No apagar das luzes, Bolsonaro reedita tentativa de acabar política de transição no Brasil
Natal, RN 15 de mai 2024

No apagar das luzes, Bolsonaro reedita tentativa de acabar política de transição no Brasil

11 de dezembro de 2022
6min
No apagar das luzes, Bolsonaro reedita tentativa de acabar política de transição no Brasil

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Com uma transição baseada no esquecimento, Jair Bolsonaro dá prosseguimento às ações que marcam seu governo de desmonte das políticas públicas de memória, verdade, justiça e reparação. A menos de um mês da posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o advogado Marco Vinícius Pereira de Carvalho, presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (CEMDP), convocou uma reunião extraordinária para a próxima quinta-feira, 15, para votar a extinção do órgão.

Trata-se de acabar uma política de transição no Brasil que, desde a ditadura militar, nunca foi concluída”, avalia Diva Santana, conselheira da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e integrante do grupo Tortura Nunca Mais na Bahia. Ela é irmã de Dinaelza Santana Coqueiro e cunhada de Vandick Reidner Coqueiro, ambos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.

Sob a justificativa de que a Comissão teria cumprido seu objetivo determinado por lei, a iniciativa do governo Bolsonaro agora é uma reedição da tentativa frustrada em junho deste ano, quando a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e o Ministério Público Federal (MPF) contestaram o desmantelamento pela busca e identificação das pessoas mortas e desaparecidas durante o regime militar. Após 27 anos de atuação do órgão, poucos corpos foram identificados. No Rio Grande do Norte, três militantes políticos seguem desaparecidos: Hiram de Lima Pereira, Luíz Ignácio Maranhão Filho e Luís Pinheiro.

Isso porque as iniciativas da Comissão esbarram em entraves administrativos, na burocracia e na falta de verbas. Criada em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o trabalho do órgão passa por mapear possíveis cemitérios e valas, recolher e identificar ossadas e prestar esclarecimentos às famílias, em busca de garantir a justiça e a reparação. Trata-se de cumprir o que estava nas disposições transitórias da Constituição de 1988, reconhecendo a responsabilidade do Estado brasileiro no desaparecimento e na morte de presos políticos. Ao mesmo tempo, em que se mantém uma interpretação equivocada da Lei de Anistia, de 1979, que impede o país de avançar na punição dos crimes de tortura, assassinato, sequestro e desaparecimento pelos agentes de Estado.

Para Diva Santana, que há 49 anos faz a luta incessante e incansável em preservar a memória da sua irmã e buscar provas dos desaparecimentos, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos “é uma conquista das famílias da sociedade brasileira, da sociedade civil organizada, que busca elucidar os casos que a ditadura militar ocultou da sociedade brasileira. E chegou ao ponto de elucidar cerca de 434 casos. Dentre esses, quase 200 desaparecidos”.

Diva lembrou que o governo Bolsonaro possui maioria hoje na Comissão. No primeiro ano de gestão, o atual mandatário substituiu quatro de seus sete integrantes. Foram determinadas a saída de Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, Rosa Maria, João Batista e Paulo Pimenta​. “Esses representantes que foram nomeados pelo presidente Jair Bolsonaro, desconhecem qualquer medida que foi conseguida no processo democrático”, contesta Diva.

Eugênia, que há mais de 20 anos luta pelo resgate da memória, reparação e justiça em relação aos crimes cometidos pela ditadura militar, presidia a Comissão desde 2014 e sequer foi comunicada oficialmente sobre seu afastamento pela presidência da República. “Uma procuradora do estado de São Paulo que vinha tentando implantar e analisar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – foram dezenove processos encaminhados para serem pesquisados pela comissão – e conseguiu até resolver o problema de atestado de óbito, porque nós não temos atestado de óbito de nossos parentes. E ela conseguiu, através de determinação legal, fornecer 5 atestados de óbitos. Depois de destituída, foi interrompido”.

No lugar de Gonzaga, Bolsonaro nomeou o advogado Marco Vinicius Pereira de Carvalho, ex-assessor da ministra Damares Alves, que nunca atuou na área. Filiado ao PSL, tem em seu currículo um pedido de impeachment do ministro do STF Dias Toffoli, que foi arquivado.  Bolsonaro também nomeou Filipe Barros, deputado federal pelo PSL, que defende que a comemoração à ditadura, e o coronel da reserva Weslei Antônio Maretti, que acredita que Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do centro de tortura DOI-CODI, é “exemplo para todos os que um dia se comprometeram a dedicar-se inteiramente ao serviço da pátria”.

Na última segunda-feira, 5, Bolsonaro mexeu novamente na Comissão. Os militares Weslei Maretti e Vital Lima dos Santos foram substituídos pelo também militar Jorge Luiz Mendes de Assis, e por Paulo Fernando Melo da Costa, ligado a grupos conservadores em Brasília e que foi assessor parlamentar do senador eleito Magno Malta (PL-ES).

Reação

Diversas entidades e coletivos repudiaram a tentativa de retroceder ainda mais nas políticas de memória, verdade, justiça e reparação. O Instituto Vladimir Herzog classificou a iniciativa de “ação autoritária para acobertar os crimes da ditadura e desestabilizar a democracia brasileira”.

Em nota, o IVH afirmou ser “inaceitável que, ao apagar das luzes, um governo declaradamente contrário à democracia e aos Direitos Humanos, continue impunemente atentando contra os esforços de resgate da memória brasileira e da busca por justiça pelos crimes cometidos contra a humanidade”.

Da mesma forma, a Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, uma articulação de 150 entidades, organizações, coletivos e comitês que buscam defender a centralidade dos direitos humanos, da memória, da verdade, da justiça e da reparação como instrumento de luta pela democracia, rechaçaram a mais uma tentativa do governo Bolsonaro em extinguir a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

É fundamental que o Ministério Público Federal adote todas as medidas cabíveis para sustar essa nova tentativa de extinção da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos”, afirma a Coalizão em abaixo-assinado.

O texto lembra que “o Brasil já foi condenado internacionalmente por não garantir a efetivação dos direitos à memória, à verdade, à reparação e à justiça para as vítimas da ditadura e seus familiares. Nesse sentido, é urgente que a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos também se pronunciem em defesa das vítimas”.

Clique aqui para acessar o abaixo-assinado.

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