Paulo Abrão: “A memória das violências do passado é o caminho para a transformação da realidade presente”
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Paulo Abrão: “A memória das violências do passado é o caminho para a transformação da realidade presente"

24 de julho de 2022
21min
Paulo Abrão: “A memória das violências do passado é o caminho para a transformação da realidade presente

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Mais um passo em uma longa trajetória de luta protagonizada por familiares e vítimas da violência de Estado pela efetivação dos direitos humanos e pela centralidade das pautas da Memória, Verdade, Justiça e Reparação sobre as violências de Estado, para que haja uma democracia efetiva”. É assim que o advogado brasileiro, Paulo Abrão, define a Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça , Reparação e Democracia (Coalizão Brasil MVJRD). A entidade foi lançada dia 16 de julho, de forma virtual, com transmissão pelo canal da História da Ditadura no YouTube.

Ex-presidente da Comissão de Anistia nos Governos Lula e Dilma, o professor da PUCRS e professor visitante da Brown University  apontou que reconhecer que o Estado tem dívidas com vítimas da Ditadura remete ao presente e alerta que o atual ciclo autoritário está gerando um passivo ainda maior.

Para Abrão, “a Memória tem um papel importantíssimo porque ela é um espaço de disputa de poder e sempre foi instrumentalizada como projeto de silenciamento por parte do Estado”.

Paulo Abrão, doutor em Direito, professor da PUCRS, é professor visitante da Brown University e presidente do Conselho Diretor da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça , Reparação e Democracia. Atualmente é também diretor executivo do Washington Brazil Office e assessor da Artigo 19. É membro da diretoria da International Coalition of Sites of Conscience. Foi Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH/OEA (2016-2020), Diretor do Instituto de Politicas Publicas em Direitos Humanos do MERCOSUL - IPPDH (2015-2016), Secretário Nacional de Justiça do Brasil (2011-2014), presidente da Comissão de Anistia (2007-2016) e presidente do Comite Nacional para Refugiados CONARE (2012-2014).

Confira a entrevista.

Agência Saiba Mais: O que representa o lançamento dessa Coalizão Nacional por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia no atual contexto político brasileiro?

Paulo Abrãao: A Coalizão Nacional por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia representa mais um passo em uma longa trajetória de luta protagonizada por familiares e vítimas da violência de Estado pela efetivação dos direitos humanos e pela centralidade das pautas da Memória, Verdade, Justiça e Reparação sobre as violências de Estado, para que haja uma democracia efetiva.

Estamos diante de um governo que promove a apologia do genocídio indígena e da população negra, da tortura, das execuções, dos desaparecimentos forçados, da exploração das riquezas naturais pelo poder econômico privado e do golpe e da ditadura. O contexto atual é de aprofundamento das violências, destruição e retrocessos em passos dados na busca da efetivação de direitos e ainda de ameaça de desrespeito ao voto popular.

A Coalizão se forma com a certeza de que a construção de um futuro mais justo e democrático passa necessariamente pelo reconhecimento de que, no passado e no presente, o Estado brasileiro promoveu e promove sistemáticas violações aos direitos humanos.

Esta é uma articulação inédita e demonstra a força e a vitalidade que a luta coletiva por direitos humanos e contra as violências de Estado tem, no Brasil.

Além disso, como bem demonstrou o debate de lançamento da Coalizão, estas pautas têm incidência em toda a América Latina e no contexto global.

A necessidade dessa frente aponta para limitações na realização de uma Justiça de Transição no Brasil? Quais os principais avanços alcançados no país para sua efetivação e quais os maiores desafios para sua concretização?

A chamada justiça de transição, enquanto conjunto de órgãos e medidas para lidar com a violência do passado, no caso brasileiro, não somente teve início de forma tardia, como tem estado marcada por limitações. Apenas 10 anos após a transição política, o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade sobre mortes e desaparecimentos de vítimas do regime. Por meio da lei 9.140/1995, foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Sete anos depois, a lei 10.559/2002 instituiu a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. O reconhecimento estatal e as reparações às famílias pela CEMDP, assim como o alcance de reparações a pessoas por perseguição política e os projetos de memória e reparação desenvolvidos pela Comissão de Anistia, constituem passos importantes nas medidas de justiça de transição. A partir da segunda metade da década de 2010, a pauta de Memória, Verdade, Justiça e Reparação ganhou espaço mais relevante na agenda governamental. Diante da incessante e incansável mobilização dos ex-presos políticos e dos familiares, o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) trouxe, pela primeira vez, um eixo relacionado ao direito à memória e à verdade. A despeito dos limites do texto, cuja versão final não incluiu o direito à justiça, o PNDH-3 foi importante instrumento para reforçar a demanda pela criação de uma Comissão Nacional da Verdade (CNV). Instituída em 2012, a CNV promoveu investigações sobre as graves violações aos direitos humanos no período da ditadura e entregou seu relatório final em dezembro de 2014, contendo 29 recomendações ao Estado brasileiro.

Essas três comissões - Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Comissão de Anistia e Comissão Nacional da Verdade - compõem o tripé das políticas públicas promovidas pelo Estado brasileiro no campo da Memória, Verdade, Justiça e Reparação.

Apesar de sua inegável importância, os três órgãos foram criados em meio a acordos políticos e pressões das elites civis e militares, que impuseram limites claros à sua atuação. Dentre eles, o principal é que esses setores jamais aceitaram o questionamento à Lei de Anistia de 1979. Por sua vez, como sociedade, não logramos enfrentar as pressões e chantagens relativas a esse ponto, o que garantiu a impunidade histórica aos perpetradores das violações de direitos humanos. Na direção contrária de parâmetros internacionais sobre Direitos Humanos vinculantes ao Estado brasileiro e, mais especificamente, de sentenças da Corte Interamericana nos Casos Araguaia (2010) e Herzog (2018), o Supremo Tribunal Federal ignorou o direito internacional e validou a interpretação que permite à lei de 1979 servir como um escudo contra a responsabilização criminal dos agentes da ditadura, deixando em aberto desde 2010 a necessária revisão deste entendimento nas ADPFs 153 e 320.

Permeadas por grandes limites, as três comissões federais criadas para lidar com o legado da ditadura militar foram os únicos instrumentos estabelecidos oficialmente pelo Estado brasileiro, em âmbito federal, para reconhecer e tentar reparar violências cometidas no passado. Ao mesmo tempo, deve-se ressaltar que nem a escravização, nem o genocídio indígena, nem a violência policial foram objeto de políticas públicas voltadas para o reconhecimento e a reparação das atrocidades cometidas e seus efeitos.

De que forma o passado autoritário não enfrentado reacende e atualiza a memória da ditadura no Brasil? E por que é importante sempre fazer essa memória?

Podemos dizer que o autoritarismo sempre foi e é enfrentado no Brasil. Quer dizer, nunca foi enfrentado internamente, em suas bases institucionais. O Estado em suas bases é de natureza autoritária e é por isso que temos uma longa trajetória histórica de resistência e de não aceitação da imposição da violência. Então, primeiramente é importante destacar o papel central dos movimentos de resistência a essa forma sistemática que o Estado opera o autoritarismo em suas mais diversas faces e de como esse “passado” tem sido reproduzido cotidianamente por meio das violações contra os direitos da população negra, dos povos indígenas, do povo campesino até os dias atuais.

Quando estamos tratando de Memória, não estamos apenas tratando de passado, e nem podemos dizer diante dos últimos acontecimentos no Brasil, como o avanço do projeto da ultradireita, que tivemos um passado autoritário porque ainda estamos lidando com os seus reflexos. Partimos da constatação de que não houve qualquer ruptura temporal nessa longa história de violências e que é preciso continuar na luta para desnaturalizar esse corte entre passado e presente, conscientes de que o único caminho possível é o combate às raízes dessa violência estrutural.

E para isso a Memória tem um papel importantíssimo porque ela é um espaço de disputa de poder e sempre foi instrumentalizada como projeto de silenciamento por parte do Estado.

É fundamental, quando estamos tratando de Memória, situar o seu lugar e fazer o constante questionamento: de qual Memória queremos tratar e qual a sua relação com a Verdade? No caso da Memória das Ditaduras, lida como expressões máximas do autoritarismo do Estado, é preciso dar continuidade a uma agenda de governo iniciada institucionalmente também tardiamente a partir de 2010. Garantir a concretização do direito à memória e à verdade, como instrumento de combate à política do esquecimento, do silenciamento e da impunidade dos crimes cometidos durante o regime autoritário e também durante o regime democrático, é uma forma usar a Memória também como fonte de educação política para o Nunca Mais. É o uso desse imperativo categórico, para que nunca mais se repita, para que nunca mais aconteça, para que o país não esqueça, que reafirmamos a dimensão política da Memória enquanto lugar de disputa de poder, onde a luta por direitos atacados pelo autoritarismo precisa fazer parte da Memória coletiva, mesmo que seja através de um passado traumático, ela, a Memória, serve como reflexão deste passado e como construção de disputas políticas do presente, além de expectativas para um futuro. O que foram as chacinas/massacres como a dos povos Xakriabá (1987) e Yanomami (1987 e 1988) e das chacinas de Acari (1990), Carandiru (1992), Candelária (1993), Vigário Geral (1993) e Eldorado dos Carajás (1996)? Essas chacinas/massacres nunca deixaram de ocorrer - pelo contrário. Já no século XXI, assistimos, dentre outras, a do Borel (2003), da Baixada Fluminense (2005), os Crimes de Maio (2006), do Cabula (2015), do Pau D'Arco (2017), do Salgueiro (2017), expressões mais evidentes de que os marcos legais da Constituição de 1988 não foram capazes de interromper a vocação do Estado brasileiro para promover tortura, morte e desaparecimento forçado, usando da sistemática invisibilização das vítimas de violência, do passado e do presente, e do silenciamento. Estamos diante de um governo que faz apologia da ditadura como política oficial de memória. E o que propomos é uma política de Memória como horizonte para que aconteça a real reparação histórica, simbólica, cultural, material de quem sofre historicamente com a violência do Estado. É esse horizonte que não podemos perder de vista.

Que questões centrais precisam ser tratadas no país para repensarmos o papel autoritário do Estado brasileiro?

A questão central talvez seja justamente tratar o legado autoritário, expor à luz a correia de transmissão que encadeia os vários episódios autoritários de nossa história para entendermos não serem propriamente episódios senão um único corpo de ação que se alimenta de uma mentalidade autoritária e retroalimenta a normalização desse modo de pensar e agir.

Esse funcionamento impede que a violência de Estado seja investigada e punida, o que, a seu turno proporciona a normalização dessa violência, seja pela aceitação, seja pela sensação de impotência que a impunidade causa e, ao fim, propicia que a normalização se cristalize em uma mentalidade autoritária, que cria a sensação individual e coletiva de que sempre foi e sempre será assim.

Logo, a centralidade do debate passa por estruturar os referidos pilares da justiça de transição, permitindo que se quebre essa correia de transmissão que normaliza o autoritarismo.

O que o Brasil tem a aprender com a experiência de países vizinhos como a Argentina e Uruguai, e de outros mais distantes como a Espanha e a África do Sul na condução dos seus processos pós-ditadura?

O principal aprendizado que o Brasil pode ter dessas experiências é a implementação de efetivas garantias de não repetição.

É importante destacar que estamos comparando sociedades bastante diversas lidando com traumas sociais severos. Mas todos esses mencionados - Argentina, Uruguai, África do Sul e Espanha - a seu modo, criaram mecanismos de repúdio ao passado autoritário, permitindo, assim, que o autoritarismo do presente pudesse ser sempre rechaçado com convicção e apoio popular.

O Brasil, por outro lado, em que pesem as importantes iniciativas tomadas no sentido de reparar a violência autoritária, não teve êxito em condená-la definitivamente, sendo emblemático o reconhecimento do STF dando validade, na democracia, para a autoanistia de 1979.

O resultado prático disso é que enquanto no Uruguai o comandante do Exército foi preso por se imiscuir ilegalmente em questões políticas, aqui acabamos elegendo por presidente um notório admirador de um dos mais cruéis torturadores da ditadura.

Qual a avaliação que você faz do papel da Comissão da Verdade no Brasil? É possível que os crimes cometidos pelo Estado brasileiro na ditadura ainda sejam investigados a partir das informações reveladas pela Comissão da Verdade? É possível pensar no Brasil que os crimes cometidos pelo Estado terão o peso histórico que merecem?

A Comissão Nacional da Verdade foi mais um passo do Brasil no que diz respeito à Justiça de Transição. Contudo, há de se fazer observações sobre uma série de limitações sobre o alcance e a profundidade de sua atuação. Antes delas, cabe ressaltar os pontos positivos. Um deles é o ineditismo em termos de política de Estado no Brasil, em prol da busca de informações sobre graves violações de direitos humanos entre os anos de 1946 e 1988 através de depoimentos de alguns agentes da repressão de Estado que atuaram no período da Ditadura Civil-Militar de 1964.

Pois já era louvável os trabalhos anteriores da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos a partir de 1995, e da Comissão de Anistia a partir da lei que a regulamentou em 2002, mas louva-se também o intuito do governo Dilma Rousseff em dar conta de parte das ações de justiça transicional às quais o Brasil foi instado a praticar a partir da condenação do Estado Brasileiro em 2010 no chamado caso “Gomes Lund e outros vs. Brasil”.

Por outro lado, a CNV apresentou uma série de limitações, sejam elas fruto da ainda difícil articulação política para se entalhar políticas reparatórias, sejam pelo prazo restrito de 2 anos e pouco para sua implementação. Por exemplo, um ponto dos mais criticados por muitos familiares, afetados e defensores de Direitos Humanos, foi o recorte de classe, gênero e raça, que não deu conta de investigar a contento, o quanto foram afetadas no período ditatorial, as favelas, as populações pobres, negras, campesinas, LGBTQIA+ e indígenas, em que se pese algum avanço na estimativa de quantos indígenas foram mortos e desaparecidos. Também foram pouco investigadas as contribuições do setor empresarial para a máquina estatal repressiva, especialmente financiando-a.

Quanto ao ponto das ações de justiça transicional mais atrasado no Brasil, o julgamento dos agentes repressores, tanto militares quanto civis, provavelmente sim, podemos dizer que as informações reveladas pela Comissão da Verdade ao lado do trabalho de registro e documentação da Comissão de Anistia e CEMDP, podem ajudar na investigação de tais crimes - o que em alguma medida já ocorre, por exemplo com as investigações pilotadas pelo Ministério Público - mas o julgamento em instâncias superiores e condenações decorrentes só poderão acontecer com a reinterpretação da Lei de Anistia, esta que por ora tem sido interpretada erroneamente pelo Judiciário Brasileiro, o que acaba por lançar um véu sobre crimes de lesa humanidade, sobre a proibição internacional de autoanistias e impedindo que diversos casos dessas graves violações de Direitos Humanos evoluam em suas instâncias. Portanto, os crimes cometidos pelo Estado terão o peso histórico que merecem quando essa etapa essencial da Justiça de Transição começar a ser cumprida com a dimensão que deve ter.

Quando se fala em investigação e punição de agentes do Estado que cometerem crimes durante a ditadura, a Argentina aparece como um modelo a ser seguido. Quais os caminhos que o Brasil precisa trilhar para chegar ao mesmo nível de consciência dos nossos vizinhos?

Novamente, o caminho essencial é realizar a interpretação correta da Lei de Anistia, conforme à Constituição, ao direitos internacional e aos compromissos assumidos soberanamente pelo Brasil frente a Tratados e Convenções Internacionais, para que ela deixe de ser desculpa para aliviar graves crimes de direitos humanos, crimes de lesa humanidade que no ordenamento jurídico internacional, e no caso do Brasil, especialmente por ser signatário da Convenção Americana, não são passíveis de perdão, ou de anistia.

A começar pela aberração jurídica que é o Estado Brasileiro promover uma espécie de "autoanistia", isto é, o próprio repressor se anistiar.

Outra coisa é que, muitos casos sequer foram julgados antes de 1979, e outras violências foram pós lei de autoanistia, logo não faz sentido algum promover anistia para casos posteriores ou caso sem condenação, sem estar "transitado em julgado". Estes são mais dois pontos na interpretação errônea que o judiciário tem feito. Quanto à Argentina ser um modelo a ser seguido neste tema, é complicado fazer uma correlação direta, embora gostaríamos de atingir o objetivo a que chegaram, que é a mensagem de que a lei vale para todos e que as graves violações aos direitos humanos recebem efetivas coibições para a não-repetição. Mas a dificuldade se dá porque a Argentina começou a entalhar, não sem dificuldade e pressão de familiares e atingidos pela ditadura de 1976, ações que miravam os desejados passos da Justiça de Transição desde seu fim em 1982, que envolviam a criação de comissões da verdade, bancos de sangue para ajudar na busca dos 500 netos roubados por famílias de repressores, projetos de reparação terapêutica à pessoas afetadas, e especialmente, a judicialização das graves violações de direitos humanos, botando no banco de réus os torturadores, e eventualmente condenando mais de 300 deles.

Desta maneira, portanto, criou-se uma retroalimentação positiva para o avanço da construção da memória, justiça e reparação deste período na Argentina também, onde a comoção nacional cria uma certa facilitação para que, por exemplo, o judiciário de lá não barrasse com tanta facilidade aqueles julgamentos, nem que o Estado Argentino pudesse acobertar e silenciar estas histórias com a intensidade que ocorre no Brasil. As ditaduras foram intensas igualmente em todos os países, porque isso não se mede pela pilha de corpos que uma ditadura produz e sim pela cultura do medo e da vigência das tutelas militares sobre as democracias ao longo do tempo. Sem negar a importância das mais graves violações aos direitos humanos, a situação da violência da ditadura no Brasil pode ser tão ou mais impressionantes que na Argentina, em termos de alcance a amplos espectros sociais e sua duração. Haja vista, por exemplo, o impressionante número de pessoas que deram entrada com pedidos de anistia na Comissão de Anistia do Estado Brasileiro, mais de 70.000.

E ainda, a partir do entendimento de que a violência de Estado, a tortura, exílio, sequestro e perseguição produzem efeitos transgeracionais que impactam as gerações que se seguem, o número de 2as, 3as e 4as gerações de afetados a partir só deste número aproximado de 70mil pessoas de uma 1a geração afetada mais diretamente, chega a ser incalculável.

Como os trabalhos realizados pela Comissão Nacional da Verdade e as comissões estaduais jogam novas questões sobre a Lei da Anistia?

As distintas comissões da verdade produziram investigações, oitivas de agentes da repressão, registraram testemunhos de vítimas, realizaram exames periciais diretos e indiretos, diligências em lugares de prisão e tortura e análises documentais. Esse trabalho, no caso da CNV, embasou a identificação da autoria direta, por ação ou omissão, de graves violações de direitos humanos. Nesse sentido, o trabalho da CNV contribuiu com a identificação nominal de perpetradores de graves violações de direitos humanos em um relatório oficial do estado, por meio de uma comissão de caráter nacional e instituída por lei.

O que foi e é exatamente a lei de anistia aplicada no Brasil?

A Lei de Anistia de 1979, foi um instrumento das elites políticas civis que organizaram uma transição de regime político para salvar a si próprias, por meio de um Congresso controlado.

Assim, a abertura política foi marcada pelo discurso da “reconciliação”, que sobreviveu ao longo do regime formalmente democrático instituído com a Constituição de 1988. A interpretação predominante e imposta da Lei da Anistia foi de uma lei que anistiou tanto atos cometidos em resistência à ditadura, quanto atos de violência política de agentes da estrutura da repressão ditatorial. Essa estratégia pretende equiparar a violência do Estado e as ações da resistência, e tem sido utilizada nas últimas décadas para tentar impedir quaisquer avanços na promoção dos direitos à memória, à verdade, à reparação e, principalmente, à justiça, para as vítimas da ditadura e seus familiares.

Por que o Brasil não consegue dialogar com seu passado ditatorial? E qual é a relação disso com a eleição de um presidente que elogia a ditadura e torturadores?

Não termos enterrado suficientemente a ditadura militar, punindo exemplarmente os torturadores e os comandantes do golpe de Estado, como aconteceu nos demais países da América do Sul, promove a apologia da tortura, do golpe e da ditadura como política aceitável, como vemos hoje. Também permite que atores militares que serviram à ditadura hoje voltem a imiscuir-se na política. O trabalho de construção, organização e imposição do esquecimento sobre o que foi o projeto político, econômico e cultural da ditadura, assim como sobre toda a barbárie que produziu, teve força a partir da conciliação das elites na transição política tutelada em 1985. Os avanços em termos de reconhecimento e reparação de vítimas foram conquistados pela insistente luta de familiares de mortos e desaparecidos políticos, assim como pelas pessoas perseguidas e por ex-presos e presas políticas, seja por estratégias em âmbito nacional ou internacional. Portanto, as elites políticas nunca tiveram o trato do passado ditatorial como parte de suas prioridades políticas, assim como outros setores, como a grande imprensa, nunca priorizaram a urgência do desvelamento das violências do passado ditatorial, como não o faz em relação a outros períodos históricos e à profunda violência de estado do presente. Esse silenciamento manteve, ao longo das décadas de regime democrático, espaço para o negacionismo e o eufemismo sobre o golpe de 1964, a ditadura e as graves violações de direitos humanos, na forma de torturas, execuções e desaparecimentos forçados, entre outras violências. Assim, construiu-se a naturalização de mais esse capítulo na história brasileira de acumulação da barbárie. O viés antipopular, conservador e conciliador com este passado recente alimentou a extrema direita brasileira que encontrou em Jair Bolsonaro o representante de seus interesses. O presidente não só representa uma alegoria da ditadura militar, como simboliza todas as estruturas de dominação e violência que vigoram no Brasil.

Resolver a violência do passado é enfrentar a exceção do Brasil de hoje?

O Brasil tem uma história marcada pela violência. A colonização, a escravização e o genocídio de povos originários, africanos e afrodescendentes deixaram um legado de autoritarismo, patriarcalismo e racismo institucional que marcam até hoje nossa sociedade. Assim, a exceção, entendida como exercício arbitrário do poder e produção de violência estatal, é uma constante na história brasileira. Mesmo em períodos formalmente democráticos e com certos avanços em certas pautas. A memória das violências do passado, a produção rigorosa de investigações sobre as diversas violências passadas, a reparação dessas violações, a responsabilização de perpetradores, e o desmantelamento de estruturas que perpetuam e atualizam as violências, é o caminho para a transformação da realidade presente. E as instituições estatais além de terem um papel central nesse processo, são titulares desses deveres.

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