Se uma leitora numa tarde de domingo
Natal, RN 9 de mai 2024

Se uma leitora numa tarde de domingo

30 de outubro de 2023
5min
Se uma leitora numa tarde de domingo
Escritor Fernando Sabino / foto: acervo O Globo

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No mês de outubro deste ano, além do centenário de Fernando Sabino (tema do meu artigo anterior), outro escritor também completaria 100 anos caso vivo fosse: Italo Calvino (Cuba, 1923 - Itália, 1985). Aproveitando a ocasião, então, e já ciente da delícia de outras de suas obras lidas anteriormente (“O cavaleiro inexistente” e “O visconde partido ao meio” são inesquecíveis!), resolvi encarar a “densa barreira dos Livros que Você Não Leu” e tirei da prateleira o meu exemplar de Se um viajante numa noite de inverno. Com a alternativa muito melhor do que acompanhar algumas polêmicas de redes sociais (deve-se comemorar Halloween ou Dia do Saci?, por exemplo), espanei a poeira do meu livrinho e fui usufruir do meu privilégio de pessoa letrada classe média. É também a propósito do Dia Nacional do Livro que se comemorou neste domingo que me deter sobre esse livro de Calvino nestas considerações. Não, não se trata de uma resenha. Também não gostaria de seguir (pelo menos por ora) a linha de uma das personagens, caracterizada, um tanto sarcasticamente, da seguinte maneira:

“Se você começar a discutir, ela não o largará mais. Já o está convidando para um seminário na universidade, em que os livros são analisados segundo todos os Códigos Conscientes e Inconscientes e no qual são rejeitados todos os Tabus, impostos pelo Sexo, pela Classe Social, pela Cultura Dominante.

Mas ao mesmo tempo, não tenho como negar meus atravessamentos e interpelações etc. e tal, e à medida que vou avançando na leitura (que ainda vai pela metade inicial), vou tecendo indagações: é um romance ensaístico ou é um ensaio romanesco? Uma ficção sobre a ficção? Literatura metadiscursiva?

Classificações nos ajudam a organizar o pensamento e o caos do mundo (e de nós mesmos), mas podem ser também bem redutoras. Assim, mais importante talvez seja dizer simplesmente que o tema desse(s) romance(s) (há uma história dentro da outra nesse livro) é o próprio gênero literário romance, com alguns aspectos ligados ao próprio processo de escrita e de leitura de um romance. Comento rapidamente alguns.

Um primeiro aspecto que me chama a atenção é o das leituras paralelas. Muito antes (e para além) dos hipergêneros digitais (em que uma página remete a outra sucessiva e indefinidamente), Calvino já discorria sobre a condição da leitura de sempre se acompanhar de outra. Desde a reflexão sobre o ato de ler em si (“Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe”) até o enredo propriamente (um livro que está dentro de outro por um erro de impressão), a leitura é o grande tema desse livro e não à toa o leitor aparece como personagem (leitor do livro e leitor no livro). Esse que, por exemplo, confuso com as informações intrincadas entre um capítulo e outro das histórias diferentes, procura fontes como enciclopédias, dicionários e mapas que, em tempos antes do google, o auxiliassem no “decriframento” do texto.

Um segundo aspecto tem a ver com a questão da pluralidade do autor. Em determinado trecho, por exemplo, em que o personagem leitor conversa com a irmã de Ludimilla, também leitora e objeto de seu interesse amoroso. Em conversa telefônica, travam mais ou menos o seguinte diálogo:

- Alô, Ludimilla? Você notou que o romance é outro...
- Não, ouça, não sou Ludimilla, sou irmã dela, Lotaria. O que desejava?
- Era só para falar de um livro...
- Um romance? Ludmilla está sempre lendo romances. Quem é o autor?
- Bom, é um romance polonês que ela também está lendo, era para trocarmos impressões, o Bazakbal.
- Como é esse polonês?
- Bom, ele não me parece ruim.
Não, você não entendeu. Lotaria quer saber qual é a posição do autor quanto às Tendências do Pensamento Contemporâneo e aos Problemas que Exigem Solução. Para facilitar-lhe a tarefa, ela sugere uma lista de nomes de Grandes Mestres entre os quais você deve situá-lo.

O que a parte irônica final desse trecho sugere é um aceno para as muitas dimensões implicadas na função autor, desde o indivíduo que escreve, que tem sua singularidade estilística, que faz anotações, revisa e transforma os devaneios de seu ego em prosa ou verso, até o sujeito que assume um papel no mundo e que se posiciona (ainda que não direta e explicitamente por meio de sua obra). E mais: sujeito autor sobre o qual se atribuem posicionamentos.

Em meio a essa pluralidade de dimensões do autor, surge uma discussão muito delicada e desafiadora: que autores “devemos” ou não ler? Em tempos extremos de cultura de cancelamento (quando acusar já implica condenar), uma dessas facetas da autoria pode pesar mais que outra. Nessa linha, por exemplo, radicais de plantão podem dar de ombros para a engenhosidade criativa e estética de um Jorge Luís Borges, de um Monteiro Lobato ou de um Câmara Cascudo. Que se dane seu valor literário ou importância histórica, quero mais é saber se ele pertence à minha tribo (bolha). Excessos à parte, tento compreender tal atitude de pesar mais uma faceta que outra: afinal, como tolerar intolerantes? Como achar que ofensas raciais sejam tratadas ingenuamente como literatura?

Por outro lado, também não sei se negar a existência de uma obra/autor (da censura por amplos dispositivos à reescrita sem o aval do autor) será a melhor atitude, fazendo-me lembrar os índex de títulos condenados pela Inquisição ou pelo Nazismo, cheios de princípios moralizadores e afãs incendiários. Penso que a leitura pode (e precisa) ser mais uma questão de opção e desejo (ainda que isso seja construído por muitos condicionantes) e não uma questão de pura e simples imposição ou negação.

Enfim, essas são algumas das possibilidades que a leitura do livro de Calvino suscita. Na minha leitura, claro. Outras leituras são possíveis, certamente. Afinal, um livro sobre o universo discursivo dos livros só poderia mesmo abrir muitos caminhos de reflexão que, evidentemente, não cabem nestas palavras. E é esse mesmo o grande barato dos livros.

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