A participação cidadã na gestão urbana de Natal: fato ou boato?
Natal, RN 9 de mai 2024

A participação cidadã na gestão urbana de Natal: fato ou boato?

10 de março de 2024
9min
A participação cidadã na gestão urbana de Natal: fato ou boato?
Foto: acervo Observatório das Metrópoles RMNatal

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Por Ruth Ataíde, Sarah Andrade, Rodrigo Silva e Érica Guimarães

A participação social é reconhecida como elemento constitutivo da democracia brasileira, na medida em que fortalece a cidadania e contribui para o melhor desempenho da Administração Pública. Garantida constitucionalmente, visa o controle social na gestão de políticas e programas governamentais. Esse mês trataremos nesta coluna sobre a participação e o controle social a partir da experiência da política urbana no município de Natal. Neste artigo, abordaremos sobre a participação cidadã na gestão urbana de Natal a partir da atuação dos conselhos setoriais do sistema de planejamento e gestão democrática. Num texto seguinte fazemos uma reflexão sobre a (não) participação no processo de proposição dos grandes projetos urbanos no município.

No planejamento e gestão das cidades, a participação se tornou um elemento indispensável, referência que se consolidou com a Constituição de 1988. O Capítulo da Política Urbana foi construído a partir das chamadas “Emendas Populares”, inserindo diretrizes para o desenvolvimento urbano - regulamentadas apenas em 2001, com a aprovação do Estatuto da Cidade, que trouxe, entre seus objetivos, a gestão democrática da cidade, exercida por meio da participação social.

No âmbito local, as diretrizes do Estatuto foram incorporadas ao Plano Diretor de Natal (PDN), Lei Complementar nº 82/2007, apesar do município já incorporar um desenho de participação social na sua Política Urbana desde o Plano de 1974 (Lei Complementar nº 2.211/1974), quando foi criado o Conselho Municipal de Planejamento Urbano - COMPLAN. Em função do momento político vivenciado, o Regime Civil-Militar, e da sua concepção tecnocrata de planejamento, este Conselho, criado para ser deliberativo e consultivo em matéria de planejamento urbana, operava de forma limitada e seletiva, tendo em vista a sua composição, formada por representações governamentais e dos setores econômicos que mantém, ainda hoje, estreito vínculo com o poder.

Voltando ao PDN/2007, seu sistema de planejamento e gestão democrática buscava articular os Conselhos da Cidade (Concidade/Natal); de Planejamento Urbano e Meio Ambiente (CONPLAM, antigo COMPLAN); de Trânsito e Transportes Urbanos (CMTTU); de Habitação de Interesse Social (CONHABINS); e de Saneamento Básico (CONSAB); e o Sistema Municipal de Habitação de Interesse Social (SMHIS).

Cabia ao Concidade/Natal, e ainda cabe, ao menos em lei, a articulação das políticas de desenvolvimento urbano sustentável, com a ampla participação da sociedade e em conformidade com as políticas regionais e federais, embora isso nem sempre fosse concretizado. Aos demais conselhos, cabia opinar e deliberar sobre normativos, planos, projetos e outras pautas setoriais, além de acompanhar a gestão dos respectivos fundos, enquanto instrumentos de concretização das políticas urbanas.

No entanto, nos últimos anos, temos testemunhado significativas alterações no desenho da participação social, aumentando o distanciamento entre a gestão pública e as pautas e representações dos movimentos populares e do princípio da gestão democrática. Isso se reflete na nova estrutura de gestão introduzida no PDN 2022 (Lei Complementar nº208/2022) que, apesar de ampliada quantitativamente, com a adição de cinco conselhos setoriais, compromete a dinâmica da participação e o conteúdo das discussões desenvolvidas - reflexo, inclusive, da condução da participação popular no processo de na revisão do Plano.

A nova Lei “dá com uma mão e retira com a outra”. Isso porque, por um lado, adiciona ao sistema, novos agentes com incidências variadas na Política Urbana, potencialmente importantes para elaboração coletiva das formas de superação da precariedade das infraestruturas da cidade. São eles os conselhos da Ciência e Tecnologia (COMCIT) – existente desde 2009, na lei do Concidade/Natal –; de Cultura (CMC); de Redução de Riscos, Proteção e Defesa Civil (COMPDEC); de Turismo (CMTur) e o Comitê Gestor da Orla.

Por outro lado, o novo plano empobrece a atuação dos Conselhos, retirando-lhes atribuições, como a fiscalização dos fundos de recursos necessários à aplicação das políticas, além de eliminar o Sistema Municipal de Habitação de Interesse Social-SMHIS. Diante da fragilidade do pleno funcionamento dos Conselhos, o normativo adiciona lacunas à esta estrutura de gestão e, ao manter intactas as atribuições do órgão de Planejamento Urbano e Ambiental (SEMURB), acaba por centralizar ali todo fluxo e, sobretudo, o poder de decisão sobre os rumos da política urbana.

Sabemos, pela experiência de planejamento no Brasil, e mais recentemente, pela desastrosa revisão do PDN, que não bastam as leis para que se efetive uma dinâmica de participação popular, pois mesmo na vigência da estrutura anterior do sistema de gestão, já observávamos as dificuldades de reunião dos conselhos, assim como de avançar com deliberações contrárias aos interesses dos grupos hegemônicos ali representados. No PDN2022 isto se escancara, tanto pelo desenho da lei, quanto pelo seu conteúdo e gestão, hoje realizada pelos mesmos agentes que a (re)desenharam. Para exemplificar este duplo movimento, usamos, por seu protagonismo histórico, exemplos do atual funcionamento do CONPLAM.

Composto atualmente por dezesseis entidades e presidido pelo secretário da SEMURB, o Conselho se consolida como órgão central do de planejamento e gestão democrática.  Mais do que historiar a sua atuação, é importante refletir que, ainda que as pautas de discussão possam ser trazidas pelas representações, o grande responsável por provocar e convocar o CONPLAM continua sendo o Poder Público. Assim, a mudança de concepções e horizontes de cidade de cada gestão influencia na manutenção de seu funcionamento, variando de um ritmo regular de reuniões, que seria mensal, para a marcha lenta; do pleno e amplo diálogo sobre os desafios e propostas urbanísticas para a cidade à seletividade ou interdição do debate aprofundado dos temas.

O desenho do último processo de revisão do PDN, por exemplo, concedeu ao CONPLAM, apenas dez dias para análise da minuta elaborada pela SEMURB. Esta, desconsiderava, em grande medida, o que a cidadania discutiu sobre os temas mais polêmicos, privilegiando propostas dos agentes vinculados aos grandes proprietários de terras urbanas, do mercado especulativo-imobiliário e da gestão pública municipal, que atuaram quase sempre alinhados. Vale lembrar que, no processo anterior, em 2007, a minuta ali esteve por quatro meses, entre os meses de maio e setembro de 2006.

Em sua breve passagem pelo Conselho, a minuta que resultou no PDN 2022, provocou longas discussões, ultrapassando os expedientes regulares de reunião e refletindo a tônica do que havia sido o processo até ali: propostas aclamadas desconsiderando estudos ou fundamentos técnicos, reproduzindo leituras enviesadas e/ou cópias de prescrições e debates oriundos de outras realidades, para justificar o incremento do potencial construtivo que, por sua vez, aqueceria o mercado da construção civil e  o desenvolvimento econômico na cidade.

É importante pontuar que integrantes do CONPLAM – grande parte engenheiros e arquitetos - atuaram como consultores nas etapas anteriores do processo e, enquanto conselheiros, inseriram propostas não validadas na etapa de participação direta: audiências públicas e grupos de trabalho. Estes ainda se inseriram nas etapas subsequentes e atuaram como delegados, representando entidades de classe - similares àquelas que representam no Conselho - mas também de forma contraditória enquanto integrantes de movimentos sociais (de bairros), se assegurando de que suas propostas seguissem e fossem aprovadas na Conferência Final.

O processo escancarou, assim como a participação popular foi ofuscada pelos grupos hegemônicos, munidos da experiência do processo de revisão anterior e das possibilidades materiais de financiar a atuação de técnicos comprometidos com suas pautas. Com o PDN2022 em vigor - e mesmo em paralelo à redefinição do normativo – a gestão municipal iniciou a divulgação e execução de uma série de grandes projetos urbanos na cidade de Natal, principalmente na orla marítima e estuarina, sem discussão na estrutura participação social aqui destacada. Trataremos melhor desse tema no próximo artigo, mas é importante destacar a atuação enviesada dos Conselhos nesse processo.

Podemos citar o caso do projeto de urbanização da orla da Redinha, com a construção de um novo mercado, apresentado ao CONPLAM em 2019. Este foi submetido à apreciação não para avaliar sua inserção no território e/ou impacto paisagístico, marcadamente em relação às edificações identificadas como símbolos do lugar: a “igrejinha” e o Redinha Clube. Tampouco discutiu-se sua relação com os comerciantes e prestadores de serviço do antigo mercado; sua relação com os ambulantes da praia; seu impacto no espaço ocupado pelo atracadouro das embarcações, os pescadores e as pescadoras. O foco era a demanda por “excepcionalizar” seu processo de licenciamento do novo mercado, uma vez que a sua altura excedia o gabarito máximo de 7,50m então vigente neste território. 

O parecer do Conselho, por meio da sua Câmara de Urbanismo, foi contrário à excepcionalização, mesmo com fortes protestos, que consideraram um “apego desnecessário” à norma urbanística, uma vez que, naquela ocasião, o PDN já estava em revisão. Este ponto foi, aliás, manejado de forma a dobrar o limite máximo do gabarito, permitindo assim a construção do edifício, cuja construção tem gerado uma série de violações aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras da praia, sobretudo, a comunidade pesqueira.

Observando a condução das discussões no CONPLAM, podemos afirmar que mesmo quando a participação ocorre, ela não se dá de forma paritária, não oferece condições ao reconhecimento das demandas dos movimentos sociais, especialmente os populares.

Este formato levanta algumas questões:

  • Como poderemos avançar no fortalecimento do diálogo com a população, uma vez que as possibilidades de escuta estão reduzidas ou mesmo negadas, repetindo o receituário aplicado durante a revisão do PDN, quando as falas dos movimentos sociais e de outros atores políticos foram sufocadas em prol do discurso de grupos econômicos hegemônicos, ligados aos setores da construção civil, turismo e grandes proprietários fundiários?
  • Estaremos repetindo a falácia de uma participação cidadã nos mecanismos de controle social que tem se mostrado ineficaz no atendimento aos interesses da maioria e que legitima os interesses de uma minoria?
  • Sobre a estrutura de participação do município que encontra fundamentos no Estatuto da Cidade e no próprio Plano Diretor: o que podemos fazer para fortalecê-la e assegurarmos a voz dos movimentos e territórios populares na luta pelos seus direitos?    

Essas são algumas das questões relativas à gestão democrática e à participação cidadã que precisamos refletir e cobrar dos pré-candidatos e pré-candidatas à prefeitura e vereança que começam a se manifestar para as eleições municipais de 2024.

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Ruth Ataíde é professora do Departamento de Arquitetura da UFRN e pesquisador do Observatório das Metrópoles - Núcleo RMNatal.

Sarah Andrade é doutoranda no programa de pós graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN e diretora do Coletivo Salve Natal.

Rodrigo Silva é doutorando no programa de pós graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e diretor executivo do Coletivo Salve Natal.

Érica Guimarães é professora substituta do Departamento de Administração Pública e Gestão Social da UFRN e pesquisadora do Observatório das Metrópoles - Núcleo RMNatal.

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