Fátima, essa mulher
Os alfas da direita e seus clones em outros extratos da sociedade potiguar são intolerantes a mulheres poderosas, mesmo quando integram seu campo ideológico ou partidário. A misoginia exibiu garras e dentes golpistas sempre que uma delas assumiu o Governo do Estado, rompendo assim as cercas do minifúndio historicamente reservado às mulheres na distribuição dos espaços de poder: as prefeituras e o Parlamento. Governar a terra de Poty-mais-macho era privilégio de varões gerados e nutridos nos mamilos do patriarcado.
A exclusividade acabou em 2002, quando Wilma de Faria massacrou nos dois turnos as forças multipartidárias mobilizadas pelos candidatos Fernando Freire e Fernando Bezerra (Governo), apadrinhados por José Agripino e Garibaldi Alves, que se reelegeram ao Senado. Apesar da surra de saias, os poderosos (qualificativo dos alfas usado com sucesso pelo marketing de Wilma) da hora não capitularam à vontade do povo e impetraram, em 2002 e 2006, ações pedindo a cassação do mandato dela por uso da máquina da Prefeitura de Natal, ocupada pelo aliado Carlos Eduardo Alves, e superfaturamento em um contrato da Secretaria Estadual de Educação e Cultura.
Para sacanear os perdedores chorões, o então prefeito de Parnamirim, Agnelo Alves, resgatou uma das melhores frases do ex-governador e jornalista fluminense Carlos Lacerda, notório pela inteligência e a língua ferina quando se tratava de alvejar adversários. Pouco antes da campanha presidencial de 1950, que propiciaria a volta de Getúlio Vargas (PTB) à Presidência da República pelo voto popular, o ex-comunista convertido ao udenismo disse que o então senador “não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para derrubá-lo.” Sem tropa e sem povo, os derrotados não tiveram como recorrer ao quarto passo do breviário golpista de Lacerda, depois de fracassar nos três primeiros, segundo a verve agnelista.
A substituta de Wilma em 2010 foi a ex-prefeita de Mossoró, Rosalba Ciarlini (DEM), alvo de um golpe partidário que cassou seu direito natural de se recandidatar. Assombrado pelo desgaste da gestão, que chegaria a 2014 devendo ao funcionalismo e aos fornecedores, entre outras mazelas cumulativas, o senador José Agripino derrubou o direito da Rosa, aprovando em convenção o apoio do hoje União Brasil à candidatura de Henrique Alves, presidente da Câmara Federal, derrotado por Robinson Faria no segundo turno.
A vitória de Robinson impediu um fato inédito na política brasileira: seis mandatos femininos sucessivos no governo de um estado. Eleito com o apoio do PT, Faria sucumbiu em 2018 à falta de ideias e de resultados; à irresponsabilidade fiscal, acumulando até quatro folhas salariais e realizando saques irregulares no fundo previdenciário; à crise social da segurança pública, que deixou presídios e ruas da Região Metropolitana de Natal e de cidades do interior entregues à bandidagem; e ao colapso de outros serviços essenciais, como a saúde. Perdeu a eleição e a cadeira para Fátima, que se reelegeu em 2022 e agora paga o preço de ter contribuído para reduzir alfas da direita à condição de ex-alguma coisa.
Ela é tudo o que os ogros do conservadorismo abominam, até quando dizem o contrário: é mulher, de família pobre, parda, forasteira, gay, sindicalista e filiada a um partido de esquerda. Um perfil perfeito para açodar a misoginia, a aporofobia, o racismo, a xenofobia, a homofobia e o bolsonarismo – escrachados ou eufemizados pela demagogia – que estruturam a hegemonia rompida em 2018.
Igual a Wilma e Rosalba, Fátima convive com ações que pedem a cassação do seu mandato. E como a Justiça tem rejeitado esse terceiro turno no tapetão, os vencidos agora aplicam o último macete do breviário lacerdista: derrubá-la. Não pela revolução armada, porque não têm exército (ou povo) para tal, mas por meios institucionais consubstanciados no estrangulamento financeiro do governo, como fica claro nos debates e posturas oposicionistas sobre prorrogar a alíquota de 20% do ICMS, que expira em 31 de dezembro. O RN é o único estado nordestino – quiçá do país – a não ter majoração definitiva da alíquota para compensar perdas acarretadas por decisões eleitoreiras do governo Bolsonaro.
A rejeição não guarda nenhum senso de responsabilidade com a higidez fiscal, embora bolsonaristas na Assembleia Legislativa e na mídia se esfalfem para induzir tal percepção na sociedade, em contradição com tudo o que disseram e fizeram para defender a gula fiscal de outros governantes, com alíquotas muito maiores. O que há nas duas tropas, a dos políticos e a dos comunicadores, é apenas a obsessão por inviabilizar a gestão e fragilizar a liderança da professora.
O bombardeio é pesado e incessante. Seus efeitos são potencializados pelos erros de articulação e comunicação em que o governo reincide desde o primeiro mandato. No caso do ICMS, o contra-ataque (quando há) segue tom demasiado institucional, como se água de rosas pudesse algo contra lança-chamas. Deixa-se de mostrar à sociedade que a verdadeira motivação dos valentes está nas entrelinhas de tanta baboseira sobre ICMS despejada no plenário e na mídia alinhada: abater Fátima, antes que ela e outrem de perfis convergentes façam os alfas derrotados evoluírem de espécie em extinção para espécie extinta, substituídos pelas alfas.