, assessor técnico do Cedeca (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente) Casa Renascer.
“Se analisarmos o processo de alienação parental que já temos atualmente, essa legislação se torna extremamente cruel! A lei da alienação parental traz que denúncia caluniosa de violência sexual gera reversão de guarda. Apesar da lei dizer que, em caso de suspeita, a pessoa é obrigada a denunciar, o que acontece é que quando não é comprovado, muitos pais acabam entrando com pedido de reversão da guarda. A mãe que denuncia em busca de proteger sua filha, muitas vezes, não o faz com medo de perder a guarda e a criança acabar ficando com seu algoz”, esclarece Gilliard Laurentino.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 apontaram o Rio Grande do Norte como 3º estado do Brasil com maior alta de casos de estupro e estupro de vulnerável, que passaram de 696, em 2021, para 881, em 2022.
“Essa legislação [do PL na Câmara dos Deputados] vai seguir o mesmo princípio [da lei da alienação parental]. Essa lei dá ao estuprador a chance de ser pai enquanto as leis que regem o Estatuto da Criança e do Adolescente dizem que o genitor que estupra a filha não tem direito de ser pai, há a destituição imediata do poder familiar. Já sabemos que a menina quando sofre violência doméstica, na maioria dos casos, só descobre a gravidez quando já está em um estágio bem adiantado. Se ela estiver na 16ª semana, por exemplo, e solicitar o aborto, considerando o tempo de transcorrer todo o processo legal, quando sair a resposta ela já terá passado da 22ª semana e os juízes vão lhe negar esse direito”, alerta Gilliard.
No Brasil, são feitas 56 mil denúncias de estupro de vulnerável por ano. São 153 casos por dia e seis a cada uma hora, segundo contagem do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“É você olhar e obrigar a vítima a reviver seu estupro diariamente. Ela que vai carregar a criança, amamentar, levar ao hospital. Causa uma nova violência, como se não bastasse a que ela nunca deveria ter passado. Essa legislação deveria ter sido derrubada antes mesmo de ser pensada. São homens, mais uma vez, definindo o que fazer com o corpo da mulher”, condena o assessor técnico do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, que também acompanha os casos de violações contra crianças e adolescentes.
Natal protesta
Em Natal, as mulheres vão às ruas da capital potiguar neste sábado (15), a partir das 14h, contra a proposta. A manifestação está marcada para acontecer no Shopping Midway Mall.