O avanço do retrocesso: o “baixo clero” no Congresso Nacional
Natal, RN 2 de jul 2024

O avanço do retrocesso: o “baixo clero” no Congresso Nacional

30 de junho de 2024
10min
O avanço do retrocesso: o “baixo clero” no Congresso Nacional

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No Brasil o termo baixo clero passou a ser utilizado para parlamentares de pouca ou nenhuma expressão no Congresso Nacional (O clero surgiu com a Igreja Católica na Idade Média e é representado pelos padres, bispos, arcebispos, cardeais e o papa. A distinção entre alto e baixo clero é que o primeiro é formado por cardeais, arcebispos, patriarcas, bispos, com poder de decisão e historicamente oriundos de famílias ricas, enquanto o segundo são os sacerdotes e diáconos, em geral, oriundos de famílias pobres). (https://www.significados.com.br/clero/).

No dia 26 de junho de 2024, Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política (SP), publicou um artigo na revista Carta Capital cujo título é O baixo clero no poder, no qual destacou dois projetos que para ele são reveladores do poder do baixo clero que contribuem com suas práticas fisiológicas para o que ele chamou de “degradação moral e política do Congresso Nacional”: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que criminaliza os usuários de drogas e o PL 1904/24 chamado por seus opositores de PL do Estupro

Em relação à PEC das drogas, no dia 16 de abril de 2024 foi aprovada no Senado. Ela criminaliza a posse e o porte de drogas, independente da quantidade (foram 53 votos favoráveis e nove contrários no primeiro turno e 52 votos favoráveis e nove contrários no segundo turno. O único partido a orientar voto contrário foi o PT). (O projeto está na Câmara dos Deputados e já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça)

Para Fornazieri “Além de irresponsável, a PEC tem um claro intuito de ampliar a repressão aos jovens pobres e negros das periferias, que já são vítimas de um sistema social injusto, discriminador e racista”.

No entanto, no dia 25 de junho de 2024, o Supremo Tribunal Federal formou maioria (8 x 3) para descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal e teve ampla repercussão, usado de forma distorcida pela extrema direita, dentro e fora do Congresso Nacional, como se o STF tivesse decidido liberar o uso de drogas indiscriminadamente. No dia seguinte o STF decidiu que até 40 g de maconha diferenciam traficante de usuário. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, disse que a decisão deveria ser atribuição do Congresso e não do STF e o presidente da Câmara, Artur Lira, decidiu instalar uma comissão para analisar a PEC .

 Quanto ao Projeto de Lei (PL) 1904/24, é de iniciativa do deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) que equipara o aborto realizado após a 22ª. Semana de gestação a homicídio, com pena de 20 anos de prisão (o dobro de quem comete o estupro). 

No caso deste PL, a condenação ocorrerá mesmo quando a interrupção da gravidez é permitida pela legislação em vigor. São apenas em três casos: quando a mulher é vitima de estupro (violência sexual), quando a gestação traz risco à vida da mãe ou em caso de diagnóstico de anencefalia fetal (em abril de 2012 o STF estabeleceu que a gestante tem liberdade para decidir interromper a gravidez caso seja constatada, por meio de laudo médico, a anencefalia do feto). 

Afora esses casos, o Código Penal estabelece uma pena de um a três anos de detenção para a mulher que aborta, de um a quatro anos para o médico ou pessoa que promova o aborto com o consentimento da gestante e de dez anos para quem provoque o aborto sem o seu consentimento.

A aprovação da urgência do PL, aprovado por 32 deputados em votação relâmpago (23 segundos) no dia 12 de junho de 2024, significa que passará direto para a votação no plenário, sem debates ou mesmo passar em comissões da casa. E só não foi submetido à votação em função da ampla (e negativa) repercussão e especialmente pela mobilização de mulheres nas ruas em várias cidades do país contra o PL.

Uma das consequências desse projeto é que vai agravar os casos de gravidez de meninas até 14 anos (daí o PL também ser chamado pelo movimento feminista como PL da gravidez infantil). Segundo o Ministério da Saúde há em média sete casos registrados de abortos por dia no país e que o número de abortos previstos em lei cresceu 71% e são justamente os já previstos em lei que o PL (e a extrema direita) quer criminalizar. 

 Segundo a Nota de Repúdio da Rede Não Cala (professoras e pesquisadoras pelo Fim da Violência Sexual e de Gênero da Universidade de São Paulo) o PL 1904/24 “é inconstitucional, extremamente violento à vida de mulheres, meninas e pessoas que engravidam após violência sexual, representa um imenso retrocesso em relação aos direitos de meninas e mulheres vítimas de estupro, além de culpabilizar mulheres pelos crimes que os homens cometem”.

De acordo com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o PL viola o Estatuto da Criança e do Adolescente e contraria normas internacionais que o Brasil é signatário.

Sobre esse PL destacaria um parecer da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o trabalho que tem sido feito por uma organização feminista, a Azmina, em especial em relação a esse PL (e outros que impactam a vida não apenas das mulheres, como de pessoas LGBTQIA+ no Congresso Nacional). 

Em relação a OAB, no dia 17 de junho de 2024 foi aprovado um parecer técnico-jurídico de uma comissão e assinado pelos 81 conselheiros federais.  Segundo a presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada e uma das relatoras do Parecer, Cristiane Damasceno Leite “Tendo em vista que a proposta padece de inconvencionalidade, inconstitucionalidade e ilegalidade, manifestamo-nos pelo total rechaço e repúdio ao referido projeto de lei, pugnando pelo seu arquivamento (...) haja vista que a criminalização pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas duramente conquistadas ao longo da história, atentando flagrantemente contra os valores do Estado Democrático de Direito e violando preceitos preconizados pela Constituição da República de 1988 e pelos tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro”.

Para a comissão, o texto apresentado no PL é “grosseiro e desconexo da realidade e denota o mais completo distanciamento de seus propositores às fissuras sociais do Brasil, além de ignorar aspectos psicológicos (...) da saúde clínica da mulher que corre risco de vida em prosseguir com a gestação e da saúde mental das mulheres que carregam no ventre um anencéfalo”. O parecer com 41 páginas.

Quanto à Azmina é uma organização feminista sem fins lucrativos que tem como missão promover a igualdade de gênero. Defende a descriminalização do aborto e da justiça reprodutiva e sempre atentas as “manobras legislativas e o lobby antiaborto que vem ganhando força em tantos espaços de decisão sobre políticas públicas”. Além de publicar uma revista digital (Azmina), tem projetos como Elas no Congresso e Mapa das Delegacias da Mulher, e campanhas para combater a desigualdade e a violência de gênero. 

E desde 2020, monitora a ofensiva antidireitos das mulheres e as tentativas de influenciar a regulamentação — ou a criminalização — de qualquer tipo de interrupção da gravidez no Congresso Nacional, com o PL 1904/24. Elas fizeram um levantamento e de 42 projetos analisados, só três representam avanços para “garantir um procedimento digno às pessoas gestantes”. Os demais são retrocessos, protagonizados principalmente por homens (a maioria, brancos), quem detêm o maior número de cadeiras no Legislativo federal (são 488 homens e 106 mulheres) dos 594 (513 na Câmara dos Deputados e 81 no Senado). 

Em relação ao poder do baixo clero e em especial à presidência das duas casas legislativas, Fornazieri se refere à irresponsabilidade política de ambos como forma de “solapar a democracia ao empunhar pautas que estimulam a disseminação das políticas de ódio e violência e cujas agendas (...) não é do povo e do engrandecimento do Estado”. Para ele “É a agenda dos medíocres e dos irresponsáveis que colocam suas ambições pessoais acima dos interesses do país”.

Agenda que é mais ampla do que os projetos citados. Há muitos no Congresso que vão na mesma direção dos retrocessos. Como disse o senador Fabiano Comparato (PT/ES) em entrevista a revista IstoÉ de 26 de junho de 2024 “a extrema direita fomentou um ambiente de retrocesso tão perigoso que pode radicalizar a opinião pública brasileira ainda mais, colocando em pauta leis mais dura, como prisão perpétua e até pena de morte, sonha de consumo da tríade que ficou conhecida como bancada BBB (boi, bala e bíblia)”. Nesta bancada, que juntas formam a maioria dos parlamentares, é onde se concentram os integrantes do baixo clero. A matéria de capa da Revista faz um resumo do Congresso Nacional: o pior congresso da história. Ignorância, extremismo, agressividade patética, preconceito e comprometimento com interesses obscuros dominam os parlamentares na Câmara e no Senado e transformam o parlamento em um circo de horrores. Na matéria Circo de horrores, o jornalista Vasconcelo Quadros escreve: “Reunidos nas bancadas fisiológicas do Congresso – boi, bala e bíblia, a BBB, parlamentares radicais, desinformados, violentos e negacionistas formam maioria na Câmara e no Senado e chantageiam o Executivo, na mais trágica legislatura da história do país”.A esquerda e os democratas no Congresso Nacional são minoritários e resistem como podem a avalanche de insanidades e retrocessos. No livro “Tudo bem ficar com raiva do capitalismo” (Companhia das Letras, 2023) Bernie Sanders - senador dos Estados Unidos (Independente) diz algo sobre os Estados Unidos que vale para o Brasil no enfrentamento do atraso e reacionarismo do Congresso Nacional - não apenas do baixo, mas do alto clero- e também fora dele: “Agora é a hora em que, com toda a nossa energia, também devemos nos opor às forças reacionárias e neofascistas que estão minando a nossa democracia e nos levando ao autoritarismo e à violência enquanto usam minorias como bodes expiatórios e tentam nos dividir com base em raça, gênero, orientação sexual ou etnia”.

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