Sionismo, racismo e limpeza étnica: algumas perplexidades
Natal, RN 9 de mai 2024

Sionismo, racismo e limpeza étnica: algumas perplexidades

16 de dezembro de 2023
9min
Sionismo, racismo e limpeza étnica: algumas perplexidades

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Em seu livro intitulado “O Estado escravo: minhas confrontações com a SS”, Albert Speer, arquiteto chefe e ministro do armamento da Alemanha nazista, lembra que Hitler, em uma conversa privada com colaboradores próximos, durante um jantar logo após o início da operação Barbarossa contra a União Soviética, em Junho de 1941, teria dito: “As pessoas perguntam: como o Füher pode destruir uma cidade como São Petersburgo? Quando vejo que a própria raça está em perigo, o sentimento em mim dá lugar a razão mais glacial: passo apenas a ver as vítimas que o futuro faria se não fizéssemos sacrifícios hoje. Para mim, está perfeitamente claro (...) São Petersburgo deve desaparecer, ponto. Temos de voltar aos princípios da antiguidade: a cidade precisa ser arrasada até as fundações”.

Esse tipo de lógica de uma guerra de extermínio total contra as populações do Leste da Europa aparece em vários outros momentos da retórica de Hitler. Quando ele afirmava, por exemplo, como cita Johan Chapoutout no seu livro “A revolução cultural nazista”, que o objetivo do ataque à Polônia seria o de “exterminar fisicamente o inimigo” de maneira que as tropas alemães deveriam, se necessário, “eliminar sem hesitação nem piedade qualquer homem, mulher e criança de raça polonesa”; o que Hitler procurava fazer era apontar para um tipo de combate ligado a uma ideia de limpeza étnica, genocídio e colonização dos territórios europeus por comunidades germânicas.

Esse modus operandi que une racismo, colonialismo e limpeza étnica, na verdade seria apenas uma transferência, para as terras do norte, daquilo que as potências europeias já haviam feito nas Américas, na  África e na Ásia.

A equação que movia o impulso nazista em direção à guerra total unia a ideia de povo alemão (Volk) à noção de sangue (Blut) e de terra (Land). A limpeza étnica nazista era movida por um discurso que apontava para um risco de extermínio do povo alemão (entendido como uma unidade racial) que estaria cercado por inimigos e na iminência de um ataque fatal que poria em cheque o seu próprio espaço vital (Lebensraum). Expandir seu território, exterminar outros povos e limpar o terreno para a instalação de colônias, era visto, dessa forma, como uma questão de “vida ou morte” para a “raça nórdica”.

Essa paranoia do extermínio iminente foi alimentada cuidadosamente pela máquina ideológica de propaganda nazista, que usou para isso, inclusive, dados estatísticos que mostravam que se em 1810 haviam 59 milhões de nórdicos e 65 milhões de eslavos; as projeções mostravam que em 1960 haveriam 303 milhões de eslavos  e apenas 160 milhões de nórdicos.

Para quem estuda um pouco mais a fundo o nazismo, causa muita perplexidade se deparar com declarações de autoridades israelenses sobre o ataque à faixa de Gaza que soam desconcertantemente semelhantes às declarações de Hitler e de outros expoentes de seu regime.

Quando Yoav Gallant, ministro da defesa de Israel, diz: “nós estamos lutando com animais humanos e nós devemos trata-los como tais”, quando Benjamim Netanyahu diz que irá transformar Gaza em uma “ilha deserta”, quando o presidente de Israel, Isaac Herzog declara que “não é verdade essa retórica acerca de que civis não estavam cientes, não estavam envolvidos” (em relação aos ataques terroristas do dia 07 de Outubro) ou a deputada Merav Bem-Ari afirma no Knesset (parlamento israelense) que as crianças de Gaza são igualmente responsáveis pelo terror; o que se percebe é uma mórbida semelhança com o discurso que os nazistas usaram para validar e justificar o genocídio contra Judeus, ciganos e eslavos.

Essa semelhança se explica em parte porque existe um problema filosófico de base na arquitetura do pensamento sionista que cria um vínculo absolutamente desconcertante com o pensamento nazista. Um vínculo que hoje, diante do massacre da população palestina em Gaza e do avanço do sistema de colonização e limpeza étnica na Cisjordânia, salta aos olhos e aos ouvidos, no discurso dos membros da extrema direita de Israel e nas ações das “Forças de Defesa” de Israel ou de colonos israelenses.

O sionismo nasce no século XIX como uma reação ao processo de assimilação cultural que as comunidades judaicas começaram a sofrer na medida em que os preceitos liberais do código de Napoleão e os princípios jurídicos iluministas, criavam condições de maior igualdade entre judeus e cristãos. No esteio do movimento de emancipação dos povos, capitaneado pelas revoluções modernas, os judeus saiam de seus guetos na medida em que suas comunidades conquistavam uma maior isonomia de direitos em relação aos não judeus (inclusive o direito de casamento inter-religioso e de ocupação de cargos públicos). Nesse contexto, o sionismo aparece como uma tentativa de “preservação da identidade nacional judaica” que estaria sobre risco de eliminação e extermínio na medida em que um número cada vez mais membros da sua comunidade passavam a viver como os gentios, assumindo inclusive, muitas vezes, a sua religião. 

Para fazer valer esse projeto, o sionismo transformou radicalmente o judaísmo europeu, que deixou, aos poucos, de ser um agregado cultural e religioso profundamente heterogêneo, plural e diverso, marcado pela presença de formas culturais peculiares com seus dialetos próprios (como o Ladino ou o iídiche); e passou a ser encarado como uma unidade étnico-racial. A palavra em hebraico Am (povo), passou, desse modo, a ser usada em um sentido que a assemelhava ao termo germânico (Volk) e a palavra russa (narod).

Essa ideia levou à incorporação ao sionismo de teorias racistas, típicas do século XIX, que também alimentaram o ideário nacional socialista. Em sua “Carta sobre o autonomismo”, o escritor, poeta, tradutor e militar judeu ucraniano, Vladimir Jabotinsky, escreveu que: “o sentimento de identidade reside no sangue do homem, em seu tipo físico e racial, apenas ai (...) o tipo físico de um povo reflete sua estrutura mental de maneira ainda mais total e perfeita que o estado de espírito individual”.

Essa referência a um “apelo étnico do sangue” e a noção de que o judeu seria portador de um “sangue” particular que o diferenciaria de outros grupos humanos, percorre, tanto as teorias antissemitas conspiratórias do terceiro Reich quando uma noção de supremacia judaica ou de direito divino sobre a terra de Israel que alimentam hoje o ideário de expoentes da extrema direita israelense como Itamar Ben Gvir, herdeiro direto do fascismo sionista de Jabotinsky e do terrorismo kahanista.

Nesse ponto, sionistas e antissemitas acabam curiosamente se encontrando. Essas ideias, que compartilham um mesmo fundamento filosófico, acabam servindo para justificar, não apenas a desumanização dos árabes palestinos (tratados todos como bestas humanas incivilizadas, ou como “terroristas” que merecem morrer), mas também o seu extermínio físico e a ocupação de seu território mediante a instalação de colônias de povoamento.

Essa semelhança desconcertante leva a uma segunda perplexidade: como seria possível que Israel, um Estado que se apresenta como sendo “judeu”, possa ser hoje, em 2023, o artífice de um processo de limpeza étnica e sustentáculo de um sistema de apartheid racial nos territórios ocupados da Palestina? Afinal, não foram os judeus vítimas, eles mesmos, de um dos mais brutais genocídios da história moderna perpetrado pelos nazistas?

A resposta a essa perplexidade não requer muito esforço, afinal, não há nenhum sentido pedagógico no genocídio. O extermínio, o massacre e a limpeza étnica não são ferramentas de aprendizado, mas sim elementos de trauma coletivo e de apavoramento ideológico permanente.

E é justamente esse trauma coletivo e esse medo constante de um novo holocausto iminente que é frequentemente mobilizado pelos mecanismos ideológicos do sionismo, mantendo os israelenses reféns de um sentimento de constante ameaça existencial que os leva a agir para com o “inimigo árabe-terrorista” do mesmo modo que os alemães de 1933 (eles também submetidos a esse mesmo discurso de extermínio iminente) agiam para o com o “inimigo judeu”.

Enquanto concluímos esse ano de 2023, assistindo estarrecidos, pelos nossos aparelhos celulares, mulheres e crianças palestinas serem exterminadas por bombas, tiros de rifle a queima roupa, pela fome e pela sede; enquanto as forças de Israel reduzem a um amontoado de ruinas esfumaçadas cidades inteiras na faixa de Gaza, como Hitler sonhou um dia fazer com São Petesburgo, mantemos nossa perplexidade diante do futuro.

Se hoje, o que Israel faz em Gaza nos parece um anacronismo injustificado, fazendo eco ao que os nossos ancestrais europeus fizeram aqui nas américas com os povos originários, ou o que os nazistas fizeram com os próprios judeus asquenazes e com a cultura iídiche da Europa central; nos perguntamos sombrios se o que vemos agora na chamada “terra santa” não seria menos um fantasma de um passado genocida que retorna para nos assombrar com suas misérias e mais os auspícios de um futuro sinistro que se descortina para os povos oprimidos da terra nas décadas que virão.

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