Infocracia, democracia e eleições.
Natal, RN 9 de mai 2024

Infocracia, democracia e eleições.

17 de março de 2024
10min
Infocracia, democracia e eleições.

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Infocracia é um termo utilizado pelo filósofo sul-coreano (radicado na Alemanha) Byung-Chul Han no livro Infocracia, Digitalização e crise da democracia (publicado na Alemanha em 2021 e no Brasil em 2022 pela Editora Vozes). Para Han, se trata de uma sociedade na qual se exerce o poder por meio do uso que se faz da informação como meio de dominação e expressa o fato de que o poder do povo, a democracia, está sendo suplantado pelo poder da informação como paradigma da convivência social, um sistema regulador das relações sociais, num cenário no qual as sociedades são submetidas a um verdadeiro tsunami informativo, uma avalanche de informações e desinformações (às vezes difícil de distinguir) gerada pela internet.

Para ele “A digitalização do mundo da vida avança, implacável. Submete a uma mudança radical nossa percepção, nossa relação com o mundo, nossa convivência. Ficamos atordoados pela embriaguez de comunicação e informação. O tsunami de informação desencadeia forças destrutivas. Abrange, também, nesse meio-termo, âmbitos políticos e leva a fraturas e disrupções massivas no processo democrático. A democracia degenera em infocracia” (p 25).

O problema central é que esse tsunami da desinformação está se apoderando da esfera política, com mentiras, deepfake, manipulações, fake news que ameaçam à democracia. Ele se refere ao que chama de regime de informação (um dos capítulos do livro) que trata de uma forma de domínio em que a informação e seu processamento mediante algoritmos e inteligência artificial contribuem para a distorção dos processos eleitorais.

Trata-se de uma análise das sociedades atuais com o objetivo de analisar o que o autor chama de “o inexorável avanço da digitalização, seus impactos nas sociedades democráticas”, em um contexto mais geral de crise da democracia - indissociável do avanço da extrema direita em eleições em várias partes do mundo - do domínio que elas têm das redes sociais, que contribuem para seu processo de degradação.

Segundo Han, a democracia estaria degenerando em Infocracia. Vivemos hoje em uma sociedade na qual, mesmo sem que as pessoas percebam, elas são controladas e dominadas e o “consumo” da informação interfere na capacidade cognitiva e bloqueia o que seria indispensável em uma sociedade democrática: a capacidade de compreender.

O livro O filtro invisível - o que a internet está escondendo de você de Eli Pariser, (publicado nos Estados Unidos em 2011 e no Brasil em 2012 pela Editora Zahar), é citado por Han, no qual, como o autor, questiona o fato de que a internet, presumivelmente seria uma espécie de uma enorme biblioteca livre, no qual se acreditava que plataformas como o Google, por exemplo, serviriam de guias, quando na realidade essas e outras grandes empresas “personalizam” os serviços que prestam, baseadas em históricos de navegação (fornecidos espontaneamente pelas pessoas), e são filtradas e usadas para outros fins (políticos, econômicos, ideológicos etc.,) e uma de suas características é usar filtros que prendem os usuários em bolhas individuais, difícil de escapar e nesse sentido a promessa de ser “um campo livre de diálogo” e conhecimento, não é. Ao contrário. A formação de infobolhas (usada pela extrema direita no Brasil) usa a desinformação para mentir, manipular quem está dentro delas e atingem especialmente pessoas que não têm capacidade de reflexão própria.

Ele analisa à psicopolítica (mais especificamente em um dos seus livros), como uma técnica de dominação que recorre a um poder sedutor, que domina sem que as pessoas percebam que são dominadas. Se pensa livre quando na realidade não é. E mais: esse sistema que explora sua liberdade se apropria dos dados que elas mesmas, em suas bolhas (ou fora delas), lhes entregam voluntariamente e que podem ser usados inclusive contra elas.

Para Han há hoje uma nova forma de dominação no capitalismo, o capitalismo da informação, em que as pessoas não se sentem vigiadas e é justamente essa sensação de liberdade que assegura a dominação. Não se trata mais do regime da disciplina, analisada por Michel Foucault em Vigiar e Punir no qual formula o conceito de sociedade disciplinar, analisando uma série de mecanismos de controle social desenvolvido a partir do século XVIII no qual se explora corpos e energia (Vigiar e punir: o nascimento da prisão Petrópolis: Vozes, 2014).

Hoje o fundamento dos detentores do poder não está mais ligado tão somente à posse dos meios de produção, mas ao acesso à informação, utilizada para a vigilância psicopolítica e a previsão do comportamento individual.

No livro A era do capitalismo da vigilância – a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder (Editora Intrínseca, 2020), Shoshana Zuboff afirma que quanto mais dados geramos sobre nós mesmos e disponibilizados espontaneamente, usando-se a tecnologia da informação digital faz da comunicação um meio de vigilância, de controle e prognóstico do comportamento das pessoas e no qual os aparelhos celulares também se tornam um instrumento importante de vigilância, como a possibilidade de localização, deslocamento, comunicação, etc.)

Ao analisar esse processo, especialmente em relação à democracia e eleições, ele se refere à telecracia que “degrada as campanhas eleitorais a ponto de transformá-las em guerras de encenações midiática. O discurso foi substituído por show para o público”. E uma de suas consequências é a quase inexistência de um debate racional nas campanhas eleitorais, em particular em eleições presidenciais, o qual no debate entre candidatos o que vale não é o conteúdo, mas a performance oratória e assim o discurso degenera em espetáculo e publicidade e desta forma os conteúdos políticos, que deveriam balizar os debates, tem cada vez menos importância.

Destaca-se também nesse processo, o papel dos meios de comunicação eletrônica e das redes sociais que contribuem para a destruição do discurso racional (exemplos de irracionalidade são muitos, como o negacionismo climático, teorias conspiratórias lunáticas, movimentos antivacinas e toda estupidez que foi e tem sido dita e defendida pelos seus apoiadores).

A reflexão de Han é que a democracia em tempo real poderia ser possível com o avanço tecnológico e a digitalização no qual a representação “que cria distância” seria substituída pela participação imediata, uma democracia em tempo real digital que “faz do smartphone um parlamento móvel, promovendo debates dia e noite em qualquer lugar” (p.48).

No entanto, a democracia em tempo real não existe. A comunicação dirigida pelos algoritmos não é nem livre nem democrática. Nos Enxames digitais os súditos das mídias sociais “deixam-se adestrar em gado de consumo”, ou “zumbis de consumo” e assim a comunicação digital em vez de levar a uma maior participação e politização da sociedade, provoca o que ele chama de “reversão do fluxo de informação” que tem efeitos destrutivos para o processo democrático e destaca o nefasto papel de influenciadores despolitizados (muitos a serviço da barbárie).

Para Han, o grande feito da infocracia é ter induzido em seus consumidores/produtores uma falsa percepção de liberdade. O paradoxo é que “as pessoas estão presas à informação. Elas mesmas se colocam grilhões ao comunicar e produzir informações”.

Em relação à crise da democracia se remete também ao que ele chama de crise da verdade. Para ele, só valoriza a verdade quem compartilha uma base comum a partir da qual o diálogo seria possível. Mas, como dialogar e “ter um solo comum” com intolerantes, ignorantes, que não saem de suas bolhas submetido ao império das Fake News, que integra o universo da desinformação e são usados à profusão, em particular em eleições, pelos agentes da infocracia, para manipular, mentir, conquistar corações e mentes especialmente entre os que habitam as bolhas? O problema central para ele, é que chama de novo niilismo no qual “não significa que a mentira se faça passar como verdade ou que a verdade seja difamada como mentira. Ao contrário, mina a distinção entre verdade e mentira” e essa indiferenciação representa um risco maior para a verdade do que aquele instaurado pelo mentiroso.

Outro aspecto fundamental em uma democracia são as eleições. Se forem utilizados mecanismos de manipulação, com o uso de uma verdadeira máquina de mentiras (e não apenas pelas redes sociais), como assegurar o respeito do direito ao voto livre e secreto, se há um processo de persuasão psicológica que submetem as pessoas (e eleitores em particular) com base em mentiras e formação de infobolhas? Ele afirma que “Hoje vivemos aprisionados em uma caverna digital mesmo acreditando que estamos livres”, um espaço que não possibilita qualquer participação efetiva nem nas eleições e muito menos nos processos de tomada de decisões, como deveria ser em uma democracia. Os eleitores servem apenas para votar e dar “legitimidade” aos eleitos que passam a atuar em seu nome, às vezes dizendo defender a democracia quando fazem o contrário.

O que fazer? Como combater essas distorções que depõem contra a democracia em eleições e ajudam a eleger autocratas e mentirosos (ou autocratas mentirosos)? Uma iniciativa recente e muito importante no Brasil foi a criação pelo Tribunal Superior Eleitoral do Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia inaugurado oficialmente no dia 12 de março de 2024. O objetivo é o de atuar de forma coordenada junto com os Tribunais Regionais e outras instituições, como o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e a Agência Nacional de Telecomunicações (através de Acordos de Cooperação Técnica) no combate à desinformação, discursos de ódio, discriminatórios e antidemocráticos no âmbito eleitoral.

O objetivo é o de que o Centro Integrado, como o nome sugere, possa atuar de forma integrada visando à cooperação entre a Justiça Eleitoral, órgãos públicos, mas também com as plataformas de redes sociais no período eleitoral, para garantir o cumprimento das regras estabelecidas pelo TSE em relação às eleições.

Um dos aspectos importantes será o de auxiliar os Tribunais Regionais Eleitorais “no aperfeiçoamento da regular utilização da inteligência artificial nas eleições, no combate à desinformação e à deepfake e na proteção à liberdade de escolha de eleitoras e eleitores”.

O Centro também terá papel importante na promoção da educação em cidadania, nos valores democráticos e nos direitos digitais como “coordenar a realização de cursos, seminários e estudos para a promoção de educação em cidadania, democracia, Justiça Eleitoral, direitos digitais e combate a desinformação eleitoral, organizar campanhas publicitárias e educativas, além de sugerir aos órgãos competentes as alterações normativas necessárias para o fortalecimento da Justiça Eleitoral e combate contra desinformação, discursos de ódio e antidemocráticos no período eleitoral” https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Marco/tse-tera-centro-integrado-de-enfrentamento-a-desinformacao-e-defesa-da-democracia

Este é um grande desafio. O combate à desinformação, discursos de ódio e antidemocráticos e não apenas no período eleitoral. A democracia, como diz Han, não pode nem deve degenerar em infocracia.

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