Sobre a regulação das redes sociais: avanço ou retrocesso?
Natal, RN 15 de mai 2024

Sobre a regulação das redes sociais: avanço ou retrocesso?

29 de julho de 2023
15min
Sobre a regulação das redes sociais: avanço ou retrocesso?

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Lula tem sido ao longo dos anos uma das vítimas da desinformação, difamação  e do discurso do ódio veiculados principalmente nas redes sociais, e sabe do papel que as plataformas digitais têm na sua disseminação, daí na campanha eleitoral de 2022 defendeu a necessidade de sua regulação porque considera que são ameaças não apenas contra ele, como as pessoas em geral, com campanhas de destruição de reputações, com manipulações (de falas, imagens etc.), mentiras e fake news e também para a própria democracia e suas instituições. E nesse sentido foi elaborada uma proposta de regulação das redes sociais.

Vencida a eleição, no primeiro dia do seu governo foi publicado um decreto criando a Secretaria de Políticas Digitais, que conta na sua estrutura organizacional com dois departamentos: o de Promoção da Liberdade de Expressão e o de Direitos na Rede e Educação Midiática, com o objetivo de “cuidar de assuntos relacionados à desinformação e ao discurso de ódio no Brasil”.

Articulado com o Ministério da Justiça visa criar mecanismos que possam proteger vítimas de violações de direitos na internet, ajudar a promover o pluralismo da mídia, com programas públicos de educação midiática e também fazer com que as grandes plataformas de internet paguem aos veículos de imprensa pelas notícias vinculadas.

Nesse sentido, um dos focos principais é o do fortalecimento do jornalismo profissional, a exemplo do que tem ocorrido em outros países nos quais as plataformas digitais foram objetos de investigação e tomadas decisões no sentido de uma regulação democrática, visando à preservação dos direitos dos usuários e em defesa da diversidade e pluralismo, combatendo à desinformação e também criar mecanismos para analisar as grandes empresas de tecnologia, seu funcionamento e efeitos na sociedade.

E para isso, uma questão central é a regulação das redes sociais.  Se por um lado, com o início da era digital da internet, havia uma expectativa e promessas da democratização da comunicação, o fato é que isso não ocorreu, com efeitos perversos na sociedade, cultura e na política, com impactos em eleições (processos eleitorais) e, portanto com consequências para a própria democracia.

Por que é importante? De acordo Tiago Cordeiro no artigo Regulação da internet e das redes sociais: mais perguntas do que respostas, publicado no dia 02 de maio de 2022 no site do Insper (Instituição de Ensino Superior e Pesquisa) 99% dos smartphones brasileiros têm instalado o aplicativo Whatsapp e o país tem 148 milhões de usuários do Facebook, 105 milhões no Youtube, 99 milhões no Instagram e 19 milhões no Twitter (um ano depois, certamente os dados não são os mesmos, mas não deve ter havido uma alteração substancial) e nesse aspecto “o acesso às redes sociais é um dado que não pode ser ignorado em qualquer avaliação do espaço público de debates”. https://www.insper.edu.br/noticias/regulacao-da-internet-e-das-redes-sociais-mais-perguntas-do-que-respostas/

Com um número tão grande de usuários, são evidentes os impactos políticos e sociais das redes. E cabe indagar: quais os limites aceitáveis de participação política para milhões de usuários, considerando a liberdade de expressão? Como e o que fazer para que elas não se transformem em espaço de discursos de ódio, divulgação de mentiras, ataques à honra das pessoas etc.? Como afirma o documento de criação da Secretaria de Políticas Digitais não se pode nem se devem transformar as redes sociais e as plataformas digitais em verdadeiras “terras sem lei” na internet.

Com milhões de usuários, há um imenso desafio: Como punir fake news ou discursos de ódio nas redes sociais?  E mais: como fazer isso sem ser confundido como atentado à liberdade de expressão? A questão central parece que não é mais se é preciso, ou seja, se há necessidade de regulação, mas como regular. E ainda, quais as responsabilidades das plataformas digitais nesse processo?

O PL 2630/2020 (PL das fake news), que ainda não foi votado no Congresso Nacional, tem um papel relevante nesse sentido que entre outros aspectos, visa criar leis que possibilitem a criação de códigos de conduta não apenas para usuários como também para as plataformas digitais.

Sobre os impactos políticos e sociais do uso das redes, foi publicado no Brasil em 2023 o livro A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo (editora Todavia) de Max Fisher, repórter do New York Times que, baseado em ampla revisão de literatura, analisa a história e o funcionamento de grandes empresas de tecnologia, entrevistando centenas de especialistas e pessoas que estudaram, combateram, exploraram ou foram afetados pelas redes sociais (cientistas, usuários, vítimas, teóricos da conspiração etc.,) e um dos questionamentos é: o seu uso estimula comportamentos extremistas e a disseminação de notícias falsas? E sua resposta é sim, mostrando, em relação aos impactos na política, por exemplo, como se dá em processos eleitorais, afirmando que “a triagem mais simples do algoritmo pode mexer com os costumes das pessoas a ponto de virar o resultado de eleições” (p, 151).

O livro é dividido em 12 capítulos e um epílogo e um dos capítulos, A ditadura da curtida é dedicado ao Brasil, um dos países visitados pelo autor para escrever o livro.

Nesse capítulo, ele inicia fazendo referência a uma psicóloga que em 2012, participou de uma mesa redonda em uma escola sobre o combate a homofobia e, entre outras coisas, disse para um público restrito de pessoas, que não havia nada de incomum em uma criança expressar curiosidade pelo corpo de outra pessoa.

Como o debate foi gravado, um youtuber de extrema direita teve acesso, editou, reordenando suas palavras de modo a sugerir que ela havia incentivado a homossexualidade e o sexo entre as crianças (p.351) e enviou para o então deputado federal Jair Bolsonaro que já naquela época, tinha muitos seguidores e ele ampliou, divulgando entre seu séquito. Embora os grupos de extrema direita fossem relativamente poucos, eram muito ativos nas redes e no Youtube em especial e divulgaram amplamente o vídeo editado “acrescentando comentários e desinformação”. Para eles, a psicóloga “representava uma conspiração global comunista e homossexual”, com acusações de pedofilia, de distribuir kit gay na escola etc. usando sua fala para difamar e destruir sua reputação e segundo o depoimento dela ao autor, sua vida (a divulgação do vídeo chegou também ao Twitter e Facebook), e além das agressões verbais, pedidos de demissão da escola, houve também ameaças de morte que levou ao seu afastamento da escola e de colegas de trabalho, a deixando sozinha no mar da infâmia, da desinformação e da violência.

O autor cita também como youtubers de extrema direita incentivavam crianças para nas suas escolas filmarem seus professores, visando “levantar provas de doutrinação comunista-homossexual” que eram editadas e disponibilizadas em seus canais.

Para o deputado de extrema direita que recebeu e divulgou o vídeo, não importava as consequências da divulgação para a vida dela (seus familiares e amigos), mas apenas usar isso, de forma vil, para fins eleitorais. Fez parte do uso de desinformação, mentiras e manipulações para milhões de pessoas que não acessavam outros canais e muito menos agências de checagens nas quais poderiam perceber que eram vitimas de discursos de ódio, homofóbicos, mentirosos etc., usados para fins eleitorais.

O autor cita ainda em relação ao Brasil, entre as muitas mentiras que circularam nessas redes a existência um plano de uma (fictícia) USAL, que tinha como objetivo “unir a América Latina como um superestado pancomunista”. Uma mentira dirigida a um público desinformado e ignorante vitima dessa e de outras teorias da conspiração que ajudaram a eleger o candidato da extrema direita e uma expressiva bancada no Congresso Nacional na eleição de 2018.

Nesta eleição em particular é inegável que o uso das redes sociais foi de fundamental importância no processo eleitoral, sem que houvesse fiscalização e punição para os (i) responsáveis e como diz o autor “foi como se as próprias mídias sociais tivessem assumido a presidência” (p.355). Algo que não ocorreu, por diversos motivos, incluindo contraofensivas nas redes sociais, na eleição de 2022, quando o candidato da extrema direita foi derrotado.

Em 2018 houve um processo de desconstrução do PT e Lula, que culminou com sua injusta prisão, para tirá-lo da disputa eleitoral, que ele liderava nas pesquisas, um caminho que foi pavimentado não apenas pelos canais de extrema direita, com o uso político do Youtube, Facebook, Twitter e Whatsapp no processo eleitoral que atraiu usuários com teorias da conspiração, milhares de vídeos manipulados, assim como da operação Lava Jato - suas posições e intenções políticas – e da grande mídia (jornais, rádios e canais de televisão), difundidas impunemente nas redes sociais.

O autor cita, entre outros exemplos, o papel do MBL (Movimento Brasil Livre) com suas manipulações e mentiras e uma delas foi à divulgação de um vídeo, com milhares de acessos, no qual se afirmava que os abusos da ditadura (assassinatos, prisões, torturas, censuras, demissões, fechamento do Congresso Nacional, cassação de parlamentares, exílio, banimento etc.) tinham sido fabricados pela esquerda e que a ditadura foi imposta para salvar o país do comunismo, uma mentira que certamente influenciou milhares de pessoas, entre desinformados e ignorantes.

No livro de Max Fisher há alusão também às consequências do uso de redes sociais para a saúde e um dos exemplos citados ocorreu na cidade de Maceió (onde ele esteve) e mais especificamente em relação à Zika. Naquele momento havia no Brasil milhares de grávidas contaminadas pelo vírus que depois deram à luz crianças com danos neurológicos graves e que foram convencidas por propagandas enganosas (a troco de quê?) a não acreditarem nos médicos (os que defendiam vacinas) a não se vacinarem; que o vírus não vinha de um mosquito; que a zika era uma mentira, disseminada para legalizar o aborto etc.

E assim a exemplo do que ocorreu com a covid 19 depois, milhares de pessoas deixaram de tomar as vacinas, e muitos foram vítimas fatais, vencidos pela desinformação, impulsionada por canais de extrema direita “milícias mobilizadas pelos algoritmos” como disse Débora Diniz, antropóloga e professora universitária, uma das vítimas de difamação e ameaçada quando estava fazendo um documentário sobre o uso de vacinas da zika (inclusive em Maceió), teve de sair do Brasil e foi morar em New York.

Uma questão importante ao se debater esse tema é: Quem fiscaliza as redes sociais no Brasil? Atualmente em vigor é o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) regula as redes sociais, mas é uma lei ordinária federal que consiste em atuar como uma espécie de “Constituição da Internet”, mas que embora tenha sido um grande avanço em relação ao que existia anteriormente tem seus limites, como por exemplo, o artigo 19 diz que as plataformas são responsabilizadas por conteúdos de terceiros apenas se não tomarem ações contra um conteúdo alvo de decisão judicial. Nos demais casos, sem o pedido, elas não poderiam ser punidas ou multadas caso não tirem algo do ar. Daí há quem considere as atribuições originais do Marco Civil insuficientes (embora haja quem defenda que ele cumpre o desejado), mas é inegável a necessidade de ampliar o debate e aprovar uma lei no Congresso Nacional, uma nova legislação que se proponha a combater o impulsionamento de publicações antidemocráticas nas redes sociais.

Hoje é constatado que existe uma fragilidade das mídias digitais para coibir determinados conteúdos e nesse sentido é preciso mais do que uma lei ordinária federal, havendo a necessidade de ela ser feita não apenas no Congresso Nacional, mas em parceria com o Judiciário (o ministro do STF, Alexandre de Moraes, defende a adoção de mecanismos de regulamentação das redes sociais semelhantes à aplicada à mídia tradicional), Ministério Público e Plataformas Digitais.

E não é um problema específico do Brasil, por isso diversos países tem criado leis que regulam as mídias, com o objetivo de combater à desinformação com casos em que haja ameaça à democracia. Nos Estados Unidos, um dos exemplos, foi à eleição presidencial de 2016 na qual Donald Trump usou as mídias sociais para propaganda enganosa e compartilhar notícias falsas e ganhou a eleição, respeitada pelos seus adversários. No entanto, ao perder a eleição, não aceitou o resultado e estimulou seus seguidores a fazer o mesmo e culminou com a invasão do capitólio no dia 5 de janeiro de 2021(tentativa de golpe sem êxito), como ocorreu também no Brasil no dia 8 de janeiro de 2023. São os mesmos negacionistas em relação à pandemia de Covid-19, adeptos de teorias da conspiração etc., que tornam evidentes a potencialidade destrutiva das mentiras nas redes sociais e criam graves ameaças à democracia.

No Reino Unido é citado o caso do Brexit nos quais especialistas apontam que a opinião pública sobre a decisão do bloco de países do Reino Unido teria sido influenciada por notícias falsas e depois disso, o Parlamento Inglês passou a discutir a regulamentação das mídias sociais, a fim de evitar que a população fosse (novamente) vítima da disseminação massiva de fake news.

Foi esse o cenário que estimulou as discussões da regulação das redes sociais, não apenas no Reino Unido como em outros países, como no Brasil.

A União Europeia, preocupada com o uso indevido das redes sociais, definiu regras de monitoramento, maior responsabilização contra crimes virtuais e punições para o caso de não cumprimento das medidas nas plataformas digitais. Foi criada uma Comissão que publicou em dezembro de 2020 uma proposta de Regulamento de Serviços Digitais com normas que devem ser seguidas pelos provedores, sob a pena de aplicações de multas, a obrigação de elaboração de relatórios sobre atividades de moderação de conteúdo, criação de mecanismos que permitam usuários sinalizarem publicações consideradas ilícitas etc. (em casos de remoção de conteúdo, por exemplo, as empresas devem expor os motivos dessa decisão).

Na Alemanha desde 2011 existe a Lei de Imposição do Direito nas Redes de Comunicação, conhecida como Lei do Facebook, para combater discurso de ódio nas redes sociais, além da obrigação de remover conteúdos ilegais em até 24 horas. A responsabilidade pelo uso das redes sociais não são apenas das plataformas como também de cada usuário, estando sujeito a punições caso descumpra as políticas de seu uso.

Fundamentalmente, é preciso garantir as liberdades de expressão dos usuários, mas também não permitir que o ambiente online seja um território sem lei, que vale tudo e assim é necessário ter mecanismos eficientes quanto à responsabilização das plataformas digitais (das Big Tech em seus algoritmos), da divulgação de conteúdos ofensivos, crimes virtuais, de fake news, mentiras, manipulações, discursos de ódio e ataques à democracia.

No Brasil não por acaso, as plataformas mobilizaram seu poder econômico e de influência midiática em campanhas contra o PL das fake news, com a frase incluída no inferior da página do buscador mais acessado do país (Google) dizendo "o PL das Fake News pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil".

Os desafios sobre o papel e uso de meios de comunicação enfrentados pelas democracias desencadearam não apenas debates sobre o poder das tecnologias midiáticas para manipular populações, mas também a necessidade de uma legislação que possa coibir seu desvirtuamento, estabelecendo parâmetros e limites para os controladores das mídias e as plataformas digitais. Democracia implica na diversidade e pluralidade e não concentração de poder. A liberdade de expressão é fundamental para uma democracia, e nesse sentido garantir o acesso à informação de qualidade, não sujeito às mentiras, manipulações e discursos de ódio que caracteriza parte do que circula nas redes sociais e que não podem nem devem ser toleradas.

Como várias pesquisas têm mostrado a profusão da desinformação, a radicalização política com a ascensão da extrema direita coloca a regulação das plataformas como uma questão central, do ponto de vista social, político, econômico e cultural e é nesse sentido que a aprovação de um PL como o das fake news é fundamental não apenas para (tentar) conter a avalanche de mentiras como também impor limites aos que lucram com o impulsionamento de desinformação e fake news.

Regular não é censurar. As plataformas digitais precisam ser reguladas, pois só assim será possível ter um controle social mais efetivo sobre os (potenciais) riscos que elas geram nas redes sociais.

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