Meu avô é Jesus
Natal, RN 10 de mai 2024

Meu avô é Jesus

23 de dezembro de 2023
4min
Meu avô é Jesus

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Silêncio
na serra, nos campos,
ai, desencanto que a gente tem.
E o vento que sopra, ressoa,
ai, sequidão que traz desolação.

Oh, Jesus razão,
tão sertanejo,
que entende até de precisão...

Luiz Gonzaga

Há algumas semanas estive no “Conversa de Botequim”, ótimo programa de entrevistas do amigo Cefas Carvalho. A última pergunta foi sobre eu ser uma cristã de orientação protestante. Como era escrever textos que combatiam o conservadorismo tão danoso às vidas de mulheres e jovens das igrejas? Eu sofria represálias?

Ao terminar a entrevista, sentei-me na mesa onde estava uma moça que rapidamente fez a seguinte questão: “sério que você é crente?” O rosto dela mostrava a incredulidade dos que consideram evangélicos e progressistas opostos.

Ela tem razão até certo ponto. De fato, há um enorme contingente cristão que defende o armamentismo, por exemplo, e se opõe à comunidade LGBTQIAP+, ao feminismo, à luta dos sem-terra etc., bandeiras que os progressistas levantam nos vários lugares sociais onde circulam.

Mas, precisamos entender que os “crentes” brasileiros não se abrigam sob um único teto de fé. Há várias denominações que divergem profundamente entre si. Entre elas existem igrejas e pastores/pastoras progressistas que defendem os mesmos temas que agnósticos, espiritualistas, candomblecistas, umbandistas e ateus progressistas defendem.

Entre os teólogos que fazem minha cabeça vou citar os seguintes: Henrique Vieira, Vanessa Barboza, Lusmarina Garcia, Silvia Geruza Rodrigues, Ricardo Gondim, Ed René Kivtz e Caio Fábio. Pode pesquisá-los na internet e constatar sua luta em defesa dos valores morais que abraçamos. Mesmo que você não seja religioso (e isso não importa a nenhum deles, porque não dialogam somente com seus pares) vai se inspirar.

Aturdida com a pergunta feita “à queima roupa”, acovardei-me. Disse à moça que não me considerava mais “crente”. Tive vergonha de uma certeza que me acompanha desde a 1ª infância. Algo tão sagrado para mim quanto a própria vida. Tive dúvida. Por um instante já não sabia se cria em algo transcendente. Faz tanto tempo que não vivo a rotina de uma evangélica...

Chegando em casa fui para o meu refúgio/templo: a rede em que me balanço todos os dias como um remédio contra os males da alma. Recordei dos momentos em família em que o evangelho fazia sentido...

Meu avô era um bom homem e eu sabia disso por seu comportamento: ele era afetuoso e pacífico, inclusive como marido e pai. Também foi pobre por toda a vida. Um paraibano fugido da seca em 1930, trazendo consigo os pais e a única irmã que se salvou da morte, após onze irmãos terem morrido.

Vovô acordava muito cedo. Às quatro da manhã, já estava de pé e fazia as primeiras orações do dia ajoelhado ao lado da sua rede. Depois enchia o grande pote de barro da cozinha com a água fresca que havia no tanque do quintal. Era uma água tão agradável e revigorante quanto a presença de vovô na família!

Seu Genésio me perdoou por ter quebrado o pires em que esfriava seu sagrado café há cinquenta anos, não se importava que os vizinhos não fossem crentes e gostassem de ouvir música alta (Elba Ramalho e Gal Costa principalmente). Eram amigos e seus hábitos seculares nunca foram criticados em nossa casa.

Vovô é o motivo de eu continuar crendo. Ele, que agora dorme o sono dos justos, me revelou o Cristo pobre, resistente, bondoso, sincero e exemplar que sigo, apesar das igrejas excludentes, dos pastores mentirosos, dos crentes conservadores, das doutrinas homofóbicas, sexistas e violentas.

Nosso Natal de 2023 será comemorado sem fartura de comidas e bebidas, mas transbordando de afeto. Nele, adoraremos nosso Jesus real, personificado nas pessoas reais: imperfeitas, indefesas e finitas. Mas, acima de tudo, honestas e capazes de manter a chama da cristandade acesa nos corações de quem já se decepcionou com tudo o mais.

Feliz Natal!

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