Sete pontos sobre Gaza
Natal, RN 9 de mai 2024

Sete pontos sobre Gaza

24 de outubro de 2023
8min
Sete pontos sobre Gaza
Ataque de Israel contra a Faixa de Gaza dia 7 de outubro / Foto: MAHMUD HAMS / AFP

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Com os tambores da guerra rufando e o espectro da catástrofe humanitária pairando sobre o oriente médio me atrevo, aqui do protetorado de Nova Parnamirim, a partir do que vejo dessa minha janela de província, bem distante da zona de conflito mas sempre aberta para mundo, elencar sete pontos sobre Gaza e a guerra que se instala:

O mito da infalibilidade militar israelense ruiu. Dificilmente será possível sustentar, após os ataques do dia 07/10, a mística criada em torno de uma eficiência absoluta das forças armadas e dos serviços de inteligência de Israel. Isso porque, não bastasse ter sido pego de surpresa, Israel teve uma quantidade substancial de vítimas militares, membros regulares de suas forças armadas. O país viu perplexo pelo menos uma de suas bases tomadas pelos combatentes palestinos. Esse dado não pode ser desconsiderado quando a gente observa a reação absolutamente desproporcional e brutal de Israel em seu bombardeiro à Gaza. A mensagem que se passou para o mundo é: se um grupo do porte do Hamas (bem menos equipado e treinado do que outros grupos da região) conseguiu fazer esse estrago nas forças armadas israelenses imagine o que poderia acontecer se o Hezbollah, as milícias xiitas do Iraque ou mesmo as forças armadas do Irã se envolvessem em um combate na frente norte?

A solução final para o “problema Hamas” é o grande escândalo moral da democracia liberal de Israel. Isso porque quando acompanhamos o discurso de membros de extrema direita do governo israelense, como Ben-Gvir, ministro de Segurança Nacional ou do próprio premiê Benjamin Netaniahu, não temos como imaginar outra coisa senão um massacre brutal da população civil de Gaza como modus operandi de combate à uma organização do tipo do Hamas. A ideia de que os civis de Gaza são bárbaros selvagens responsáveis pelas ações do grupo que os governa e que por isso precisam ser coletivamente castigados, acende o sinal vermelho que nos leva a possibilidade de que, por trás do discurso de “eliminação final” do Hamas, esteja embutida a ideia escatológica de uma destruição completa de Gaza e de sua população, que deveria evacuar a área em direção ao deserto do Sinai ou morrer embaixo de escombros.

O discurso que liga sionismo e judaísmo vai cobrar seu preço. A estratégia usada pelo movimento sionista de vincular simbioticamente seus próprios valores e crenças políticas ao judaísmo (tomado como religião ou identidade cultural) pode ser útil para a sustentação política do Estado de Israel mas é péssimo para os milhares de judeus da diáspora, que vivem em outros países. Essa vinculação cria a impressão de que qualquer crítica ao sionismo como doutrina ou ao Estado de Israel como entidade política, é uma crítica ao judaísmo e ao povo judeu como um todo, de modo que questionar os pressupostos do sionismo (incluindo ai a própria existência de um “Estado judeu”) seria uma forma de antissemitismo. Como uma profecia que se auto cumpre, essa simbiose artificial acaba por, diante da catástrofe humana dos bombardeios em Gaza e da brutal opressão das populações palestinas nos territórios ocupados desde 1967, estimular o ódio antissemita, o que põe em risco comunidades judaicas espalhadas mundo a fora. Daí a importância de se dar visibilidade a grupos de Judeus anti sionistas que se posicionam contra o próprio Estado de Israel ou mesmo de Judeus progressistas que pedem um cessar fogo imediato em Gaza e criticam a ação do seu próprio governo nos territórios ocupados.

A diplomacia do governo Biden mostra sua fragilidade. Isso parece evidente, especialmente quando a gente compara o sucesso estratégico da ação dos EUA no caso da guerra na Ucrânia (quando conseguiram separar política e economicamente a Rússia da Alemanha – incluindo ai no combo até uma  explosão de gasoduto no mar do norte); com a adesão automática à Israel. Atuando como um fiador da reação militar israelense, os EUA estão usando a “diplomacia do canhão” contra países muçulmanos da região, ao posicionar seus porta aviões no mediterrâneo oriental em uma ameaça flagrante ao Irã, Síria e ao Hezbollah. Também, ao vetarem a resolução do conselho de segurança da ONU para um corredor humanitário em direção à Gaza, os EUA sinalizam o desprezo para ações multilaterais e cortam pontes com os países árabes, mais uma vez aparecendo para o chamado “sul global” como agentes daqueles velhos interesses ocidentais que geraram um sem número de holocaustos coloniais pela África, Ásia e América Latina.

A União Europeia nem fede, nem cheira. Nesse cenário, a vassalagem desconcertante que os países europeus demonstraram para com o seu “parceiro” norte americano no caso da guerra da Ucrânia, se manifesta na atual crise como um sintoma de uma total e absoluta irrelevância da Europa como ator geopolítico autônomo. Os ossos de Bismarck e Charles de Gaulle devem estar chacoalhando em suas tumbas.

A solução dos dois Estados aparece como uma fantasia ideológica. Sim, é isso mesmo. Diante do trauma dos ataques do 07/10, a radicalização do discurso fascista da extrema direita israelense deixa claro para quem quiser ouvir que a proposta da criação de dois estados (um Judeu e outro Palestino) é apenas um paliativo para a implantação lenta e gradativa de um projeto da direita sionista de submeter, expulsar ou (em última instância) eliminar fisicamente os árabes da região (do rio ao mar). A proposta segregacionista e racista de uma limpeza étnica que permita o domínio territorial por parte de um “Estado Judeu” acaba casando de papel passado com o discurso jihadista de eliminação total do Estado de Israel e da expulsão dos judeus da palestina (do rio ao mar). Nesse cenário o que se descortina é um impasse que gira entre uma limpeza étnica gradativa dos palestinos ou uma conflagração apocalíptica que arraste a região para uma guerra generalizada até que um dos dois grupos elimine o outro.A única saída para esse impasse mortal é a de se defender um Estado unitário, laico, multiétnico e multirreligioso, de modo que haja uma integração das populações árabes palestinas a vida política e uma melhora das condições socio econômicas e de garantia das liberdades individuais e direitos sociais para todos. Ou seja, algo, num curto e médio prazo, extremamente improvável de acontecer.

A esquerda global ganha mais um fôlego. Combalida por anos de fracassos políticos e por uma incapacidade de propor mudanças estruturais e rupturas radicais no modelo liberal hegemônico, a esquerda global ganha uma sobrevida com a reativação da solidariedade internacional para com o sofrimento do povo palestino. As imagens de pais escrevendo os nomes de seus filhos nos braços das crianças de Gaza para que, quando estiverem mortas sobre os escombros de um território devastado, possam ter um enterro decente e um nome na lápide, é chocante o suficiente para mobilizar protestos mundo à fora e, mesmo diante da repressão policial e das proibições de manifestações pró-palestina na Europa, acabam por levar milhares de pessoas às ruas, como vimos neste último fim de semana.   

Aliás, as imagens que circulam pela internet do sofrimento das crianças de Gaza são tão devastadoras que acabaram por desmantelar qualquer ganho de simpatia global que o Estado de Israel poderia ter capitalizado após os massacres brutais protagonizados pelo Hamas nos Kibbutzim do sul do país.

No quesito brutalidade a resposta assimétrica selvagem das bombas sobre a população civil de Gaza me faz pensar como é terrível que uma parte significativa da sociedade israelense, paralisada pelo pânico que o fantasma ideológico de uma ameaça existencial iminente provoca (tal qual a sociedade alemã dos anos de 1930) e turbinada pelo discurso fascista dos grupos de extrema direita que povoam seu governo, tenha esquecido as palavras de Emmanuel Lévinas, na dedicatória de seu livro de 1974 (Outra forma que não o Ser ou além da essência). Ali, um dos mais importantes filósofos judeus do século XX dedica sua obra: “à memória daqueles que eram mais próximos entre os seis milhões assassinados pelos nazistas e dos milhões sobre milhões de todas as confissões e todas as nações vítimas do mesmo ódio ao outro, o mesmo anti-semitismo”.

Torço para que os setores progressistas da sociedade israelense possam despertar o mais rápido possível do entorpecimento traumático da guerra e somem esforços para evitar a catástrofe. Afinal, “nunca mais” é nunca mais para todos, quer sejam as vítimas do ódio ao outro aquelas que morreram fuziladas nas ruas do gueto de Varsóvia ou as que jazem sobre os escombrosde uma Gaza destruída pelas bombas.

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