Programadora une poesia e algoritmos para ensinar linguagem de computação aliada ao método Paulo Freire
Natal, RN 26 de abr 2024

Programadora une poesia e algoritmos para ensinar linguagem de computação aliada ao método Paulo Freire

3 de setembro de 2022
6min
Programadora une poesia e algoritmos para ensinar linguagem de computação aliada ao método Paulo Freire

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Quando a tia de Soraya Roberta, 26, a mandava ler Paulo Freire ainda na infância, a garota não compreendia. “Eu detestava, não entendia nada, porque eu tinha 8 ou 10 anos de idade. Eu não entendia nada do que ele falava. E minha tia dizia: ‘vai ler sim que um dia você vai precisar disso’”. Passados os anos, Roberta entrou no curso de Sistemas de Informação na UFRN, e os ensinamentos da familiar, que era professora de Letras, começaram a fazer sentido.

Com um contato tão próximo com a pedagogia e a literatura, ela decidiu levar as duas áreas para a graduação. Assim nasceu o “Poesia Compilada”, uma página de poesia em códigos que agora virou livro digital gratuito, chamado “Meu primeiro Print”. 

“Quando a gente fala em poesia e programação, é assustador para quem às vezes nem começou a pensar sobre os dois. Mas na realidade ambos fazem parte de campos muito parecidos, porque a poesia é composta por semântica e sintaxe. Na poesia a gente tem os versos, as rimas, tem estrofes”, analisa.

“Tem toda uma característica própria que o faz poesia, que é diferente da prosa. Nos algoritmos a gente também tem uma sintaxe e uma semântica que o fazem ser um algoritmo e você diz: ‘opa, isso aqui não é um texto que eu leio no jornal’”, reflete.

O projeto do “Poesia Compilada” já existia desde 2012, ano em que iniciou o ensino médio integrado em Informática no IFRN Caicó, mas ganhou corpo de vez em 2016, já na UFRN. Naquele período, uma reprovação a fez questionar os métodos de ensino dentro da programação. Numa turma de 20 anos, 16 estudantes reprovaram, inclusive Soraya. 

“Foi bem difícil lidar com isso e eu fiquei bem chateada comigo, e também tentando entender o cenário”, diz. Entre os pontos que achou para tentar compreender o porquê de tanta reprovação, diz que existiam três questões principais: a falta de formação dos professores — “a maioria dos professores que atuam na área de computação não são formados em licenciatura, e deveriam ter pelo menos uma base pedagógica” —, o baixo nível de pensamento computacional entre os alunos, e a dificuldade dos docentes em relacionar o conteúdo ao cotidiano dos graduandos. 

Com a experiência adquirida no curso e a vontade de mudar o mundo à sua volta, decidiu levar o ensino da linguagem da programação para os alunos da sua cidade de origem, Jardim do Seridó, a partir de um projeto de extensão. Ela, entretanto, não recebeu financiamento da UFRN nos primeiros anos e precisou contar com a ajuda da família. A mãe é faxineira, e através da limpeza nas casas ajudava a filha a comprar folhas de ofício, pagar o transporte e até se alimentar para manter a pesquisa nas escolas. 

Já o pai da programadora é diagnosticado com esquizofrenia, recebe aposentadoria do INSS e separava uma parte do dinheiro para ajudar a garota. Segundo Soraya, estudar os métodos do educador pernambucano fizeram a questionar inclusive sobre medidas antimanicomiais.

“Paulo Freire diz que o sujeito só consegue aprender de forma emancipatória, de forma crítica, se aquilo tem a ver com o cotidiano dele. Então como é que eu vou dizer para esse aluno o que é computação, o que é um algoritmo se eu tô falando para ele às vezes de um contexto fora do Brasil e não de um contexto do Seridó?”, exemplifica Soraya.

“Preciso colocar problemas que sejam nítidos daquele cotidiano para que o aluno se engaje e entenda como é que ele pode resolver aquele problema, como a questão do rodízio de água na região. Por que não trabalhar com questões que são próprias da região ou que estão acontecendo no momento?”, questiona.

A partir dos textos e códigos ensinados em sala de aula com as crianças, o material foi sintetizado e deu origem ao “Meu primeiro Print”, baseado nos 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. “Ele trabalha com questões de gênero, questão anti-racismo, questões contrárias ao preconceito linguístico. E obviamente por trás disso está o método Paulo Freire”, afirma.

Já formada em Sistemas de Informação, ela ingressou no mestrado e viu que era momento de levar o conteúdo para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas entendeu que antes era necessário formar os próprios professores da EJA na linguagem computacional.

“Eu observei que no pensamento computacional, a gente tem alguns pilares: abstração, o reconhecimento de padrões, a decomposição e os algoritmos. Lá no método Paulo Freire a gente tem o círculo de cultura, a palavra geradora, o tema gerador e a práxis. E isso se relaciona. Na minha dissertação eu mostro as relações entre essas duas áreas e como é que elas podem ser aplicáveis”, conta.

“Minha dissertação comprovou que quando a gente aplica computação na formação docente de professores da EJA, eles conseguem ter mais autonomia para aplicar aquilo. Eu desconstruí um mito de que professor não sabe computação. Todo mundo sabe computação, o que acontece é que não está de uma forma sistematizada e tão nítida ali”, acredita.

“Esses professores passaram a reconhecer o que ele já tinha de prática feita, trabalhando com metodologias ativas de uma forma mais clara, então eles puderam sistematizar melhor o contexto de sala de aula deles para desenvolver sequências didáticas que trabalhassem com pensamento computacional e com o método Paulo Freire”.

A tia de Soraya faleceu em 2012, antes do “Poesia Compilada” ganhar corpo, mas segue presente na vida da sobrinha. “Acho que eu aprendi mais a olhar para o ser humano, aprendi mais a olhar para mim enquanto pessoa, e entender essas particularidades para além da academia”, reflete.

Para acessar o livro "Meu primeiro Print" clique AQUI.

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