A danação da Ortodoxia: a peleja do “bom revolucionário” contra o “mundo cruel”
Natal, RN 18 de mai 2024

A danação da Ortodoxia: a peleja do “bom revolucionário” contra o “mundo cruel”

28 de abril de 2023
5min
A danação da Ortodoxia: a peleja do “bom revolucionário” contra o “mundo cruel”

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Uma das coisas mais irritantes que permeiam os movimentos que se denominam “de esquerda” é a tendência a fazer uma leitura rasa, incompleta e oportunista da vasta literatura marxista, quando faz, para se revestir do sagrado véu do “purismo revolucionário” ou até um enfadonho “purismo de princípios”, para criar uma espécie de “corolário de regras” para os partidos, movimentos sociais, culturais, sindicais, podendo chegar até ao jogo de bilhar.

Na chamada esquerda, aqui e alhures, há grupos que parecem mais pastores da IURD, na sua militância da fé cega na revolução que eles sonham, embora a realidade os esbofeteie continuamente, empurrando-os para Nárnia ou outro mundo fantasioso, em que as madraças revolucionárias os esperam para o refinamento teórico, que lhes guie para a próxima revolução. Para esses grupos a revolução está sempre ali, na esquina, basta um empurrãozinho e a sociedade acordará da sua nefasta alienação.

E diante de um cenário onde domina o modo de produção capitalista, onde o “mundo das ideias” que domina é o da classe dominante, exigindo um esforço cognitivo para entender que neste mundo real, concreto, onde a mais-valia é extraída na marra, no convencimento ou até na colaboração, achar que a “consciência de classe” é parte de um ritual mágico, onde os elfos revolucionários dançam em volta das fogueiras e num estalar de dedos o proletariado acorda ciente e consciente da sua condição de classe, torna esses elfos as figuras sapientes, talvez messiânicas que ao gritar louvores a Marx levarão a “verdade revolucionária” aos incautos.

E nesse mundo real, a política existe não como se estivéssemos em Atenas, mas no mundo sujo e real do capitalismo, que deforma, corrompe e deturpa. E os partidos, partes de diversos segmentos, expressam esse mundo, assim como os sindicatos e os movimentos sociais, suas limitações e contradições. Nada escapa. Os indivíduos, que não nascem com a leitura da literatura de Marx, vivem e convivem num ambiente em que a luta política, mais do que um xadrez, é uma luta feroz pela sobrevivência e pelo desafio de ser visto como “alguém”, gerando a espetacular e trágica disposição a olhar o processo como a sua sobrevivência.

As alianças políticas, coligações, coalizões, frentes, movimentos, acertos e quaisquer outra forma de acerto, se dá no ambiente capitalista e não num mosteiro revolucionário onde, na entrada, está cravado as 95 teses do “bom revolucionário”. O purismo eleitoral condena os que não entendem e compreendem o sistema capitalista. E muitos gritam: a esquerda está ausente!

O arquiteto da maior revolução do século XX, perseguido e submetido às duríssimas condições, afirmava que as alianças políticas são uma necessidade da luta revolucionária, desde que os princípios sejam preservados. Mas os “princípios” tem, para alguns grupos de esquerda, a mesma força de um remédio de feira. Serve para manter a moldura de um retrato que só eles veem: o revolucionário puro. Lendo e observando como os grandes revolucionários do século conduziram suas lutas, tais como Lenin, Stalin, Mao, Ho Chi Min, Enver Hoxha, Fidel Castro, entre outros, e que chegaram ao poder, veremos que a luta impôs a essas figuras decisões que na cartilha do “bom revolucionário” não cabem.

Sindicatos, sob determinados aspectos, se tornaram o refúgio desses revolucionários de plantão, cujo discurso bem caberia na Londres do século XIX, dada a sua verve, sua ferocidade, sua galante pretensão de tornar o sindicato o ponto zero da revolução; de tornar os movimentos sociais a forja principal da consciência de classe, sendo que a bandeira identitária se torna até mais revolucionária do que a própria baliza da luta de classes. Gritar, esbravejar, cancelar e apontar o “dedo vermelho” para os “revisionistas”, “vendidos”, “pelegos” e outros adjetivos que estes militantes embevecidos por sua radicalidade, se torna a sua melhor arma política. A ortodoxia, cada vez mais ortodoxa, os alimenta, os alegra e os empurra para círculos cada vez menores e mais altissonantes. Tal qual Luís XIV, que se achava o Estado em si o “verdadeiro revolucionário”, que range os dentes para qualquer debate fora do seu “cercadinho”, afirma: eu sou a Revolução!

Contando com o amparo, nem sempre amistoso, dos hegemonistas, essas forças, pequenas e incipientes, sobrevivem da radicalidade, longe do cotidiano do proletariado e assalariados que deixam para eles o pequeno espaço de prazer, dirigir entidades ou ser fiscais revolucionários das direções.

Nada é mais irritante, para mim, do que quando ouço “precisamos dar consciência ao povo” ou “vamos convocar o povo para as ruas”, como se o tal “povo” fosse uma massa à espera de um santo revolucionário.

A luta política, dentro de um sistema que, na raiz, é corrupto, não admite gracejos ou radicalismos estéreis. Cada pequena vitória se dará, infelizmente, num ambiente cuja toxicidade depende, em grande medida de como nós poderemos convencer as pessoas que uma vida melhor e mais justa se dá num ambiente diferente desses. E esse convencimento, no século XXI, onde o desenvolvimento tecnológico trouxe consigo a ignorância e a estupidez.

As famosas condições objetivas e subjetivas, longe de serem uma fantasia, são a realidade e esses pequenos grupos, cada vez mais convencidos da sua “pureza revolucionária” estão condenados a serem portadores de um ortodoxia quase religiosa.

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