Com vácuo na atuação Federal, Nordeste busca saídas desenvolvimentistas para a crise
Natal, RN 26 de abr 2024

Com vácuo na atuação Federal, Nordeste busca saídas desenvolvimentistas para a crise

3 de novembro de 2020
Com vácuo na atuação Federal, Nordeste busca saídas desenvolvimentistas para a crise

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No livro “Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado” (Todavia, 2020), a economista Laura Carvalho é objetiva: a crise obrigará a sociedade brasileira a repensar o papel do Estado na sociedade e na economia, e não haverá recuperação econômica sem investimentos do setor público. Em um país marcado pela desigualdade no desenvolvimento regional e no qual muitos dos Estados já se encontravam em crise fiscal antes da pandemia de coronavírus, governos estaduais tentam preencher por conta própria o vácuo provocado pela ausência de um plano nacional de retomada econômica. 

Em nível federal, o Governo se mostra cada vez mais contrário à possibilidade de “furar” o teto de gastos e ainda não apresentou nenhum plano amplo voltado para a geração de empregos e recuperação econômica do país, além do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso Nacional e que deve ser encerrado em dezembro. Enquanto isso, na região Nordeste, Estados como Maranhão, Rio Grande do Norte e Paraíba intensificaram a agenda de lançamentos de ações com viés desenvolvimentista, abrangendo investimentos em infraestrutura, qualificação de serviços públicos e garantia de crédito para micro e pequenos empreendedores, na contramão da agenda liberal nacional. 

A agência Saiba Mais investigou como esses e outros Estados da região estão trabalhando para superar a crise econômica provocada pela pandemia. No Maranhão, o “Plano Celso Furtado”, lançado pelo governador Flávio Dino (PCdoB), é o mais evidente contraponto ao Governo Federal: foi batizado em homenagem ao economista paraibano Celso Furtado, que sempre enfatizou o papel do Estado para o desenvolvimento da nação, oposto da visão pregada pelo ministro da Economia Paulo Guedes. 

O plano prevê um investimento imediato de R$ 588 milhões em obras e compras públicas, além de medidas fiscais como anistias, parcelamentos, descontos em multas e juros de créditos tributários. O objetivo, de acordo com o Governo do Maranhão, é gerar 63 mil postos de trabalho até o final de 2020.

“Não há dúvidas de que o auxílio emergencial de R$ 600 aprovado pelo Congresso Nacional é muito importante. Imprescindível. Porém, não é suficiente”, disse o governador Flávio Dino durante a live de lançamento do programa no início de outubro. 

Governador do Maranhão Flávio Dino (PCdoB) no lançamento do plano Celso Furtado (foto: Assecom/MA)

Ele destacou que o auxílio tem um papel importante para a reativação da economia, ajuda a movimentar o setor de comércio e, consequentemente, a manter os empregos ativos. "Tenho enfatizado, há algumas semanas, a necessidade de um Pacto Nacional pelo Emprego. Infelizmente, até aqui, o Governo Federal não manifestou adesão à essa ideia de um diálogo nacional amplo. Isso é urgente, e o debate nacional está desfocado em relação ao que os outros países do mundo estão fazendo", disse.

À Agência Saiba Mais, o governador, que é um dos nomes cotados para as eleições presidenciais de 2022, reiterou o compromisso com a agenda desenvolvimentista, e defendeu a criação de uma política de renda mínima nacional.

“O Brasil precisa estabelecer uma política de Renda Mínima complementar à renda do trabalho”, comentou Dino. 

Na Paraíba, a administração estadual adotou uma política similar. O Governo do Estado apresentou um plano de investimentos em obras públicas para reativação da economia e geração de empregos. Serão R$ 601,7 milhões em recursos próprios investidos em 32 obras com ordem de serviço para início imediato, 41 que já estavam licitadas mas foram interrompidas durante a pandemia, e 130 novas obras que ainda serão licitadas dentro do plano. Estão previstos hospitais, um novo aeroporto na cidade de Patos, unidades habitacionais e outros empreendimentos. 

Governado por Fátima Bezerra (PT), o Rio Grande do Norte também apresentou uma agenda de investimentos visando a retomada econômica. Diferente da Paraíba e do Maranhão, as ações não vieram em um pacote único, mas em uma série de iniciativas lançadas ao longo dos últimos meses, que visam "destravar" obras paradas, iniciar novos projetos e oferecer incentivo para alguns dos setores mais afetados e que vão demorar mais a se recuperar, como é o caso do setor de turismo, que reúne 39 atividades econômicas em cadeia no Estado. 

Governadora Fátima Bezerra lançou ações por etapas para destravar obras paradas e outros projetos (foto: Assecom/RN)

Em julho, o Governo do RN anunciou um plano de recuperação de 90% das rodovias do Estado, com investimentos de R$ 17 milhões. Além disso, firmou Termos de Ajustamento de Gestão (TAG) junto ao Tribunal de Contas do Estado para retomar obras que estavam paradas, como é o caso da Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão (EDTAM) e Forte dos Reis Magos. Outras iniciativas, como o Credjovem, que incentiva o empreendedorismo jovem com a abertura de linhas de crédito, também foram encampadas em nível estadual.

A tese que defende a participação do Estado para a recuperação de crises não é novidade: na década de 1930, o economista britânico John Maynard Keynes ficou famoso por elaborar a teoria que dizia que, para evitar recessões, o Governo teria um papel fundamental no incentivo ao consumo das famílias e o investimento das empresas. Isso poderia acontecer de duas formas: tanto através da política monetária, com a redução de taxas de juros, por exemplo, quanto da política fiscal, com o aumento de gastos públicos para possibilitar a geração de empregos e recuperação econômica. 

No Rio Grande do Norte, o titular da Secretaria do Estado de Planejamento e Finanças, Aldemir Freire, explica que a prioridade, inicialmente, é tentar garantir a manutenção da renda da população. Para isso, o pagamento do salário dos servidores do Estado em dia, do auxílio federal e do novo auxílio que começará a ser pago pelo Governo do Estado aos trabalhadores da cultura com recursos da Lei Aldir Blanc, serão importantes. 

Em seguida, vêm as ações voltadas para garantir a segurança alimentar, que costuma aumentar durante as recessões, aliado ao suporte às empresas. Recentemente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o estudo "Análise da Segurança Alimentar do Brasil", que revela que a proporção dos domicílios com segurança alimentar entre os anos de 2017 e 2018 já estava abaixo dos resultados identificados em 2004 no país .

“Demos isenção fiscal ao pessoal do setor hoteleiro, isenção sobre energia para pessoas do transporte, ampliamos o crédito da Agência de Fomento do RN. Por fim, você precisa de programas que aumentem a demanda, e aí entram os investimentos”, diz o secretário.

Estados cobram do Governo Federal "estratégia de país" para sair da crise

Para o secretário de Estado de Planejamento e Finanças Aldemir Freire não há alternativa sem o socorro financeiro da União

Essas medidas, no entanto, prevêem uma ação ampla, com participação ativa do Governo Federal. Dentre os Estados, o vácuo da presença da União é sentida.

“A agenda nacional tem se ocupado de cortes e mais cortes, quando outros países estão fazendo financiamento monetário, produzindo recursos e utilizando recursos disponíveis para estimular o setor privado, os micro e pequenos empreendedores”, ressaltou o governador Flávio Dino. 

Em “Curto-circuito”, Laura Carvalho ressalta que a crise ajudou a revelar cinco funções do Estado: a função de estabilizador da economia; investidor em infraestrutura física e social; protetor dos mais vulneráveis; provedor de serviços à população e, por fim, empreendedor. De acordo com ela, o setor privado por si só não tomaria a iniciativa para investir em um cenário de crise e, portanto, não seria capaz de dar uma resposta sozinho ao momento sem apoio estatal.

No Rio Grande do Norte, onde o próprio pagamento em dia dos salários dos servidores públicos do Estado não era uma realidade até 2019, o secretário de administração e finanças é categórico ao afirmar que o Estado não será capaz de sair da crise sozinho. “Não existe saída exclusiva do Rio Grande do Norte ou de nenhuma outra unidade federativa. Nenhum Estado é capaz de fazer essa solução sozinho. É preciso uma estratégia de país”, disse Aldemir. 

Estados se aproximam de limite de investimentos

O investimento estatal em obras como as que estão sendo feitas nos Estados do Maranhão, Rio Grande do Norte e Paraíba tem aquilo que os economistas chamam de “efeito multiplicador”.

“Investimentos em infraestrutura, como estradas, hospitais, escolas e moradia, tendem a dinamizar a economia. O Estado gasta R$ 10 milhões, mas gera um efeito de R$ 15 milhões, digamos, porque aquilo que ele gasta vai fazer com que outras pessoas também invistam e saiam ganhando”, explica o professor de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), William Eufrásio.

Na prática, isso se traduz da seguinte forma: em uma obra, por exemplo, além dos trabalhadores de construção, vai haver demanda por fornecimento de alimentação, equipamentos de proteção, fardamento e todos os demais serviços necessários aos profissionais que vão executar aquele projeto. Tudo isso ajuda a dinamizar a economia, e amplia o impacto do investimento inicial. 

Apesar das ações individuais que vão nesse sentido, a capacidade de investimento dos Estados é limitada. Muitos, como é o caso do Rio Grande do Norte, ainda lutam para equilibrar sua situação fiscal. Houve uma queda brusca na arrecadação com a interrupção das atividades comerciais durante a pandemia, e os repasses do Fundo de Participação dos Estados (FPE) continuam em queda. No projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021 enviado à Assembleia Legislativa pelo Governo do RN, por exemplo, há previsão de déficit de R$ 920 milhões para o orçamento de 2021. 

Além disso, os setores mais atingidos pela crise, como é o caso do setor de serviços, são os que mais empregam no Estado: 71,14% dos postos de trabalho criados entre 2004 e 2014 integram a área de serviços, como destaca o boletim "A pandemia de Covid-19 e o nível de emprego nos municípios do Rio Grande do Norte", elaborado pelo professor William Eufrásio e Caio Fernandes, mestrando em economia da UFRN.

Nesse cenário, o Estado aparece não apenas como "garantidor último", dizem os pesquisadores, mas "como fator essencial ao processo de reativação da demanda efetiva, da manutenção das condições mínimas de operação dos mercados, incentivador do mercado de trabalho e garantidor do direito fundamental à vida".

No Rio Grande do Norte, o caminho encontrado diante da situação fiscal é a partir dos empréstimos internacionais. A maior parte das ações executadas para retomar e iniciar obras públicas, por exemplo, vieram com recursos obtidos a partir do Governo Cidadão junto ao Banco Mundial, graças a um convênio antigo, de 2013, que já teve seu prazo prorrogado uma vez pela atual gestão. 

Os gestores reclamam que as regras para obtenção de empréstimos junto às instituições internacionais demandam autorização do Governo Federal, que considera a Capacidade de Pagamento (CAPAG) como critério para concessão dessa autorização. Para cada Estado, a CAPAG é calculada a partir de sua situação fiscal, e é concedida uma nota: A, B, C ou D.

Dados da plataforma Tesouro Transparente mostram que a nota para o RN é C - insuficiente para obtenção do aval do Governo e, portanto, a capacidade de investir para reativar a economia é cada vez mais limitada. Dos 9 Estados da Região Nordeste, apenas Ceará, Paraíba e Alagoas possuem nota B, que permite autorização para obtenção dos empréstimos. Todos os demais, apresentam nota C.

Fernando Mineiro: "o investimento público tem papel fundamental no enfrentamento à crise"

O secretário extraordinário para Gestão de Projetos e Metas do RN, Fernando Mineiro, assinala que uma discussão importante deve acontecer no Congresso Nacional sobre o tema nas próximas semanas com a volta do debate sobre o Plano Mansueto. O Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal, que ficou conhecido como "Plano Mansueto", levado ao Congresso em dezembro de 2019, foi modificado e deverá voltar à pauta de acordo com a Câmara. 

O programa é temporário e de curto prazo, e visa permitir que Estados e municípios com notas de CAPAG inferiores a A e B possam ter acesso a empréstimos com garantias da União, em troca de um plano de ajuste fiscal para recuperar suas finanças até 2022.

“Esse é o debate nacional mais relevante em relação à capacidade de investimento dos Estados e municípios em curso”, destaca Mineiro. “O investimento público tem um papel fundamental no enfrentamento à crise que estamos vivendo. A pandemia colocou em xeque todo o discurso que se fazia nas últimas décadas sobre o papel do Estado”, completa. 

"O modelo da nossa economia não prioriza a vida", diz artesã e militante da Economia Solidária

Maria Dantas (centro) com mulheres da “Rede de Sonhos” de economia solidária. (foto: cedida)

Se para muitos economistas e gestores a pandemia permitiu lançar um novo olhar para o papel dos investimentos estatais na recuperação da crise econômica, para os grupos que já estavam às margens da economia capitalista, ela evidenciou a necessidade de pensar uma mudança nas prioridades de investimento desse mesmo Estado. 

Aos 60 anos, Maria Dantas de Melo, artesã e militante da Economia Solidária, que participou da elaboração do Plano Estadual de Economia Solidária, lançado em setembro pelo Governo do Estado, afirma:

“O modelo atual da nossa economia não prioriza a vida. A pandemia deixou isso claro. É por isso que estamos lutando mais do que nunca para mostrar que existem alternativas possíveis”. A Economia Solidária ganhou destaque nos planos de recuperação econômica de dois Estados nordestinos: Bahia e Rio Grande do Norte. 

A Economia Solidária prioriza a formação de associações ou cooperativas produtoras de diversos itens, de alimentos a peças de vestuário ou artesanato. Os preços dos produtos são decididos coletivamente e a produção é artesanal. No RN, os grupos da Ecosol deverão receber R$ 780 mil para produzir os 200 mil lençóis necessários para a rede hospitalar do Estado. Além disso, de acordo com o novo plano, os grupos deverão receber tratamento especial em licitações públicas. Paralelo a isso, linhas de crédito devem ser abertas junto à AGN para financiá-los. 

“É a economia que coloca o trabalhador no centro. A pandemia evidenciou a necessidade de fortalecer a cooperação, garantir a sustentabilidade de pequenos empreendimentos”, diz Lidiane Freire, subcoordenadora da Economia Solidária da Secretaria do Estado do Trabalho, Habitação e Assistência Social (Sethas).

Ações da economia solidária promovidas pela Sethas. (foto: cedida)

O levantamento mais recente sobre a quantidade de trabalhadores no setor é de 2013, e aponta que há 1.518 empreendimentos de Economia Solidária no Estado, com 57.344 trabalhadores:

“Agora o nosso desafio é transformar isso em uma rede, para que esses grupos sejam capazes de suprir demandas reais do Estado. Dessa forma, é como se atuássemos em duas frentes: preenchendo uma demanda real e fazendo o dinheiro circular aqui”, destaca Lidiane. 

Para Maria Dantas, mais do que uma fonte de renda, o dinheiro adquirido a partir da Economia Solidária representou uma mudança de sua visão sobre o mundo e sobre si mesma.

“Eu vinha de uma casa machista. Meu marido não queria que eu fizesse nada além dos trabalhos domésticos. Com a Economia Solidária, aprendi que meu trabalho tem valor. Quando fizemos uma reforma em nossa casa, eu mesma comprei os azulejos do banheiro, com o meu dinheiro. É entender como produz, quem produz, o que produz e, principalmente, que o nosso trabalho não é sem valor”, completa Maria. 

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