Quando amar nos consome
Assisti recentemente o filme que estreou em agosto passado no Brasil: Passagens (Passages, do diretor Ira Sachs), estrelado por Franz Rogowski (Tomas Freiburg), Ben Whishaw (Martin) e Adèle Exarchopoulos (Agathe). A história gira em torno de um triângulo amoroso. Tomas é um diretor independente, casado com um editor literário, Martin. Ao terminar as filmagens de um filme, Tomas conhece Agathe, uma professora primária e se apaixona por ela. Já de cara, o filme mostra a plêiade de possibilidades que orbita nos relacionamentos humanos. Vou me segurar para não dar spoiller, porque o que me interessa aqui é falar sobre o que o filme me fez pensar.
Trailer Oficial
Pois bem, o humano é por essência um ser relacional. É tão verdade isso que se um bebê for abandonado à própria sorte com apenas um mês de vida, ele não sobrevive. Já outros seres são capazes sim de andar, de buscar comida e tentar se defender dos horrores do mundo. Nós não! Nós precisamos uns dos outros. Precisamos de cuidados, de sermos alimentados, protegidos, ensinados a andar, falar e assim por diante vida afora.
Daí, vamos crescendo, nos desenvolvendo, construindo nossas subjetividades e nos deparamos com uma outra essência paradoxal e ambivalente que é a solidão. Somos também, em essência, seres únicos e, portanto, preservamos - uns mais, outros menos - um forte sentimento de solidão. Muitas vezes, quanto mais gente, mais nos apercebemos sozinhos. Basta lembrar das festas de final de ano que aconteceram há pouco. Tanta gente e tanto barulho incapazes de ouvir o que gritam nossos silêncios.
Em si tratando de relacionamentos, existe um termo muito usado na contemporaneidade, criado pelo filósofo e sociólogo polonês, Zygmunt Bauman. Segundo ele, vivemos na era dos "amores líquidos". Alguém já tentou segurar água nas mãos? Sempre que eu penso nessa expressão, eu penso imageticamente nessa metáfora. E acho que agora vou me lembrar muito desse filme também. Ao contrário do sentido de fluidez no campo econômico, que traz segurança, a fluidez no campo das relações nos torna descartáveis, desinteressantes. É possível amar alguém durante um webnamoro e, em duas semanas, com dois cliques, deletamos e cancelamos essa pessoa.
Claro que a solidão nos singulariza em várias frentes. Por exemplo, ninguém jamais conseguirá mensurar como é a dor de cabeça do outro. A gente pode até fazer ideia, mas a gente só sabe mesmo como é a nossa dor, como são as nossas alegrias, nossas emoções, o que nos afeta. E, convenhamos, muitas vezes sequer conseguimos nos compreender direito.
No filme, quando Tomas decide dar segmento à relação com Agathe, ele precisa abrir mão de uma vida que tinha ao lado de Martin. E esse é o momento em que o fio do novelo é puxado e que vai trazer à tona a trama e os conflitos que surgirão nos 91 minutos da película que não explora, definitivamente, o corpo feminino. O contrário, já não posso afirmar.
Vivemos, portanto, a era da flexibilidade e da insegurança. Da facilidade e da fragilidade. Da vitrine que nos faz visíveis, à dificuldade de construirmos vínculos sólidos. Afinal, Narciso só é capaz de amar a si mesmo. Tomas é aquele personagem típico que ao olhar no fundo dos olhos do ser amado, só vê o próprio reflexo. Ele não é capaz de transpor a lâmina da convivência, dos conflitos, das discordâncias. Ele só fica boiando no próprio desejo. E isso vale para todo mundo.
É fato que nos tornamos consumo uns para os outros. E isso não tem nada a ver em ser catastrófica, nem é uma tentativa de lacração. Consumimos uns aos outros sim. A questão é, e quando isso nos consome? O que fazer depois? Quem é que paga essa conta?