Ninguém nasce bandido ou policial violento
Natal, RN 16 de mai 2024

Ninguém nasce bandido ou policial violento

2 de abril de 2023
13min
Ninguém nasce bandido ou policial violento

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Por Robério Paulino | professor doutor no Instituto de Políticas Públicas da UFRN e vereador em Natal pelo PSOL

SOBRE A EXPLOSÃO DE VIOLÊNCIA NO RN

SEM ATACAR AS RAÍZES DO PROBLEMA, TEREMOS NOVAS EXPLOSÕES MUITO EM BREVE

A explosão de violência que presenciamos nas últimas semanas no Rio Grande do Norte não é um problema apenas do estado, mas de todo sistema carcerário no Brasil. Quem estuda o tema ou conhece minimamente o trabalho do Dr. Drauzio Varella, a história da explosão e do massacre no presídio do Carandirú, em 1992, pode entender que o problema vem de longe.

Sem entender as raízes mais profundas da questão, vamos debelar essa crise atual, com a ajuda do Governo Federal, da Força Nacional, de policiais de outros estados e das forças de segurança do RN, com centenas de prisões e transferências de presos, mas teremos novas explosões em muito pouco tempo. A violência no RN tem sido recorrente, como a explosão no presídio de Alcaçuz há alguns anos, da qual parece não termos aprendido quase nada, como não estão se tirando as verdadeiras lições da crise atual.

Evidentemente, do que se tratou nos primeiros dias foi de controlar a crise, com a união dos diferentes governos e forças de segurança locais e de fora, a quem a população do RN muito agradece. A sociedade não pode ser vítima da violência de organizações criminosas. Mas, como veremos a seguir, essa explosão não é só isso, mas também um chamado de alerta. Não era hora tampouco de tirar proveito político do fato, com objetivos eleitorais. Foi o que o autor dessas linhas pediu na tribuna nos primeiros dias do evento.

Nos parece, entretanto que, mesmo com um governo com origem de esquerda no Rio Grande do Norte, as ações que têm sido adotadas nessa explosão de violência no RN são as tradicionais, as mesmas dos governos de direita anteriores, tão ou mais responsáveis pelo precário quadro existente nos presídios do que a governadora Fátima Bezerra.

Setores de direita, tentando se aproveitar da crise, pediram uma intervenção do Exército através de uma GLO, o que seria completamente descabido, pelo simples fato que o Exército não é polícia, além do que haveria o perigo de novamente as FFAA se envolverem em tarefas de ordem interna. A intervenção delas no Rio de Janeiro deixou frutos amargos, foi um completo fracasso, e não resolveu o problema da violência, que continua muito alta naquele estado.

Todo o sistema prisional brasileiro é marcado pelos maus tratos e violência contra os presos, tortura etc. O Rio Grande do Norte não é exceção. Não adianta tapar o Sol com a peneira ou fechar os olhos. Pessoas sérias, como a professora Juliana Melo, da UFRN, e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, MNPCT, organismo da ONU, têm atestado graves problemas nos presídios do RN.

Entre os dias 21 e 25 de novembro de 2022, o MNCPT visitou vários presídios no estado, acompanhado de organismos estaduais de direitos humanos, produzindo depois um relatório, mostrando várias violações de direitos de pessoas em privação de liberdade, como superlotação de celas, alimentação precária ou mesmo podre para consumo, total falta de assistência no âmbito da saúde, contaminação por tuberculose de presos doentes colocados na mesma cela que outros não doentes, banho de Sol somente a cada 15 dias, falta de assistência jurídica, baixíssimo acesso à educação e ao trabalho, dificultação de visitas de parentes etc. Havia uma bomba relógio prestes a explodir. Nos parece que o relatório do MNCPT, sugerindo várias ações urgentes ao governo do estado, foi completamente ignorado. Deu no que deu.

A pergunta que se deve fazer é: como recuperar presos assim? Alguns argumentam que os presos querem privilégios. Não é isso que defendemos aqui, mas de não tratar presos como nem a animais se trata. Isso só aumenta a revolta e alimenta as facções criminosas. A professora Juliana Melo já nos alertou que quanto mais violência dentro nos presídios, mais violência aqui fora. E não estamos aqui, tampouco, culpando os policiais penais. Eles trabalham com as condições precárias e as orientações que lhes são dadas.

Alguns me dizem que defendo transformar presídios em hotéis 5 (cinco) estrelas. Outros nos insultam dizendo: “Está com pena? Leva para casa”. São argumentos tão toscos que não merecem sequer respostas. Nos jornais são publicadas fotos de quentinhas apetitosas, que muito possivelmente não correspondem às servidas no dia a dia, todo mundo sabe disso. O fato é que nossos presídios não permitem a ressocialização de ninguém e só alimentam o ódio e as facções.

Ninguém está defendendo bandido, mas sim que nossos presídios sejam espaços reais de possível reabilitação, especialmente dos presos de delitos mais amenos. Nosso atual sistema carcerário joga mesmo presos de crimes mais leves na mão das facções. Por isso, é necessário repensar todo sistema prisional no Brasil e no Rio Grande do Norte, dando chance aos presos de bom comportamento - cuja maioria sequer foi julgada ainda - de ter acesso a condições minimamente dignas de alimentação, alojamento, saúde, para pagar sua pena. E para qualquer chance de recuperação e reintegração à sociedade, os presos precisam ter oportunidades de trabalhar e estudar, como ocorre nos países civilizados.

Infelizmente, isso em quase nada avançou no governo da professora Fátima Bezerra, do PT. Alguns analistas desonestos, pretensos defensores dela, dizem que toda essa crise não passou de uma grande armação da direita contra a governadora. Isso é igualmente um autoengano, que esconde o problema real. A direita está apenas se aproveitando da crise para tirar dividendos políticos. Não ajudam a governadora os que a alimentam com esse tipo de análise. Só preparam novas explosões muito em breve, talvez ainda no governo dela. A primeira medida para evitar novas crises é verificar a real situação dos presídios e implementar as sugestões do MNCPT.

Mesmo em um governo com origem na esquerda, a política de segurança do estado tem sido tratada da mesma forma tradicional: contratação de mais policiais, compra de mais viaturas, repressão ao crime. Basta olhar os jornais para constatar isso. Isso não está errado, mas ataca apenas a consequências do problema. E quais são as origens da violência?

O Brasil é um país fundado historicamente na desigualdade, na marginalização de grande parte de sua população. E o Rio Grande do Norte é um dos estados mais pobres e desiguais do país. Desemprego, salários muito baixos, péssima qualidade da educação, que pouco melhorou no governo da professora Fátima Bezerra, falta de oportunidades e de políticas públicas efetivas para nossos jovens pobres, abandono das periferias. Tudo isso é o combustível da violência.

Para usar um conceito de certa forma derivado do livro A origem da desigualdade entre os homens, do filósofo Jean-Jacques Rousseau, toda criança nasce uma página em branco. Nenhum jovem que cedo entrou para o crime nasceu bandido. Serão as condições e o ambiente social, da família, da educação, das oportunidades de ocupação e renda, que vão determinar o destino de uma criança e de um jovem, levando por exemplo a uma maior ou menos evasão escolar e ao ingresso ou não na criminalidade.

Alguns me contrapõe dizendo: “mas professor, eu também nasci pobre e não virei bandido.” Não estamos afirmando aqui que todo jovem pobre vai virar bandido. Felizmente, a grande maioria dos jovens pobres toma o rumo certo.  Mas sem dúvida, as condições muito precárias de educação, renda familiar, ocupação etc., especialmente nas periferias abandonadas das cidades, vão levar a que percamos uma maior porcentagem de jovens para a criminalidade. Outros me dizem que ser ou não bandido é uma questão de “caráter”. Isso é igualmente um erro. Caráter também é uma construção social, cultural, familiar, educacional, para usar o mesmo raciocínio acima de Rousseau.

Imagine-se uma família onde uma criança ou jovem não tenha qualquer referência positiva, materna ou paterna, qualquer parâmetro que lhe sirva como exemplo. O pai, quase analfabeto, bebe muito e é violento com a mãe. Esta, por sua vez tem baixíssimo nível de escolarização. Outras mães têm que trabalhar fora e deixar os filhos em casa, mas nem todos tem uma avó experiente e centrada que deles cuide. A criança vai à escola em um turno - quando vai - e fica o outro sem ter o que fazer, fora de casa.

Boa parte abandona a escola muito cedo, porque nossa educação não é atrativa. Algumas dessas crianças são esses jovens que vemos aí nas ruas como limpadores de para-brisas ou vendedores nas esquinas, de baixa escolarização, tentando não entrar no crime, mas suportando a grosseria das nossas classes rica e média dentro de seus carros, o que só lhes alimenta o ódio. Outros tomam contato muito cedo com grupos criminosos, que lhes oferecem alguma renda. Quando entram no crime, não saem mais.

Tampouco as escolas cívico-militares são a saída, resolvem o problema. Visitei algumas dessas escolas recentemente e constatei que apenas foram colocados militares reformados para impor disciplina às crianças e jovens, pintaram aqui ou acolá uma quadra, mas sem alterar a essência da estrutura precária e da educação nelas.

Umas das saídas mais rápidas para o problema da violência seria avançar rapidamente na implantação da educação em tempo integral de boa qualidade no estado. Mas, infelizmente, mesmo em um governo de uma professora, que já tem 4 anos, isto avançou muito pouco por aqui. Enquanto Pernambuco, aqui ao lado, já passou dos 60% de suas escolas em tempo integral, o RN patina em pouco mais de 20%, um dos estados mais atrasados do país nesse quesito. Torçamos para que isso possa avançar mais rapidamente nesse segundo governo da professora Fátima Bezerra, como também a promessa dos IERNs não fique apenas no papel.

Outra política pública, que não seria tão cara, seria criar algumas dezenas de milhares de bolsas ou empregos de poucas horas para essas crianças e jovens mais carentes das periferias poderem desenvolver alguma atividade útil à sociedade, com a condição de estudarem. Uma parceria entre Governo Federal, governo estadual, governos municipais, organismos de segurança, Judiciário, empresas, poderia muito bem implementar um programa desta natureza, que não seria caro. O Bolsa Família não atende jovens depois de certa idade. Com certeza, em poucos anos veríamos cair muito a violência e isso sairia muito mais barato no médio prazo do que o combate à criminalidade e o atual sistema prisional, caro, falido e violento. Sem políticas públicas que ataquem a raiz do problema, nossos governos e as polícias vão continuar enxugando gelo.

Outra forma de combater a criminalidade é repensar toda a educação e mentalidade policial, hoje em boa medida fundada na violência policial nos bairros pobres, o que só revolta parte dos jovens e alimenta o crime. Como diz Caetano Veloso na música Haiti, é uma “fila de soldados, quase todos pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos”. Mas da mesma forma que nenhuma criança nasce bandido, nenhum policial nasce violento. O autor dessas linhas é daqueles que tem uma visão otimista da humanidade e acredita que o ser humano é bom por natureza. É a ideologia e a educação erradas dos quartéis que leva um policial a ser violento, a ver todo garoto pobre e especialmente negro da periferia como um potencial inimigo, um pequeno bandido, o que retroalimenta a violência.

O medo e o ódio que a violência policial gera nas periferias a ninguém interessa, nem mesmo aos próprios policiais. Muitos deles nos confessam que saem de casa com medo de não voltar para a sua família. Outros têm que esconder o uniforme e a profissão nas redes sociais por medo de represálias. Toda educação nos quarteis precisa, portanto, ser profundamente revista, repensada, educando o policial a ter uma atitude não violenta, mas sim educativa, amistosa, cuidadosa, voltada para conquistar esses adolescentes para o caminho da educação e do trabalho, especialmente com os jovens pobres da periferia.

Alguns me dizem que sou um idealista, que essas raízes mais profundas do problema só se mudam no longo prazo e do que se trata agora, no curto prazo, é conter essa onda de violência com mais violência mesmo, aumentando o efetivo policial, equipando melhor a polícia, prendendo e transferindo parte dos responsáveis por essa explosão no estado etc. Respondo que as origens da violência, no Brasil e no RN, não estão sendo bem combatidas nem no longo nem no curto prazo. Senão não teríamos tido novamente essa recente explosão no RN, apenas alguns anos após Alcaçuz. Pergunto: quando vamos pelo menos começar a atacar as raízes do problema no longo prazo? Vamos ao debate?

Quando será que aprenderemos que a atual política de segurança está completamente fracassada? Que estamos perdendo tempo e recursos. Se não quisermos ter novas explosões muito em breve, precisamos analisar em profundidade a questão, investir em inteligência, em políticas públicas sociais e educacionais efetivas, sair da superfície e começar a atacar as raízes do problema, como cumprir as recomendações do MNCPT para os presídios, acelerar muito a implantação da educação integral nas escolas do estado para manter as crianças e jovens a maior parte de tempo ocupadas, criar oportunidades de emprego e renda, esportes, lazer para a juventude aqui fora etc. Sem isso, vamos conter essa crise atual, mas só prepararemos novas explosões em muito pouco tempo. Quem não acreditar no que aqui dizemos, é só esperar para ver.

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