O uso político da mentira
Natal, RN 9 de mai 2024

O uso político da mentira

10 de março de 2024
11min
O uso político da mentira

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A estratégia de fluxo contínuo e repetitivo de um grande volume de mensagens com mentiras difundidas por diferentes formas (grupos de WhatsApp, Telegram etc.,) em distintos canais e plataformas  tem sido chamada por alguns estudiosos do tema de firehosing  (trata-se do fluxo de uma mangueira com grande quantidade de água usada para apagar incêndio. Firehose é uma palavra da língua inglesa  que significa mangueira de incêndio).

  O termo passou a ser utilizado no sentido de propaganda política concebida como “técnica de propagação de mentiras em larga escala e em um fluxo constante, com o objetivo de afogar a opinião pública com  mensagens e conseguir do monopólio da primeira impressão sobre determinados assuntos”  depois dos resultados de um estudo feito pelos pesquisadores norte-americanos Christopher Paul e Miriam Matthews sobre as campanhas eleitorais presidenciais na Rússia (que desde 1999 dão a vitória a Vladimir Putin). O estudo é  The Russian "Firehose of Falsehood" Propaganda Model: why it might work and options to counter It (O modelo de propaganda russo "Firehose of Falsehood": por que pode funcionar e opções para combatê-lo)  publicado em 11 de julho de 2016 (disponível em https://www.rand.org/pubs/perspectives/PE198.html).

 O que os autores afirmam é que nas campanhas eleitorais de Putin foram usadas uma nova forma de propaganda política, que chamaram de  firehosing, concebida como uma  estratégia de comunicação que dissemina notícias falsas “em larga escala e fluxo constante”, e que passou a ser usada também em outros países, como no Brasil, especialmente a partir das eleições  de 2018 e em particular nas redes sociais.

Uma de suas estratégias é a criação de polêmicas efêmeras, visando confundir e desviar o foco de questões relevantes ou criar polêmicas  com pautas  morais como aborto, ideologia de gênero  etc., com  mentiras que influenciam  milhões de pessoas, consolidando crenças e assim  se tornando eficazes combustíveis para o firehosing.

Em novembro de 2018 foi disponibilizado no youtube o vídeo Por que mentiras óbvias geram ótima propaganda baseado no citado artigo dos pesquisadores norte-americanos que descreve o funcionamento da máquina de propaganda e como as mentiras contínuas e sistemáticas foram assimiladas em campanhas eleitorais.

Letícia Sallorenzo, autora do livro Gramática da manipulação (Quintal Edições, 2018) tem estudado a estrutura argumentativa das fake  news e o firehosing   definido por ela como “um processo de planejamento, produção, disseminação e ratificação de informações indevidamente tratadas como verdadeiras por quem as propaga de forma a induzir em quem as consomem sensações negativas, contrárias a um alvo eleito”.

Para ela,  firehosing "é um método extremamente funcional de propaganda (aqui entendida como a propagação de informações de fonte tendenciosa ou enganosa, usadas para promover ou dar notoriedade a uma causa política ou ponto de vista específico; o termo propaganda, nesse caso, é pejorativo, e como tal deve ser entendido) e desinformação”.

Além do uso intensivo das redes sociais no processo de difusão de mentiras especialmente em períodos eleitorais, são utilizados também os noticiários de TV e web e “trolls” de internet (financiados) cujo objetivo é o de “entreter, confundir e cansar” as pessoas.  Não é necessário checar fatos e a repetição de mensagens tem o mesmo objetivo (e conteúdo ideológico), que é o de gerar mais credibilidade e cujo processo se intensifica quando  utilizam-se de sentimentos de aversão e medo (no caso do Brasil e mais especificamente nas eleições de 2022, do comunismo, legalização do aborto e das drogas, perseguição religiosa - como fechamento de igrejas caso Lula vencesse  a eleição - entre muitas mentiras, que  mobilizou especialmente segmentos evangélicos muitos dos quais liderados por pastores-empresários da fé, de extrema direita.

Fazem parte de um conjunto de ferramentas (técnicas de manipulação) que se revelam eficazes especialmente  em processos eleitorais. No artigo Como o Google favorece a manipulação política, publicado no site Outras Palavras, Patrick Berlinguette afirma que o Google construiu um mecanismo (que o autor chama de roteiro), que ensina passo a passo “como criar seus próprios anúncios de redirecionamento para influenciar qualquer crença ou opinião – de qualquer usuário em qualquer lugar do mundo”, ou seja, a possibilidade de se usar uma ferramenta para segmentação da plataforma e redirecionamento, não apenas de anúncios, mas também pode ser usada para influenciar as convicções políticas das pessoas durante uma eleição.

Um dos problemas da difusão sistemática de notícias falsas é que nas redes sociais elas são muito mais rápidas do que fatos verificáveis e desmentidos e contestar afirmando que simplesmente são mentiras não surte efeito porque são direcionadas justamente para quem acredita nelas. As agências de checagens, por exemplo, não têm a mesma estrutura, rapidez e eficácia, em especial quando mentiras são dirigidas para pessoas já convencidos, que aceitam sem contestação qualquer tipo de informação, presos em suas “bolhas” nas redes sociais.

Sobre isso  há muitos artigos, ensaios, estudos e pesquisas e um dos exemplos que pode ser citado é quanto o uso do WhatsApp (ferramenta muito utilizada nas campanhas eleitorais no Brasil na eleição presidencial  de 2018, assim como o Telegram em 2022). Entre outros exemplos em relação ao WhatsApp, uma reportagem  do jornal Folha de S.Paulo de 18 de outubro de 2018,  mostra como o aplicativo foi usado na campanha eleitoral  (ilegalmente) por empresas para disparos de centenas de milhões de mensagens anti-PT em benefício da campanha de Bolsonaro.

 Uma pesquisa do Datafolha publicada no dia 26 de outubro de 2018  constatou que metade do eleitorado que usava o WhatsApp (66%) dizia acreditar nas notícias que recebiam pelo aplicativo e revelou ainda que 85% dos eleitores de  Bolsonaro acreditaram na informação falsa de que Fernando Haddad, candidato à presidência pelo PT havia distribuído um “kit gay” para crianças em escolas quando era ministro da Educação (mentira que  foi usada também por Bolsonaro em uma entrevista dada no Jornal Nacional).

O objetivo do uso de mentira em propaganda política é o de enviar mensagens para grupos com maior propensão a absorvê-las e repassá-las adiante, segmentando mensagens para grupos de afinidades (amigos, familiares etc.), ou seja, direcionamento  de conteúdo, feitas de forma voluntária). As técnicas de comunicação utilizadas  portanto,  favorecem a circulação de mensagens com conteúdos que confirmam crenças e valores prévios (viés da confirmação) que foram (e continuam a ser) mobilizados.

Entre muitos exemplos de firehosing e da eficácia da(s) mentira(s) e sua propagação nas redes sociais foram expressas no resultado de  uma pesquisa realizada pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo (USP), coordenado pelos professores Pablo Ortellado e Márcio Moretto Ribeiro com manifestantes que participaram do ato convocado por Bolsonaro e seus apoiadores na Av. Paulista em São Paulo realizada no dia 25 de fevereiro de 2024. Na pesquisa foram entrevistadas 575 pessoas e umas das revelações do tamanho da desinformação e das mentiras constantes  e sistemáticas que circularam  nos grupos de apoiadores de Bolsonaro, foi o fato 88% dos entrevistados disseram que quem ganhou a eleição foi ele e não Lula.  Nesse caso, revela o êxito do uso da técnica de  propagação de mentiras em larga escala e em um fluxo constante, com o objetivo de afogar a opinião pública com  mensagens  que questionavam, sem fundamento, a segurança do sistema eleitoral e atacavam as urnas eletrônicas. E mais, para  94% dos entrevistados o Brasil vive em uma ditadura (se assim fosse, eles não estariam ali e se estivessem seriam presos e estes certamente não acreditam que quem planejava um golpe para instalar uma ditadura de fato no país era o o “mito” deles).

Os dados da pesquisa revelam que entre os participantes 67% afirmaram ter curso superior (a maioria são de homens e brancos: 62% e 65% respectivamente) mostrando o êxito e influência dos discursos sobre fraude eleitoral propagado pelo ex-presidente, mesmo sem qualquer prova ou indício de irregularidade na eleição em pessoas presumivelmente esclarecidas. Apenas 8% reconhecem a vitória de Lula. De acordo com a pesquisa, a maioria (67%) tinha 45 anos ou mais e praticamente metade (49%), renda familiar de até cinco salários mínimos.

Como analisar estes dados?  O jurista Lênio Streck, mestre e doutor em Direito, professor dos cursos de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da PUC(RS), autor de vários livros (entre outros, Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito (Editora Letramento, 2020) ao ser entrevistado pela TV Fórum a respeito dos resultados da pesquisa começou afirmando que se trata de uma burrice coletiva e recomendou a leitura do livro A burrice ao alcance de todos (Cartilha da analfabetização sem mestre) de Nestor de Holanda (Editora Letras e Artes, 1965).

 Trata-se de uma sátira sobre a ignorância e o resultado dessa pesquisa, segundo ele, mostra o perfil de pessoas com sérios problemas de cognição “ignorantes mesmo, que acreditam que Bolsonaro ganhou a eleição” e afirma se tratar de um solipsismo (Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa “trata-se de uma doutrina segundo a qual só existem o eu e suas sensações, sendo os outros entes-seres humanos e objetos - como partícipes da única mente pensante, meras impressões sem existência própria”, ou seja, “nada existe fora do pensamento individual, sendo a percepção (das coisas e/ou das pessoas) uma impressão sem existência real”.

São pessoas que vivem em uma espécie de realidade paralela que mesmo tendo possibilidade de se informarem,  não o fazem e de forma intencional, produzem e reproduzem  mentiras, fake news e por isso não acreditam que Lula ganhou a eleição . Streck e se refere a “conformação entre  seus iguais nas neo-cavernas que são os grupos de whatsapp”. E ainda  indaga: como ter uma opinião pública em meio à burrice e a ignorância? Elas circulam  impunemente nas redes sociais e influenciam  milhões de pessoas,  que levam  entre outras consequências, ao desdém  pela ciência, hostilidade e ignorância a qualquer evidência científica (como fazem os defensores da arcaica concepção de que a terra é plana, de teorias da conspiração, movimentos antivacinas, negação do aquecimento global   etc.).

João Cezar de Castro Rocha, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)  se refere a esse processo de desconexão com a realidade de dissonância cognitiva coletiva, relacionando ao que chama de midiosfera extremista e um dos seus componentes é a retórica do ódio “a perversa pedagogia cotidiana de desumanização do outro, um dos principais instrumentos da extrema direita transnacional na implantação de seu projeto de poder político autoritário e fundamentalista” (Bolsonarismo. Da guerra cultural ao terrorismo doméstico. Retórica do ódio e dissonância cognitiva (Editora Autêntica, 2023).

 Segundo Lênio Streck  para compreender o resultado dessa pesquisa com  maior alcance  é necessário uma análise não apenas política, mas também  sociológica, psicanalítica (e psiquiátrica)  que também  revela o quanto a ignorância está ao alcance de todos, como no título do livro de Nestor de Holanda.

No combate à desinformação, deepfake e fake news (e não apenas em eleições) como essa pesquisa evidencia, não bastam apenas critérios de racionalidade e objetividade. Um dos efeitos do uso de mentiras e seu uso político além de contribuírem para a imbecilização coletiva, também fazem com que sejam eleitos representantes (como os de extrema direita) que contribuem para solapar a própria democracia.

O uso das redes sociais  sem regras e punição dos responsáveis pela difusão de mentiras e toda sorte de manipulação põe em xeque o próprioregime democrático representativo e Resoluções como a do Tribunal Superior Eleitoraldo dia 28 de fevereiro de 2024,  proibindo o uso de deepfake e fake news (entre outras medidas) com sanções aos que atentam contra a democracia e divulgam  mentiras, é um passo importante, desde que sejam de fato efetivas, afinal em 2021 foi aprovada uma Resolução  do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) (Resolução 23.671, de 14 de dezembro de 2021), que trata especificamente sobre propaganda e condutas ilícitas em campanha que vedada a divulgação ou compartilhamento "de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam os processos de votação e a apuração e totalização de votos” e não impediu sua ocorrência na eleição de 2022.

 Continuará nas eleições de outubro de 2024 e nas subsequentes? A ver.

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