Conheça a história e os personagens do 7 de setembro que a história oficial não conta
Natal, RN 14 de mai 2024

Conheça a história e os personagens do 7 de setembro que a história oficial não conta

10 de setembro de 2023
13min

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Na história oficial do Brasil, o 7 de Setembro é comemorado como o Dia da Independência, um momento de orgulho nacional que remonta a 1822, quando Dom Pedro I declarou a emancipação política do Brasil em relação a Portugal. No entanto, um olhar mais atento para esse evento revela uma complexidade que a narrativa oficial tende a ignorar. Para o historiador João Maria Fraga, é fundamental desvendar as camadas ocultas do significado das comemorações desta data, destacando a participação crucial de atores sociais muitas vezes esquecidos ou apagados da história tradicional.

Ao examinar os livros didáticos, a versão oficial da independência do Brasil tende a retratar uma visão tradicional, onde heróis brancos, filhos da elite e homens são os protagonistas. Uma perspectiva que negligencia a diversidade de atores sociais envolvidos e a complexidade do processo de independência.

Em entrevista à Agência Saiba Mais, Fraga dar uma aula sobre como a história oficial tem atuado para apagar figuras notáveis que desempenharam papéis cruciais na independência do Brasil. Ele cita Joana Angélica, que sacrificou sua vida para impedir a invasão portuguesa em 1822, e outras figuras notáveis como Maria Quitéria, a primeira mulher a integrar o Exército brasileiro; Maria Filipa, uma escravizada liberta que liderou um movimento de independência; Frei Brayner e os "Encourados de Pedrão"; Tambor Soledade, cuja morte inflamou ainda mais as lutas; e Cacique Bartolomeu Jacaré, que comandou indígenas tapuias na icônica batalha de Pirajá.

Outro aspecto destacado por Fraga é o papel do Nordeste na independência do Brasil. Longe de uma hegemonia pacífica liderada pelas elites do Sul e Sudeste, o historiador lembra uma série de revoltas, motins e guerras separatistas que marcaram o caminho para a independência. “É importante destacar o papel do Nordeste na independência do Brasil, compreendendo-a como um processo que nem teve uma hegemonia, nem foi definitivo, nem muito menos pacífico”.

Leia entrevista na íntegra.

 SAIBA MAIS - O que foi o 7 de Setembro de 1822 na História do Brasil?

JOÃO MARIA FRAGA - Enquanto sociedade, ao comemorarmos o 7 de setembro, precisamos refletir sobre ele, para que possamos compreendê-lo como valor simbólico para o Estado Nacional. Desta feita, é necessário identificar e analisar três aspectos que caracterizam este importante fato histórico.

O primeiro aspecto diz respeito ao seu caráter elitista, o grito do Ipiranga, tratado enquanto corte historiográfico, retratado nesta data. Ele possui uma natureza elitista, porque se resume muito mais a um arranjo político, que aconteceu por meio de uma aliança política entre o príncipe regente, D. Pedro, que havia sido propositadamente deixado no Brasil por D. João VI, o seu pai, e a elite aristocrática brasileira; o segundo aspecto relaciona-se ao fato de o evento ser conservador, na medida em que mantém a estrutura econômica herdada da colonização portuguesa, baseada no latifúndio e na agroexportação, e também da escravidão, sua base social; por último aspecto, mas não menos importante, refere-se ao fato de que resultou na formação de um Estado nacional autoritário, a partir de uma constituição outorgada pelo Imperador, marcada pelo  poder moderador, que, na prática, o transformava em um rei absoluto,  mesmo estando em  tempos de liberalismo político. O conservadorismo fundiu-se a uma ideia elitista de democracia, de tal maneira que, para votar, era necessário ter uma renda mínima de 100 mil réis, o que restringia o direito à cidadania a percentuais de 3% a 5 % da população brasileira. Esta articulação também foi pensada, no sentido de se evitar uma Haitianização na América Portuguesa ou uma fragmentação política/territorial, como ocorreu nas ex-colônias espanholas. O fato é que, fruto dessa subordinação à casa dinástica portuguesa, herdamos as suas dívidas com a Inglaterra e, assim, nascemos como Estado Nacional, acompanhado de uma dívida Externa.

 SAIBA MAIS - A independência do Brasil apresentada no livro didático, contempla a participação de todos os atores sociais que participaram deste processo? A nossa Independência política de Portugal foi um processo pacífico como a elite brasileira tenta repassar?

JOÃO MARIA FRAGA - É evidente que não. A história oficial que nos chega, a partir dos livros didáticos, ainda prevalece uma visão tradicional dos fatos liderados por heróis brancos, filhos da elite e homens. Uma narrativa em que a condução do processo de formação do país é protagonizada pelas elites do Sul e Sudeste do Brasil. Nesse sentido, é importante destacar o papel do Nordeste na independência do Brasil, compreendendo-a como um processo que nem teve uma hegemonia, nem foi definitivo, nem muito menos pacífico.

Até quando a sociedade brasileira vai ver o 7 de setembro na perspectiva de Um príncipe, um grito e um país declarado independente, como é apresentado pela historiografia tradicional?

As lutas pela independência do Brasil foram marcadas por revoltas de natureza local, motins e guerras de cunho separatistas. É importante não esquecermos da conjura Mineira (1789) da Baiana (1798) e da Pernambucana (1817); das guerras pela Independência do Brasil na Bahia, que foram iniciadas em fevereiro de 1822 e ampliadas após o 7 de setembro. Os conflitos encerraram-se, quando os colonos capturaram Salvador, em 2 de julho de 1823. Também precisamos lembrar do Piauí, ocorrido no Brasil pós 7 de setembro, a batalha do Jenipapo em 1823.

Nesses processos, encontramos a participação popular, protagonizada por negros libertos e escravizados, profissionais liberais, senhores de engenho, entre outros. Tais setores da sociedade participam dos eventos, com o objetivo de expulsar os portugueses do Brasil e acabar de vez com a exploração lusitana.

Não se pode mais manter o apagamento de figuras como Joana Angélica que, em fevereiro de 1822, se colocou à frente do templo para impedir a invasão por portugueses, sendo morta com um golpe de baioneta. Tal episódio inflamou ainda mais a sociedade baiana contra os colonizadores,  aumentando  a tensão, que culminou nas batalhas que viriam a seguir; Maria Quitéria , primeira mulher a integrar o Exército brasileiro, que lutou fugindo de  homem, sob a alcunha de soldado Medeiros, no recôncavo baiano; Maria Filipa, uma  escravizada liberta, pescadora e marisqueira, que comandou dezenas de mulheres, indígenas, negros livres, escravizados e até portugueses, que eram a favor do movimento de independência, no antigo Arraial da Ponta das baleias, atual município de Itaparica; Frei Brayner e os Encourados de Pedrão, do sertão baiano que, em final de 1822, comandou 39 soldados voluntários vestidos de vaqueiros, no combate, conhecidos como os “Encourados de Pedrão”; Tambor Soledade, negro, que morreu no recôncavo baiano, sem presenciar o triunfo contra as tropas lusitanas. Ele morreu na Praça da Aclamação, atingido por um tiro de canhão, disparado de uma embarcação portuguesa. A sua morte inflamou ainda mais as lutas, que se intensificaram de Cachoeira a Salvador, e que tiveram fim em 2 de julho de 1823; Cacique Bartolomeu Jacaré, em novembro de 1822 que comandou uma tropa formada por indígenas tapuias, do litoral norte, que se destacou pela excelência no uso de arcos e flechas na icônica batalha de Pirajá.

 SAIBA MAIS - Qual o simbolismo da independência do Brasil nos últimos anos?

JOÃO MARIA FRAGA - Para tratar desta resposta, desejo recuperar fragmentos de memórias sobre o 7 de setembro de 2021 e 2022, trazendo à tona o que ocorreu no Brasil nesta data, nos últimos dois anos. Em 2021, sob uma forte ameaça de golpe, articulada pelo governo federal, através de autoridades a ele vinculados, foi dado um ultimato, usando a data em questão, ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso e ao ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre Moraes. A ameaça consistia em impeachment de ministros. O então presidente articulou e fez-se presente em atos em defesa de Golpe, na esplanada em Brasília e na avenida Paulista, sob aplausos e palavras de ordem: FORA STF, EU AUTORIZO. Nesta oportunidade, o Ministro do STF Luís Fux respondeu às ameaças golpistas dizendo: ESTAMOS VIGILANTES com apoio do presidente do senado Rodrigo Otavio Soares Pacheco, que dizia: QUALQUER INTERVENÇÃO AUTORITÁRIA VAI SER RECHAÇADA.

No 7 de setembro de 2022, data comemorativa ao bicentenário da independência do Brasil, assistiu-se o Governo Federal usar, como elementos simbólicos, o coração de D. Pedro I, tratores do agronegócio e canhões, além de contar com a sua base política de apoio mobilizada, presente e fazendo uso de insígnias antidemocráticas, pondo em dúvida a credibilidade das urnas eletrônicas e o sistema eleitoral Brasileiro.

Mas, qual seria o significado simbólico do uso do coração de D. Pedro nesta comemoração? Para compreendermos esta ação, é preciso lembrar que a ideia já havia sido materializada, em 1972. Naquela oportunidade, foram trazidos os corações de D. Pedro I e o da Princesa Leopoldina. Não por acaso, o fato ocorreu, durante o auge da Ditadura Militar, no governo do General Médici.  O desejo simbólico, além de recorrer à memória dos governos militares, também, é uma exaltação da preservação do sistema estrutural herdado pelo processo colonizador, mantido pós 7 de setembro. Esse modelo manteve a desigualdade social e os privilégios da elite que conduziu o processo.

E os tratores? Qual sentido simbólico possuem ao estarem previstos no desfile? Tratava-se de materializar a visão de país, o Brasil do agronegócio: O AGRO É POP, O AGRO É TEC, O AGRO É TUDO. É fundamental não esquecer de que esta foi uma base importante do governo do ex-presidente Bolsonaro. Simbolicamente, tentou-se mostrar uma imagem de crescimento econômico do Brasil, com base no agroextrativista e exportador.

Quanto aos canhões colocados no desfile militar, realizado na praia de Copacabana, com a previsão de ser organizado pelas 3 Forças, eles significaram a mística geral de comemoração de uma construção do Brasil do ex-presidente Bolsonaro

Diante dessas situações expostas em 2021 e 2022, devemos perceber que o 7 de setembro, em nosso país, tem sido conservador. Ele ocorre em razão de se buscar afirmar uma base do Brasil colônia, que antecedeu ao 7 de setembro, momento em que a elite brasileira passou a construir e a controlar o Estado nacional. Assim procedendo, ele pode promover um apagamento dos processos políticos de resistência de movimentos organizados a este paradigma agrário-exportador, fundado na estrutura do latifúndio, podendo alimentar uma violência armada e uma criminalização contra todas as formas de resistência e de organização para transformações sociais.

Debater o 7 de setembro em 2023, sobretudo neste contexto de reconstrução nacional, em defesa da vida, da democracia e das liberdades, passa necessariamente por uma reflexão que precisa buscar responder a algumas questões, como as que seguem:

1-Qual é o sentido simbólico das comemorações do 7 de setembro, a luz de um Estado Democrático de Direito, especialmente como está previsto no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, com fulcro em seus princípios fundamentais?

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

2-Qual o significado do 7 de setembro no imaginário da sociedade brasileira? Como fazer um debate com a sociedade sobre esta data simbólica? Trata-se de uma festa republicana, cidadã e democrática?

3-Quais os limites constitucionais das Forças Armadas no Brasil? Quais as suas funções?

 SAIBA MAIS - O que precisamos celebrar neste 7 de setembro?

JOÃO MARIA FRAGA - A grande comemoração do 7 de setembro em 2023 é o reencontro do Brasil com a civilidade, o retorno do respeito às instituições de governo e de Estado, que compõem o modelo republicano e Democrático.

Que esta data cívica possa nos permitir enquanto sociedade civil, aprofundar o debate sobre a necessidade de fortalecermos a nossa frágil Democracia, aprofundando-a e aperfeiçoando-a, para que cada cidadão brasileiro possa ser o seu guardião. É preciso que tudo isto aconteça e que nunca mais assistamos a acampamentos em portas de quartéis, pedindo uma reedição de 1964 ou um outro AI5. Que cenas de golpismo, protagonizadas no 8 de janeiro, não sejam vistas nunca mais, nem em filme de terror.

 SAIBA MAIS - O que vislumbra para as manifestações desse dia?

JOÃO MARIA FRAGA - Um evento mais plural que conte, inclusive, com a participação do grito, não apenas do príncipe e das elites do atraso, mas também daqueles que foram excluídos destas memórias, dos livros didáticos, das salas de aulas de história e da sociedade brasileira pós 7 de setembro.  É hora de união nacional e de mais democracia. Vamos construí-las com um sentimento profundo de tolerância e de combate ao discurso de ódio, que pavimentou o Nazifascismo no passado e o neonazismo no presente.

 SAIBA MAIS - Como construir um Brasil não só independente, mas também democrático e igual?

JOÃO MARIA FRAGA - Não se pode pensar em independência do Brasil, sem desenvolver a ciência e a Tecnologia; sem compreender a nova ordem mundial multipolar e sem conseguir inserir o Brasil e seu protagonismo na América do Sul e no mundo.

É impossível imaginar um Brasil democrático sem avançarmos na garantia de direitos sociais básicos, previstos no artigo 6º da CF/1988; sem mobilizarmos a sociedade para o seu exercício pleno da cidadania e sem uma reforma política urgente.

Enquanto Estado nacional, ainda precisamos enfrentar os elevados índices de desemprego; a precarização do trabalho e  a tentativa de “tutela” das Forças Armadas” ao Estado  Democrático de Direito. Para isto, está na ordem do dia a retomada do processo de industrialização do Brasil, além da definição  dos limites constitucionais das Forças armadas.

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.