Regulamentação do trabalho doméstico faz 9 anos: avanços e desafios
Natal, RN 18 de mai 2024

Regulamentação do trabalho doméstico faz 9 anos: avanços e desafios

5 de maio de 2024
8min
Regulamentação do trabalho doméstico faz 9 anos: avanços e desafios
Foto: Carol Melo/Fenatrad

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Durante a infância do filho, Maria Cristina, que engravidou durante a adolescência, quando já exercia o trabalho doméstico, teve dificuldades em conciliar o trabalho e a atividade de ser mãe. Hoje, aos 48 anos, ela trabalha de carteira assinada, uma realidade diferente de muitas outras. Cristina começou na área quando ainda tinha cerca de 10 anos.

“Minha mãe trabalhava numa casa de família e me levou para ficar brincando com os meninos da casa, que ficaram sem a babá”, conta. “E nisso eu fiquei nessa casa e me acostumei. Acabou que ninguém nunca arrumou essa babá e eu fiquei lá”

Nessa casa, ela ficou até os 15 anos, quando foi para uma outra, onde está até hoje.

O último 27 de abril foi de alusão ao Dia Nacional das Trabalhadoras Domésticas. A data é próxima ao dia do trabalhador, comemorado na última quarta-feira (01). No Brasil, com a aprovação da emenda constitucional nº 72, em 2013, um desdobramento da chamada “PEC das Domésticas”, regulamentada pela Lei Complementar no 150, em 2015, no governo Dilma Rousseff, trouxe avanços para a categoria, regulamentando esse modo de trabalho. 

No entanto, uma boa parte das trabalhadoras domésticas ainda vive na invisibilidade, enfrentando muitas vezes a informalidade e até mesmo o trabalho análogo à escravidão, como explicou a advogada trabalhista Débora Gurgel à Agência Saiba Mais.

A advogada explica inicialmente quem é considerada a pessoa que realiza o trabalho doméstico no Brasil.

“A empregada doméstica ou empregado doméstico é considerado aquela pessoa que presta serviço de forma contínua, subordinada – com um chefe –, e onerosa, pois depende de pagamento em pecúnia, ou seja, aquele valor que é remunerado de acordo com o salário a ser pago. Se houver uma jornada por mais de 2 dias por semana, a empregada doméstica é vinculada à CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]. Geralmente se o funcionário tem 3 dias de serviço por semana precisa receber pelo menos o salário mínimo, com recolhimento de FGTS, assinatura da carteira e recolhimento para a previdência, para que sirva no futuro para aposentadoria”.

Gurgel ressalta, ainda, a realidade do trabalho doméstico antes do texto que ampliou os direitos das empregadas domésticas, sancionado em 2015.

“Antes era bem precário os direitos que elas tinham, até porque era uma atividade essencial, porém não era dado o devido valor. Tanto é que a CLT incluiu essa categoria de empregado doméstico para poder garantir os direitos que raramente eram cumpridos pelos empregadores”.

“Geralmente, a empregada doméstica tinha quase que um trabalho escravo. Ela não tinha uma jornada definida. E às vezes recebia bem menos do que merecia. Geralmente era uma jornada de segunda a sábado, algumas [empregadas domésticas] ficavam até mesmo no domingo e não recebia remuneração extra”, ressalta.

Cristina, que está na profissão há anos, também ressalta como a visibilidade do trabalho doméstico mudou desde que ela iniciou na área. Na casa em que trabalha hoje, ela tem carteira de trabalho assinada desde que a lei da empregada doméstica foi aprovada.

“Na época que eu entrei não tinha tanto reconhecimento como está tendo agora. Era totalmente diferente”, relembra.

Uma das dificuldades que ela enfrentou foi o de cuidar do filho enquanto precisava trabalhar para ajudar nas contas de casa. O marido, que também trabalhava, não conseguia ficar com o filho. Cristina até tentou adaptar o filho a uma creche na época, mas não deu certo.

“Foi uma parte muito difícil deixar ele ali [creche], mas era o jeito. Todas as vezes ele fazia um escândalo e eu saia com o coração partido, passava o dia todinho com a cabeça meio perturbada, e foi assim até que um dia aconteceu um acidente com ele lá na creche e eu disse: vou tirar ele daqui, vou dar um jeito”, narra.

 Assim, Cristina passou a levá-lo ao trabalho quando ele ainda era criança.

“Todo dia eu tinha que arrumar alguém para ficar com ele. Minha mãe estava com problemas de saúde e não poderia. Tinha dia que eu não encontrava ninguém, aí eu ligava dizendo que não ia dar para ir ao trabalho pois não tinha arrumado ninguém para ficar com meu menino. Aí ela [contratante] disse ‘traga ele pra cá, fique com ele aqui’. Aí eu comecei a levar ele para o trabalho. Lá tinha um quartinho onde ele ficava”, conta.

Hoje em dia, ela diz que agiria diferente na época.

“Hoje eu não faria mais isso não. Eu deixaria meu emprego para cuidar do meu filho. Eu me arrependi muito, mas a gente precisa trabalhar, né? Mas se eu tivesse a cabeça que eu tenho hoje, antes eu não tinha deixado ele assim não”.

Já na primeira casa em que trabalhou, ao lado da mãe, que também era trabalhadora doméstica, Cristina dormia todos os dias lá. Ia para a própria casa apenas aos finais de semana. 

“Eu dormia lá. No outro dia minha mãe vinha trabalhar e a gente se encontrava. Praticamente eu morava lá. Mas na sexta-feira minha mãe me deixava em casa”, narra.

Direitos

Férias, 13º salário, licença-maternidade, FGTS obrigatório e remuneração do trabalho noturno, além do descanso semanal remunerado são alguns dos direitos que encobrem as empregadas domésticas hoje, explica Gurgel.

Outra questão é em relação ao horário de trabalho e as regras para execução de hora extra. A pessoa empregada doméstica tem uma jornada normal de 8 horas diárias e até 44 horas semanais, podendo ser prorrogada desde que de acordo com a lei. Em relação ao intervalo para descanso, deve ser de, no mínimo, 1h e no máximo 2h.

“Se esse intervalo não for permitido, deverá ter um acréscimo em dinheiro ao funcionário”, explica a advogada.

De acordo com Débora, o empregado pode, ainda, cobrar as horas extras dadas.

“O empregado doméstico hoje é um trabalho normal e regularizado como qualquer outro”, pontua.

Após tantos anos atuando na área trabalhista, Gurgel reconhece que, hoje em dia, as pessoas que realizam o trabalho doméstico têm mais conhecimento sobre seus direitos.

“O perfil hoje já é um público que entende melhor as coisas. Antigamente, uns dez anos atrás, era mentalidade de ‘preciso trabalhar, então me submeto porque preciso’. Hoje em dia, não. Hoje em dia temos empregadas em curso superior, e que cumprem a jornada conforme a lei determina. Elas já estão bem mais esclarecidas”, afirma.

No entanto, ainda há muito em que avançar.

“Mas ainda tem gente que não sabe muito os seus direitos. Eu acho que os próprios sindicatos deveriam chamar a categoria para explicar os direitos da empregada doméstica. Para que elas não se submetam a situações vexatórias. Quanto aos contratantes, a maioria têm ciência que elas [empregadas domésticas] têm direitos, porque são pessoas conhecedoras da lei. São elas [empregadas domésticas] que precisam conhecer melhor”.

Desafios

A lei da empregada doméstica foi aprovada como forma de resguardar os direitos dos trabalhadores domésticos, mas os dados mostram que ainda há muito que avançar para garantir os direitos desses trabalhadores tão vulneráveis às violações de direitos humanos.

De acordo um levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílio (Pnad) de dezembro passado, o Brasil tem cerca de 6 milhões de empregados domésticos, considerando todas aquelas pessoas que prestam serviços em residências – como domésticas, jardineiros, motoristas, mordomos –, trabalhando. Destes, 92% são mulheres, das quais mais de 65% são mulheres negras.

Dos mais de 6 milhões, apenas cerca de 1,4 milhão têm carteira assinada, de acordo com informações do e-Social de março passado, e a média salarial é de apenas um salário-mínimo. Sendo assim, a maioria vive na informalidade.

Vale ainda relembrar que o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) reconhece que a atividade foi uma das mais prejudicadas pela pandemia do Covid-19.

Recém criada, a Coordenação Nacional de Fiscalização do Trabalho Doméstico e de Cuidados (Conadom), do MTE, tem realizado ações de fiscalização focadas no trabalho doméstico que ocorrem em residências, condomínios residenciais, clubes, com vistas a verificar o cumprimento dos direitos trabalhistas da categoria.

Pesquisa

Para entender mais sobre o perfil das empregadas domésticas no Brasil, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) vai iniciar um levantamento sobre o tema. Um ponto de partida é que dois terços são negras e cerca de 10% têm mais de 60 anos.

O questionário do Ipea pode ser preenchido pelos profissionais até 13 de junho e acessado por este link.

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