O crescimento da extrema direita e os desafios para a democracia
Natal, RN 17 de mai 2024

O crescimento da extrema direita e os desafios para a democracia

15 de outubro de 2023
13min
O crescimento da extrema direita e os desafios para a democracia

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Cas Mudde, cientista político holandês, no livro A Extrema Direita Hoje (Editora Eduerj, 2022) afirma que a partir do início do século XXI o mundo vive o que ele chama de quarta onda da extrema direita pós Segunda Guerra Mundial: 1ª) Neofascismo (1945-1955); 2ª ) Populismo de direita (1955-1980); 3ª) Direita radical (1980-2000) e a 4ª) A partir dos anos 2000. Para cada período, faz uma breve análise da ideologia e temáticas (como imigração, segurança, política externa etc.) a organização (partidos políticos, intelectuais e mídias), líderes, militantes e ativistas, eleitorado, atividades, além de procurar compreender suas causas e consequências e no final, algumas teses sobre a quarta onda.

Uma das teses é que a extrema direita veio para ficar, não está mais restrita aos partidos radicais de direita, e é cada vez mais normalizada (ele cita Jair Bolsonaro “que flerta abertamente com o horizonte de uma ditadura militar”) e são não apenas tolerados como “abraçados por círculos políticos, econômicos, empresariais, midiáticos e da sociedade civil), e ainda que nenhum país é imune a extrema direita e que não há uma única maneira ideal de lidar com ela, em função de sua diversidade. Um aspecto ressaltado por ele, analisando diversas experiências de movimentos de extrema direita em vários países é justamente a sua heterogeneidade. Embora tenha pontos comuns, não é a mesma coisa na Suécia e Brasil, por exemplo, ou nos Estados Unidos e Argentina, ou seja, cada país tem suas particularidades. E para um combate eficaz dos que se opõem, é preciso analisar essas especificidades nos respectivos países.

Mas considerando que é também um produto das circunstâncias nacionais e locais “a melhor maneira de lidar com o desafio que ela impõe deve ser pensada de acordo com essas condições”. E fundamentalmente, a ênfase deve estar na defesa e fortalecimento da democracia.

O fato é que houve especialmente a partir do início do século XXI um crescimento da extrema direita no mundo, incluindo em eleições. Para citar apenas poucos exemplos, em 2022, embora a extrema direita tenha sido derrotada no Brasil (por uma diferença muito pequena), na França, na eleição de abril, a candidata da extrema direita Marine Le Pen teve 42% dos votos (Emmanuel Macron foi reeleito com 58,2% dos votos. Mas em 2017 ele foi eleito com 66% e ela teve 34%. Em 2022 a extrema direita cresceu oito pontos (e Macron diminuiu também oito pontos) e pela primeira vez disputou o segundo turno (nas eleições de 2002, por exemplo, ela teve menos de 18% dos votos). No livro A extrema direita francesa em reconstrução - Marine Le Pen e a desdemonização do Front National (2011-2017) (Paco Editorial, 2020) Makchwell Coimbra Narcizo analisa mais especificamente o crescimento da extrema direita na França.

Na Itália, as eleições de 2022 foram ganhas pela coligação de direita e o grande vencedor foi o partido Fratelli d'Italia de Giorgia Meloni, de extrema direita, com 26% dos votos, muito superior aos 4% que obteve em 2018 e se tornou a primeira mulher premiê da história do país. Seu partido tem raízes fincadas no fascismo e na eleição recuperou e utilizou fartamente o lema que popularizou o ditador fascista Benito Mussolini (1883-1945) "Deus, pátria e família".

Além de governos de extrema direita no poder, como na Turquia, Hungria e Polônia (o partido Lei e Justiça governa desde 2015), partidos de extrema direita também cresceu na Suécia (com raízes neonazistas, os Democratas Suecos tiveram apenas 5,7% dos votos nas eleições de 2010, cresceram para 12,9% em 2014 e 17,2% em 2018 e em setembro subiu para 20,5%, ficando em segundo lugar atrás apenas dos social-democratas), Finlândia (a direita já governou com o Partido dos Finlandeses entre 2015 e 2017 e na eleição de dois de abril de 2023, o partido alcançou uma percentagem recorde de 20,1% nas eleições legislativas), Noruega, Grécia, Portugal (crescimento eleitoral do Chega) e Espanha (nas eleições de novembro de 2019, o partido Vox, de extrema direita, fundado em dezembro de 2013 se tornou a terceira força no Congresso com 52 deputados, três senadores e quatro eurodeputados no Parlamento Europeu).

Em 2023, no dia 8 de outubro, houve eleições regionais em dois dos 16 Estados da Alemanha: Baviera e Hesse, dois dos maiores e mais ricos do país, responsáveis por mais de um quarto da produção econômica e o resultado foi o avanço da extrema-direita, representada pela Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland) (AfD) uma derrota para os três partidos da coligação nacional liderada pelo chanceler Olaf Scholz.

Na matéria Partidos de extrema direita crescem na Europa com versões atualizadas do nacionalismo, publicada no dia 10 de julho de 2023 no G1. Globo afirma-se que “Partidos de extrema direita lideram os governos da Itália, da Polônia e da Hungria. Na Finlândia, a extrema direita passou a integrar o governo, e na Suécia dá apoio decisivo ao novo governo conservador. Na Grécia, onde os conservadores conseguiram expressiva vitória recentemente, três partidos de extrema direita conseguiram entrar no Parlamento Nacional”.

No oriente médio também ampliou seu espaço político, especialmente em Israel, com a vitória da coalizão de extrema direita nas eleições de novembro de 2022, com o retorno de Benjamim Netanyahu ao cargo de primeiro-ministro, depois de ter sido deposto em junho de 2021.

Na América do Sul, para citar apenas dois exemplos em 2023, no Chile, que teve Gabriel Boric, um candidato de esquerda vencedor da eleição presidencial de 19 de dezembro de 2021, tem se constatado um crescimento da extrema direita. No dia 7 de maio de 2023, venceram a eleição para o Conselho Constituinte, que será responsável por redigir a nova Constituição. O Partido Republicano, liderado pelo ex-candidato a presidente José Antonio Kast, teve 35,5% dos votos. Com isso, conseguiu mais de dois quintos das cadeiras disponíveis no Conselho. Somados aos votos conquistados pelo Chile Seguro – coalizão da direita tradicional – que teve 21,1% dos votos – e assim à direita tem ampla maioria para mudar a Constituição do país (a Unidad para Chile, coalizão de esquerda do presidente Gabriel Boric teve pouco mais de 28%).

Outro exemplo é a Argentina. O deputado Javier Milei, de extrema direita, foi o grande vencedor das Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), realizadas no dia 13 de agosto de 2023, que define os candidatos que disputarão o primeiro turno da eleição presidencial em 22 de outubro de 2023. Em Buenos Aires Milei obteve 30,06% dos votos, ficando à frente da aliança governista.

Embora com características diversas, há um aspecto importante a ser ressaltado que é a articulação internacional da extrema direita, que pode ser exemplificada com a CPAC (Conservative Political Action Conference) criada em 1973 pelos grupos de extrema direita nos Estados Unidos - American Conservative Union (ACU) e Young Americans for Freedom (YAF) - que desde sua criação tem realizado eventos, sendo uma referência para a direita não apenas nos Estados Unidos. Seus encontros são o maior e mais influente de direita do mundo, reunindo centenas de organizações e ativistas.

Em 2023, foi realizada em Washington, DC a 50ª edição nos Estados Unidos e ao longo do tempo reuniu, além de milhares de ativistas, personagens da direita como os ex-presidentes Ronald Reagan, George W. Bush e Donald Trump, além de ex-presidente, Mitt Romney e Dick Cheney.

E para evidenciar suas conexões internacionais, encontros da CPAC têm ocorrido em muitos países como Suécia, Portugal, Espanha, Austrália, Coreia do Sul, Japão, Irlanda e Brasil.

Em relação ao Brasil, já foram realizadas quatro encontros da CPAC. Foi trazido ao país por Eduardo Bolsonaro (PL-SP). O primeiro realizado em 2019, e desde 2021 é organizado pelo Instituto Conservador-Liberal, think tank criado pelo deputado federal e pelo empresário Sérgio Sant'Anna. No quatro encontro, realizado entre os dias 24 e 26 de setembro de 2023, em Belo Horizonte, teve a parceria do Instituto Álvaro Valle.

O primeiro foi realizado nos dias 11 e 12 de outubro de 2019 em São Paulo e entre os palestrantes, Damares Alves, então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Onyx Lorenzoni, ex-deputado federal e Ministro da Casa Civil, os deputados Luiz Philippe de Orléans e Bragança e Ana Caroline Campagnolo (SC) e Filipe G. Martins, Assessor Especial para Assuntos Internacionais do Presidente Jair Bolsonaro.

O segundo ocorreu nos dias 03 e 04 de setembro de 2021 em Brasília, com a participação, entre outros, de Tarcisio de Freitas, atual governador de São Paulo, o jurista Ives Gandra e os jornalistas Augusto Nunes e Paulo Figueiredo.

O terceiro foi realizado em Campinas/SP, nos dias 11 e 12 de junho de 2022, contando com a presença de alguns deputados federais (Marcos Pollon e Felipe Bastos), os jornalistas Augusto Nunes e Caio Coppolla, Carlos Nadalim, ex-secretário nacional de Alfabetização, e os já citados José Antonio Kast, fundador do Partido Republicano no Chile - de extrema direita - e Javier Milei deputado Argentino, líder da coalizão política A Liberdade Avança.

E o quarto encontro foi realizado em Belo Horizonte e contou com a participação do governador de Minas Gerais, Romeu Zema e entre os palestrantes os deputados federais Nikolas Ferreira, Eduardo Bolsonaro, André Fernandes e Felipe Bastos, todos do PL.

Uma matéria publicada no jornal O Globo por Guilherme Caetano em 18 de setembro de 2023 Fundação do PL vai bancar ingressos para CPAC Brasil, evento de Eduardo Bolsonaro afirma que se descreve o Instituto Álvaro Valle como uma "renomada organização defensora dos valores conservadores e liberais", sem citar que é vinculada ao PL de Valdemar Costa Neto nem que os recursos vêm de fundo público e que em 2019, a primeira edição do CPAC Brasil também teve financiamento partidário, quando foi custeado pela fundação ligada ao antigo PSL (que se fundiu ao DEM e foi rebatizado de União Brasil), a Fundação Índigo

Outro aspecto relevante é o crescimento de células neonazistas no país. Uma matéria publicada no dia 3 de agosto de 2022 por Maria Fernanda Garcia no site Observatório do Terceiro Setor Células nazistas crescem 270% em apenas 3 anos se refere a um mapa elaborado pela antropóloga Adriana Dias que apontou esse crescimento no Brasil entre janeiro de 2019 e maio de 2021 do 270% “e se espalharam por todas as regiões do país, impulsionadas pelos discursos de ódio e extremistas contra as minorias representativas, amparados pela falta de punição” . A antropóloga afirmou que havia naquele momento pelo menos 530 núcleos neonazistas, “que podem conter cerca de 10 mil pessoas ativas (...) e têm em comum o ódio contra feministas, judeus, negros e a população LGBTQI+”.

 Em outra matéria sobre o tema, afirma-se que “esses núcleos também passaram a executar ataques terroristas, utilizar as redes sociais para fazer publicações inflamatórias com teor antissemita, racista, homofóbico, violento e intolerante, e cooptar outros participantes para integrarem os grupos, alguns deles menores de idade.(https://g1.globo.com/fantastico/podcast/isso-e-fantastico/noticia/2022/01/16/isso-e-fantastico-neonazismo-no-brasil-o-que-esta-por-tras-da-explosao-da-intolerancia-no-pais.ghtml).

O fato é que a extrema direita continua a atuar e segundo a ADL - Anti-Defamation League - uma instituição judaica dos Estados Unidos que analisa dados de acesso (e navegações) em sites de extrema direita o Brasil é o país onde a extrema direita mais cresceu no mundo desde 2019. Portanto, o país que elegeu Jair Bolsonaro em 2018 não foi o primeiro e, provavelmente, não será o último país a dar uma guinada à extrema-direita no mundo. Nesse sentido, a vitória eleitoral de Lula em outubro de 2022 teve e continua a ter um significado fundamental para a democracia no país, contendo, pelo menos em termos eleitorais, o avanço da extrema direita.

O que explica o seu crescimento? Certamente uma conjunção de fatores. Esther Solano no livro O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Editora Boitempo, 2018) afirma que as bases para a constituição, práticas e permanência do que chama de nova direita contemporânea está baseada no medo (incluindo o comunismo “à beira de ser instalado no país”), o pânico moral (muito bem explorado, entre outros, por lideranças evangélicas de extrema direita), o ressentimento e o ódio. E para isso o uso da internet e das redes sociais em particular foram (e continuam sendo) de fundamental importância para as organizações da extrema direita. Os discursos de ódio, a intolerância, o uso da força e da violência são características de práticas fascistas, que se articulam globalmente.

Em um artigo publicado em 17 de julho de 2023 Bolsonarismo e a extrema direita no Brasil: uma reflexão sobre origens e destinos o historiador Michel Gherman se propôs analisar os desenvolvimentos da extrema direita pós-eleições de 2022 depois da vitória eleitoral do campo democrático, buscando compreender como o país entrou em uma trajetória de polarização radical e de extremismo político, que antecede 2018 e cujo resultado, em termos eleitorais, foi à vitória de Jair Bolsonaro em 2018 e afirma que o discurso violento e extremista não serviu de impeditivo para sua eleição e para apoios políticos que ele recebeu em 2018 (e também em 2022). E que o grande desafio é o de como evitar o fortalecimento de posições de extrema direita na sociedade brasileira.

Para a antropóloga Isabela Kalil, professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e coordenadora do Observatório da Extrema Direita, um aspecto relevante hoje é que grupos de extrema direita agem de forma independente de Jair Bolsonaro (que “forneceu o combustível para o processo de dissonância cognitiva de seus apoiadores”) e tendem a diminuir em número de pessoas, mas a ficar mais violentos. (https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2023/01/10/grupos-de-extrema-direita-ja-se-mobilizam-de-forma-independente-de-bolsonaro-e-tendem-a-ficar-mais-violentos-diz-antropologa).

O 8 de janeiro de 2023, com golpistas invadindo e depredando o Congresso Nacional, o STF e o Palácio do Planalto, entre outros aspectos, foi resultado da articulação desses grupos, especialmente via redes sociais.

A eleição de Lula salvou o país da perspectiva antidemocrática? Significou o fim do avanço do fascismo no Brasil? Os fatos mostram que não. E um dos grandes desafios no país hoje é estar unidos em defesa da democracia e fazer tudo que a extrema direita não faz nem pretende: ampliar as condições para a democratização social, distribuição de renda e a efetiva construção de uma sociedade livre, justa e mais igualitária.

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