O Supremo Tribunal Federal e o artigo 142 da Constituição
Natal, RN 30 de abr 2024

O Supremo Tribunal Federal e o artigo 142 da Constituição

14 de abril de 2024
9min
O Supremo Tribunal Federal e o artigo 142 da Constituição

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Em um julgamento (virtual) iniciado no dia 29 de março e concluído no dia 8 de abril de 2024, por 11 x 0, portanto, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em favor da interpretação do artigo 142 da Constituição Federal que ele não prevê a existência de um “poder moderador” das Forças Armadas.

O julgamento foi resultado da análise uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo PDT em 2020, com pedido de medida cautelar , tendo por objeto o art. 142 da Constituição Federal de 1988 e mais especificamente os artigos 1º, caput e os parágrafos 1º, 2º e 3º da Lei Complementar n. 97/1999, sobre os limites constitucionais das Forças Armadas e sua hierarquia em relação aos demais poderes.

Art. 142 da Constituição Federal diz: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” , e o1º parágrafo : “Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas, na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas” (daí a referência na Ação Direta de Inconstitucionalidade de uma lei posterior que foi aprovada, a Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999, que “dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas” .

É justamente a expressão “e por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” que existe a interpretação ou alegação de que o artigo prevê que as Forças Armadas teria o poder de “ moderar conflitos” e nesse sentido, poderia inclusive fechar o Congresso Nacional e até mesmo o Supremo Tribunal Federal e assim “ embasar juridicamente” uma intervenção.

A ideia subjacente é de um pretenso poder moderador das Forças Armadas e no meio jurídico, atribui-se a Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie (SP) ser um dos mais conhecidos defensores dessa tese. Em um artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico em maio de 2020 (Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os poderes) ele afirma: “A minha interpretação, há 31 anos, manifestada para alunos da universidade, em livros, conferências, artigos jornalísticos, rádio e televisão é que no capítulo para a defesa da democracia, do Estado e suas instituições, se um poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, naquele ponto, a lei e a ordem se esta realmente tiver sendo ferida pelo Poder em conflito com o postulante”.

Três anos depois, em maio de 2023, em uma matéria publicada na mesma revista, assinada por Sergio Rodas, Ives Gandra afirma que sua interpretação foi profundamente distorcida: “O que eu disse não tem nada a ver com a interpretação que eles fizeram, do que acharam que eu tinha dito. Ninguém queria a interpretação correta do artigo 142 e fizeram uma interpretação própria para tentar defender isso(Intervenção militar). Mas estou convencido de que há uma distância abissal entre o que eu disse e o que eles interpretaram” (https://www.gandramartins.adv.br/wp-content/uploads/2023/05/648-entrevista-conjur-2023-05-03-sua-interpretacao-do-artigo-142-foi-profundamente-distorcida.pdf).

No entanto, a interpretação de um suposto ‘poder moderador’ das Forças Armadas foi usada por Bolsonaro (que certamente influenciou seus seguidores). Conforme matéria publicada no portal Terra (www.terra.com.br) por Gabriel de Sousa e Tácio Lorran no dia 8 de abril de 2024 (STF decide, por 11 x 0 que o artigo 142 da Constituição não dá poder moderador) que “Em 2020 Bolsonaro compartilhou uma entrevista do jurista Ives Gandra sobre o artigo 142. Na live o jurista opinou sobre a ‘politização do STF’ e argumentou que o trecho da Constituição poderia ser evocado de forma ‘pontual’(…) e que Bolsonaro teria o direito de pedir as Forças Armadas caso não perdesse o recurso à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que o impediu de nomear o então delegado Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal”( https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/stf-decide-por-11-a-0-que-artigo-142-da-constituicao-nao-da-poder-moderador,9940bab7e4a8a4042983bf0402059408sw6d8b2w.html).

A interpretação unânime do STF em sua decisão final em relação à Ação Direta de Inconstitucionalidade, foi a de que as Forças Armadas não tem atribuição de poder moderador e sim ter como missão a defesa da integridade territorial do país e suas instituições em casos de ameaças estrangeiras e que a Constituição não permite intervenção militar sobre os três poderes. É uma distorção, equivocada e casuística, que ficou evidente nas fundamentações jurídicas dos ministros e expressa na derrota por 11 a 0 da tese do “poder moderador”.

O ministro Alexandre de Moraes em seu voto disse, entre outras coisas, que: “Nos Estados Democráticos de Direito, jamais houve dúvidas sobre a supremacia da autoridade civil sobre a autoridade militar, nem mesmo nos momentos excepcionais do ‘sistema constitucional das crises’ em respeito à divisão de poderes entre os ramos Executivo, Legislativo e Judiciário” e que “Exatamente em virtude da necessidade de garantir o Estado Democrático de Direito por meio da divisão das funções estatais em poderes civis, nunca na história de países democráticos houve a previsão das Forças Armadas como um dos Poderes de Estado, ou mais grave ainda – como se pretendeu em pífia, absurda e antidemocrática ‘interpretação golpista’– nunca houve a previsão das Forças Armadas como ‘poder moderador’, acima dos demais poderes do Estado”.

Poder moderador não existe em nenhuma das Constituições republicanas, de 1891 a que está em vigor, a de 1988. Era previsto na primeira Constituição, de 1824 (Artigo 98) no Brasil Império (1824-1889) e dava plenos poderes ao Imperador. Era um poder acima dos outros poderes.

No entanto, a interpretação de poder moderador das Forças Armadas com direito a intervir nos outros poderes, a pedido de um deles, esteve presente nas inúmeras manifestações golpistas de seguidores do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, especialmente depois da derrota eleitoral de outubro de 2022, com faixas em manifestações nas ruas, em frente aos quartéis do Exército, discursos etc., pedindo intervenção militar e invocando o artigo 142 da Constituição que serviria, na prática, para justificar um golpe de Estado.

Para o ministro do STF, Flavio Dino “não existe no nosso regime constitucional um poder militar, poder é apenas civil” e se refere à formação do que chamou de “três ramos ungidos pela soberania popular” e que em tais poderes constitucionais, a função militar é subalterna. Em seu voto, ele também fez referências à ditadura (por ocasião dos 30 anos do golpe de 1964) como “um período abominável na nossa história constitucional” e lembrou ministros do STF que foram cassados (Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva) e afirmou que “os ecos desse passado ainda subsistem". O ministro também se referiu aos “teóricos do Direito” que atuaram para distorcer o artigo 142 da Constituição “levando parcela da população e do governo do ex-presidente Bolsonaro a pregar que havia direito dos militares de intervir em conflitos com os três poderes”.

O ministro acrescentou ainda - e é de grande importância - que a decisão unânime do STF seja difundido em todas as organizações militares, com o objetivo de evitar que “desinformações que alcançaram alguns membros das Forças Armadas, com efeitos práticos escassos, mas merecedores de máxima atenção pelo elevado potencial deletérios à pátria”.

Para o ministro Luiz Fux, a garantia dos poderes constitucionais prevista no artigo 142 da Constituição não comporta qualquer interpretação que permita o emprego das Forças Armadas para a defesa de um poder contra o outro porque isso violaria a separação dos poderes. Para ele, as Forças Armadas são órgão de Estado e não de governo.
(A íntegra dos votos dos ministros estão disponíveis em https://www.estadao.com.br/politica/veja-como-votou-ministros-supremo-tribunal-federal-stf-contra-poder-moderador-forcas-armadas).

Daí a importância fundamental do esclarecimento e da decisão do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade a respeito do artigo 142 da Constituição pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e mais ainda: expõe a necessidade de despolitização das Forças Armadas, de sua instrumentalização política, especialmente quando a serviço de um golpe de Estado. Como disse o ministro Luiz Fux, a Constituição não encoraja rupturas democráticas e ressaltou que se deve interpretar o artigo 142 da Constituição considerando todo o sistema legal brasileiro, particularmente a separação dos poderes. Para ele, as Forças Armadas não constituem um poder à parte, mas uma instituição à disposição dos poderes constituídos. (https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=531731&ori=1).

Essencialmente, a decisão do STF é de extrema relevância para a democracia brasileira, ao decidir e reafirmar que a função institucional das Forças Armadas, que está no artigo 142 da Constituição Federal, não estabelece a existência de um poder moderador . Trata-se portanto, de uma interpretação equivocada, tão cara aos golpistas, e que serviu para alimentar afrontas ao Estado Democrático de Direito.

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