A greve que me afeta
Natal, RN 18 de mai 2024

A greve que me afeta

4 de maio de 2024
4min
A greve que me afeta

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Por Maria Clara Santos

Nossa inegável natureza, enquanto viventes movidos pelos afetos, é constantemente negligenciada, mesmo em um contexto histórico em que se monetizam os afetos via uma rede cibernética onde a circulação dessa natureza imponderável é explorada em prol da nova roupagem do capitalismo tardio, como nunca visto antes. Imersa às emergências do meu primeiro episódio de greve como trabalhadora, tal reflexão toma meu corpo e mente ao perceber o quanto muitos de nós pisam em ovos, medem as falas, ponderam a força de luta diante de um governo que nos afeta em todos os sentidos. Um governo que colocamos no poder e no qual apostamos nossas esperanças e que, agora, nos vemos exigindo dele direitos só questionáveis por uma realidade global pervertida pelo uso de novas tecnologias de gestão, como explicita Sávio M. Cavalcante (2023). De um lado, como trabalhadores, somos afetados pela adoção de um modelo de organização e gestão ‘deslocado’ da realidade das empresas privadas para o setor público da educação (MANCEBO, 2001)*, que funciona associando a utilização de novas tecnologias de responsabilização e controle ao uso das novas tecnologias virtuais na criação de sistemas de automatização que preconizam o controle velado. Do outro lado, somos afetados por um jogo politico em que se tem um governo progressista ilhado por forças reacionárias, se equilibrando entre demandas de cortes orçamentários impostos por uma política macroeconômica centrada no ajuste fiscal e um contexto politico hostil à democracia.

No meio disso tudo estou eu, uma jovem docente tentando me descorporificar do individualismo que me prende ao egoísmo das minhas demandas para conseguir experienciar a unidade do ser coletivo enquanto categoria trabalhista e unidade politica compostas pelas várias pessoas desejantes de uma educação de qualidade. Pessoas essas que acreditam na democracia e nos ritos da negociação justa e ética entre as partes em tensão politica e, por isso, lutam pela transformação social via processo democrático.

É fato que essa voz egocêntrica, mesmo desejando a unidade do diverso, ecoa em um momento histórico no qual acontece o recrudescimento de forças reacionárias prontas para usar essa greve para fragilizar um governo eleito democraticamente, distorcendo tudo que encontram pela frente. É fato, também, que essas forças antidemocráticas lascivas se alimentam dos nossos estados de ilhamento social, dos nossos medos de sairmos daquelas certezas confortáveis que nos cegam para a beleza do diferente e nos prendem em nossas bolhas, agora virtualizadas.

Não sei como será o desfecho dessa greve histórica que entrelaça tantas outras histórias de trabalhadores, estudantes e de todas as pessoas que fazem parte da comunidade universitária da UFRN. O que sei é que não luto contra o governo que ajudei a eleger e que vem lidando com a herança de governos anteriores. Luto por um projeto de Estado em que as verbas para a educação sejam tomadas como investimento com retorno garantido e não como despesas, pois é isso que me afeta como docente hoje, e que me afetou como estudante de escolas e universidades públicas em toda minha trajetória até aqui, de onde agora falo dos meus afetos.

  • CAVALCANTE, S. Grande Indústria Capitalista, modelo 4.0: Quarta Revolução Industrial como ideologia. In: CARDOSO, A; CRIVELLI, E.; SANTOS, F. (Orgs.). Trabalho em Transe: raízes e efeitos políticos das mudanças no mundo do trabalho no Brasil. 1ed. São Paulo: Contracorrente, 2023, p. 53-96.
    “”MANCEBO, D. Autonomia Universitária: reformas propostas e resistência cultural. 34a.Reunião Anual da da ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Rio de Janeiro: Anped. 2001. disponível em acessado 20/04/2023
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