Cangaço novo, críticos velhos
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Cangaço novo, críticos velhos

29 de agosto de 2023
6min
Cangaço novo, críticos velhos

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Série brasileira da Amazon Prime Vídeo, lançada sexta-feira dia 18, "Cangaço Novo" chegou na mídia e na opinião pública como um terremoto, um tsunami. Produção dirigida por Fábio Mendonça e Aly Muritiba, com oito episódios de uma hora de duração cada, conta a história de Ubaldo (Allan Souza Lima), um bancário tranquilo que mora em São Paulo, e que acaba se envolvendo com uma gangue do sertão cearense ao tomar conhecimento da herança de seu pai biológico, enquanto descobre que tem duas irmãs, Dinorah (a potiguar Alice Carvalho), que é assaltante de bancos na gangue, e Dilvania (Thainá Duarte). Essa mistura de drama familiar, ação, violência, debate social e sertão conquistou público e crítica e a série já é aclamada nacional e internacionalmente.

Contudo, a efusividade dos dias iniciais deu espaço a um contraditório que é saudável em espaços democráticos, mas que no tribunal das redes sociais muitas vezes se torna algo agressivo, tóxico e desprovido de bom senso. Percepção que tive ao ver a reação a uma postagem irônica no Twitter do amigo jornalista Alex de Souza, que com seu humor ferino peculiar, registrou a estranheza que as estradas de "Cangaço novo" não eram esburacadas como as do interior real do Nordeste. Que fãs da série reagissem meio que faz parte do jogo, mas denota que parte das pessoas nem entende de ironia e muito menos da realidade (senão constataria que, sim, em vários estados nordestinos, Rio Grande do Norte incluindo, muitas estradas estaduais estão com problemas sérios de deterioração).

Em seguida foi o influencer intelectual Jones Manoel que em uma postagem (bem infeliz, por sinal) no Twitter (onde mais?) criticou, sem citar "Cangaço novo" mas insinuando, claro, que o audiovisual brasileiro dava voz à violência e a criminalidade e não a revolucionários, progressistas e pessoas normais, sem lembrar certamente, por não acompanhar o cinema nacional com a devida atenção, de "Marighella", "Marte um", "Que horas ela volta?" e dezenas de outros.

A partir daí começaram mais críticas, ano de críticos de cinema, professores e jornalistas, como de "influencers" e de anônimos completos sobre como "Cangaço novo", digamos, "perpetua o clichê de que o Nordeste é só violência, bandidagem, aridez e pobreza". Nada mais equivocado. Primeiro porque a premissa não é verdadeira em nenhum aspecto e diz mais sobre o desconhecimento do comentarista do que sobre o cinema do e sobre o Nordeste. São pessoas que certamente não viram nas telonas e depois no streaming um Recife urbano em "Aquarius", de Kléber Mendonça Filho (o mesmo de "Bacurau", que sofreu as mesmas críticas por supostamente retratar um Nordestino "pobre e violento", mais à frente falaremos sobre isso), ou o Recife multifacetado de Cláudio Assis em "Amarelo manga" e "Febre do rato". Também desconhecem "Paraíso perdido", filme pernambucano sobre uma família que mantém uma casa para shows de música popular. Podemos citar ainda o cearense "Cine Roliúdi", que bateu recordes de bilheteria e o curta potiguar "Sideral", sobre uma mulher entediada com o casamento que se esconde em um foguete lançado de Parnamirim, curta de Carlos Segundo que, inclusive, ficou na antessala de uma indicação ao Oscar.

O segundo ponto de equívoco é de não entender os possíveis recortes de um roteiro e uma direção sobre um mesmo ponto de partida, ainda que a violência. Em "Bacurau" temos no terço final do filme, um banho de sangue, mas no quesito gente morta e ferida, não há como comparar com os filmes de ação estadunidenses como os de Charles Bronson ou Arnold Schwarzenegger, onde a violência não carrega um subtexto e é fetichizada. "Bacurau" trata da violência extrema como reparação histórica, reflexão sobre desajustes sociais e debate reação popular, evocando do fenômeno do cangaço a Glauber Rocha. "Cangaço novo" entra nesse balaio: utiliza de uma narrativa ágil e moderna para debater uma questão familiar delicada e também temas ainda existentes no sertão nordestino (desigualdade social e pobreza, ainda demais depois do desastre de quatro anos de um governo fascista) mas vistos sob uma lente nova, atual.

O terceiro equívoco da premissa do "Nordeste como clichê violento" é que no Sul/Sudeste só se aborda o Leblon das novelas de Manoel Carlos e a Avenida Paulista, culpa talvez do peso que as comédias da Globo Filmes tenham no imaginário de quem não acompanha o cinema nacional. Não que as comédias engraçadinhas passadas em coberturas da Zona Sul Carioca ou em aeroportos e cruzeiros de luxo não tenham direito a seu espaço, faz parte da indústria cinematográfica, inclusive, mas há toda uma cinematografia além disso que debate, também, desigualdade social nas grandes cidades, violência e pobreza. Nem vou ficar no clichê de citar os já clássicos "Cidade de Deus" e "Pixote - a lei do mais fraco", mas filmes bem recentes como "Na quebrada", "O dia de Jerusa", "Corpo elétrico" e tantos outros. O próprio "Deserto particular", de Aly Muritiba entra nessa lista.

Para além dos equívocos nas premissas, percebo também um fenômeno curioso desses dias atuais: os internautas querem opinar no roteiro criado pelo autor. Não que quem assiste não tenha o direito de não gostar ou mesmo de detestar um filme, uma cena, uma resolução, um final. Mas não entender que o desenvolvimento de tal personagem, a violência em uma cena, a edição, a trilha sonora, são opções de narrativa e estéticas de roteirista/diretor e que se trata de uma obra autoral, é querer não apenas tapar o sol com a peneira como algo sem sentido, quase interferir na obra do autor. Há algumas semanas tivemos homens chatos estilo red pills querendo que a narrativa de "Barbie" não fosse feminista nem pró-direitos. Já tivemos em 2019 gente querendo que em "Bacurau" a comunidade não resolvesse o problema pelo caminho da violência (!!!!). Hoje os críticos querem que uma história sobre uma gangue e de relações familiares tensas seja desenvolvida de maneira asséptica e sem qualquer violência "que perpetua o clichê do Nordeste". Enquanto os "críticos especializados" de redes sociais querem chorar as pitangas e reescrever o roteiro do que já foi filmado, "Cangaço novo", que tem outros potiguares no elenco e foi gravado também em Parelhas, no Seridó potiguar,  segue seu caminho de êxito com uma simbiose poucas vezes vista no audiovisual brasileiro entre forma e conteúdo.

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