Não vou cair na armadilha de, após meu texto da semana passada, afirmar que num passado recente, ou seja, “na minha época”, o jornalismo era melhor. Mas é fato que de uns anos para cá, principalmente após a dinâmica das redes sociais, blogs e grupos de zap, a atividade jornalística vive uma crise ética e metodológica, gerada por fatores diversos, como além dos citados, pela decadência dos grandes veículos de comunicação e enxugamento drástico das redações e equipes. Redações de quinze, vinte profissionais em cargos diversos (repórter, editor, copidesque, fotógrafo ou cinegrafista, motorista) se transformaram em miniequipes de meia dúzia de gente sobrecarregada que tem que fazer tudo ao mesmo tempo agora e se virar nos 30 para produzir uma matéria.
Mas não é da crise no jornalismo que quero falar e sim de uma vertente específica trazida cada vez mais à tona por essa fase ruim da profissão: o chamado jornalismo declaratório. Aquele em que o repórter ouve o entrevistado dizendo alguma coisa e reproduz ipsis litteris, “timtim por timtim”, colocando aspas no começo e no fim da frase do cidadão.
A princípio a coisa parece ótima, por duas razões. Primeiro que o leitor não será brindado com “interpretação de texto” por parte do jornalista e sim a frase nua e crua de quem foi por ele entrevistado, o que em tese garantiria fidelidade aos fatos. Segundo porque é uma delícia para repórteres “aspear” frases de efeito de quem foi ouvido. Qual repórter não adora, por exemplo, um Caeano Veloso disparando “Como você é burro, cara!” ou um ensandecido Roberto Jefferson solar um “Deputado José Dirceu, o senhor desperta meus instintos mais primitivos”. Sem falar das dezenas de frases entre aspas que é possível se colocar numa manchete após uma entrevista com um Ciro Gomes, por exemplo.
O problema é quando a frase do entrevistado colide com a realidade e o bom senso. E o repórter (ou o editor) parece também pouco preocupado com a sensatez (e com o bom jornalismo) e reproduz a fala sem qualquer questionamento lógico. Peguemos um exemplo hipotético e quase infantil: eu entreviso um técnico de futebol e lá pelas anas ele fala algo como “Neymar hoje é o melhor jogador do mundo”. Como profissional, tenho de respeitar a opinião dele (que em todo direito de e-la) mas ao mesmo tempo, tenho obrigação de citar em determinado momento que Neymar não esteve sequer entre os 30 indicados ao prêmio de melhor do Mundo, que vem colecionando fracassos e eliminações no seu time, o PSG, da França e que na Copa nem conseguiu chegar a semifinal. Portano, o cidadão tem direito de ter sua opinião. Mas nem por isso eu preciso pegar justamente uma frase que romba com a realidade e dar destaque a ela, assim como tenho o dever de informar ao leitor a verdade dos fatos.
Atualmente tanto nos blogs como nos portais e impressos da grande mídia vemos uma crescente de matérias com declarações sem qualquer questionamento. Geralmente na área de política. Numa geral nas notícias da semana pincei alguns exemplos: ‘Vou entrar com duas ações contra Lula. Uma criminal e civil’, diz Bolsonaro. Esse foi o destaque em diversos portais da grande mídia. O problema é que a afirmação do ex-presidente foi feita com base que segundo ele “Lula afirmou que me responsabiliza por 300 milhões de mortes no Brasil por covid”. Ora, a população do Brasil é de 200 milhões e por covid morreram 700 mil, logo, o número estapafúrdio criado por Jair não foi falado por Lula. E isso tudo só é explicado no final das matérias. Portanto, a manchete declaratória é baseada em uma mentira, um delírio do entrevistado. Um editor de bom senso evitaria as aspas e manchearia: “Bolsonaro diz que vai entrar com ações contra Lula com base em números inventados”.
Ouro exemplo, no Estado de Minas, e com uma figura carimbada do jornalismo declaratório: Ciro Gomes sobre governo Lula: ‘Corrupção continua solta’. Quando se lê a matéria se espera que o ilustre pedetista elenque os casos de corrupção e que afirme que possui as provas e que vai encaminha-las para o Ministério Público. Nada. Só um rompante do velho Ciro na sua cruzada de ódio contra Lula que o veículo achou por bem reproduzir em forma de frase com aspas.
Aqui no Rio Grande do Norte o jornalismo (ops) declaratório é quase onipresente nos veículos e principalmente nos blogs ligados à Direita. Quase sempre com frases “ferinas” de velhos conhecidos: senadores Rogério Marinho e Styvenson Valentim, deputados tomba e Coronel Azevedo, quase sempre tendo como alvo Fátima Bezerra e sua equipe de Governo. Mas há algumas semanas a irresponsabilidade do jornalismo declaratório chegou às raias do crime. Alguns blogs potiguares deram destaque ao vídeo que o deputado federal Sargento Gonçalves (PL) gravou afirmando em suas redes sociais que um novo “salve” iria aterrorizar o RN. A manchete dos blogs foi mais ou menos essa: “Deputado do RN denuncia que facção vai retomar ataques”. Sem questionar onde e como ele conseguiu essa informação ou se havia passado o que sabia para a Secretaria de Segurança a o MP. Afinal, questionar pra quê, não é? Afinal, o objetivo “jornalístico” no caso é também “tocar o terror”. Quem tem boca fala o que quer, diz o ditado. E quem não tem responsabilidade profissional também publica o que quer. Infelizmente.