Guerra cognitiva, seu uso nas mídias sociais e manipulação política
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Guerra cognitiva, seu uso nas mídias sociais e manipulação política

26 de novembro de 2023
11min
Guerra cognitiva, seu uso nas mídias sociais e manipulação política
Foto: ciberprisma.org

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Em 2020, a Aliança Militar do Atlântico Norte (OTAN) financiou um estudo no qual a guerra cognitiva foi considerada como uma nova forma de guerra. Antes, a OTAN dividia a guerra em cinco domínios operacionais: ar, terra, mar, espaço e cibernética. Agora, se trata de uma guerra com o objetivo mais amplo: não apenas derrotar um inimigo, mas modificar a maneira de pensar e agir das pessoas. O estudo foi coordenado por François du Cluzel, um ex-militar francês (contra-almirante) que trabalha para a OTAN nos Estados Unidos. Além de publicar os resultados da pesquisa (disponível em inglês e espanhol), ele também publicou um artigo intitulado Cognitive Warfare, a Battle for the Brain (Guerra cognitiva, uma batalha pelo cérebro) no qual resume seus estudos a respeito, argumentando que a guerra cognitiva é mais ampla do que as estratégias anteriores, não se trata apenas de mudar o que as pessoas pensam, mas a forma como pensam, a conquista do cérebro, se trata de usar tecnologias para alterar a “cognição de alvos humanos”. Essencialmente, manipulação psicológica, usando informações (e desinformação) para alterar o comportamento humano, influenciar opiniões, crenças, e percepções.

A guerra cognitiva objetiva mudar a formas de agir das pessoas e esta é uma diferença fundamental em relação às guerras anteriores. A concepção subjacente é transformar o conhecimento em uma arma, explicitada no relatório: “Enquanto as ações tomadas nos cinco domínios são executadas a fim de ter um efeito no domínio humano, o objetivo da guerra cognitiva é fazer de todos uma arma”. Como diz um dos capítulos do documento se trata da militarização da ciência do cérebro, dirigida “para a totalidade do capital humano de uma nação” e se alimenta de técnicas de desinformação e propaganda dirigidas a esgotar psicologicamente os receptores de informação” e deve atuar todos os dias, 24 horas.

E um dos objetivos é que se antes as pessoas se submetiam passivamente a propaganda, agora passam a contribuir ativamente com ela, multiplicando-a. Como diz Benjamin Norton, um jornalista norte-americano no documentário Guerra cognitiva: hackear  mentes para convertê-las em armas, exibido na rede TVT, o que eles querem é hackear o cérebro,  usar a guerra psicológica, suas técnicas etc., para explorar os medos e fobias e mais importante: destruir a capacidade de compreensão das pessoas.

No artigo A Guerra cognitiva ou a batalha pelo controle do nosso cérebro  publicado no Observatório da imprensa em 28 de março de 2023, Carlos Castilho, jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC, afirma que a guerra cognitiva  é uma ferramenta política cujo principal objetivo é alterar a forma pela qual as pessoas assimilam informações “Trata-se de uma arma comunicacional que não se limita apenas à produção em massa de dados, fatos e eventos para confundir adversários, mas vai além, ao procurar gerar e alimentar desconfianças ou resistências sobre todas as informações que vão contra os seus objetivos”.

E isso se dá em um momento no qual “A avalanche informativa na internet faz com que as pessoas não tenham mais tempo para refletir sobre novos fatos e dados, passando a formar opiniões a partir do acúmulo de notícias de impacto”. E nesse sentido “a veracidade, exatidão, pertinência e relevância das informações produzidas pelos protagonistas da guerra cognitiva, ficam em segundo plano (...) a preocupação principal não é ter ou não razão, mas impedir que a parte contrária ocupe espaços na arena de debates e seja encurralada em nichos informativos”.

A questão é: como se contrapor às narrativas, às falas mentirosas e manipuladoras? Baseado em evidências, provas e argumentos? Claramente, não são suficientes.

No artigo Guerra cognitiva: o uso de PsyOps online para manipulação da mente humana publicado em 24 de maio de 2022  Cristiano Zanin Martins e Graziella Ambrosio afirmam que essas operações psicológicas, conhecidas como PsyOps, “ganham destaque por seu impressionante impacto desestabilizador” e que são "operações planejadas para transmitir informações com o objetivo de influenciar as emoções, motivações, raciocínio e, finalmente, o comportamento de governos, organizações, grupos e indivíduos” e que é também utilizada para a prática de lawfare (uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo)(https://www.conjur.com.br/2022-mai-24/zanin-ambrosio-uso-psyops-online-manipulacao-mente/).

Quanto ao uso das mídias sociais afirmam que elas “alavancam uma série de técnicas diferentes, desde o uso de bots automatizados — contas falsas de usuários que muitas vezes repetem o mesmo conteúdo — até a disseminação sistêmica de informações enganosas por meio das mídias sociais”.

A abundância de dados aumentou significativamente a capacidade de direcionar mensagens de forma eficaz a determinados públicos e uma das técnicas utilizadas citada por eles é conhecida como astroturfing que é “a criação de massas de identidades falsas para dar a impressão de que existe uma onda de opinião onde ela não existe na realidade”, assim como o uso sistemático de troll (Segundo o wikimand “Um trol ou troll, na gíria da Internet, designa uma pessoa cujo comportamento tende sistematicamente a desestabilizar uma discussão e a provocar e enfurecer as pessoas nela envolvidas. O termo surgiu na Usenet, derivado da expressão trolling for suckers ‘lançando a isca aos trouxas’) (https://www.wikiwand.com/pt/).

E nesse sentido, são usadas ofensas, postando comentários desagradáveis etc, adaptando  mensagens e apelos para determinados públicos “O algoritmo de programas é trabalhado de forma a favorecer informações que se encaixam no perfil de preferências do usuário e bloqueiam as informações que não se encaixam. Com isso, o usuário fica numa bolha na qual apenas informações consistentes com a sua visão de mundo são apresentadas, deixando-os confiantes de que apenas suas opiniões estão corretas”.

Na psicologia isso é chamado de viés da confirmação e citam como exemplo “pessoas que acreditam no terraplanismo, embora isso seja consensualmente refutado pela comunidade científica, podem ser expostos apenas a esse tipo de notícia para aumentar o seu engajamento dentro do próprio aplicativo da rede social”.

Quanto ao uso das mídias sociais para a manipulação política, o relatório do Oxford Internet InstituteIndustrialized Disinformation Global Inventory of Organized Social Media Manipulation” de 2020 de autoria de Philip Howard, Hanna Bailey e Samantha Bradshaw revela, com dados de 81 países, as formas como se têm usado as mídias sociais para veicular desinformação e  manipulação política. O relatório foi elaborado por uma equipe de professores da universidade de Oxford que monitoram a proliferação de campanhas de manipulação política de mídia social, chamada de propaganda computacional (projeto de pesquisa Computational Propaganda Research Project – desenvolvida pelo Oxford Internet Institute) cujo objetivo é o de analisar as “ferramentas e estratégias digitais para influenciar o comportamento do público online”.

Para eles, existe o que chamam de desinformação industrializada, cada vez mais profissionalizada, produzida em escala industrialcomaparticipação de empresas de comunicação e de relações públicas, e analisa as suas estratégias e recursos usados para manipular politicamente a opinião pública.

O relatório constata que as atividades das tropas cibernéticas têm crescido. Em 2020 foram encontradas evidências do uso das mídias sociais para espalhar propaganda computacional e desinformação política em 70 países, com gastos de quase US$ 10 milhões. Nesse sentido “A mídia social tornou-se um componente crucial da campanha digital, e alguns atores políticos têm usado o alcance e a onipresença dessas plataformas para espalhar desinformação, suprimir a participação política (estas e outras informações do relatório estão disponíveis em https://mediatalks.uol.com.br/2021/01/20/pesquisa-de-oxford-mostra-uso-de-midias-sociais-para-manipulacao-politica/.

O relatório lista algumas empresas que atuaram em vários países, entre elas a britânica Cambridge Analytica que foi contratada pela equipe de Donald Trump na campanha eleitoral  em 2016 e foi constatado que ele se beneficiou com o uso de dados do Facebook de mais de 50 milhões de pessoas, direcionando propaganda segmentada (e mentirosa). (mais detalhes estão no  livro de Brittany Kaiser  Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque, Editora Harper Collins, 2020).

Outro aspecto relevante, em especial em processos eleitorais, é o uso de robôs “unidos na manipulação política”, além de contas hackeadas ou roubadas.

Quais as principais estratégias e táticas identificadas e utilizadas pelas tropas cibernéticas? No relatório são identificadas algumas, entre elas, a criação do que chamam de mídia manipulada (jornais, rádio, canais de TV, sites de notícias falsas etc.,) uso de memes, imagens ou vídeos editados e conteúdo online enganoso, sendo que todas foram utilizadas em profusão no Brasil na campanha eleitoral de 2018.

Nesse sentido, é importante o papel de agências checadoras de notícias como a First Draft News no Reino Unido e no Brasil as agências como a Lupa, Fato ou Fake, Agência Pública, E-Farsa e Fake Check contribuindo para desmentir a profusão de mentiras, como entre muitas, sobre urnas eletrônicas, a suposta eficácia de medicamentos como cloroquina e invermectrina para a covid-19 etc.

Há campanhas profissionais coordenadas para desacreditar não apenas a ciência, como adversários políticos. Nas eleições, se usam ferramentas e técnicas de propaganda computacional. Segundo a pesquisa, em 59 países foram encontradas uso de trolls ​​para atacar adversários políticos, ativistas ou jornalistas, especialmente nas redes sociais e o Brasil é citado como um país no qual houve ataques sistemáticos e estimulados pelo governo de então, campanhas de difamação, além do estímulo à polarização da sociedade (o “nós” e “eles”).

Um aspecto importante é quanto às empresas de mídia social que lucram com a promoção da desinformação. Como fazer para impedir sua difusão? Como regulamentar seu uso, não permitindo mentiras e manipulação política? As medidas das próprias empresas tem sido ou são suficientes? O que fazer com as plataformas que hospedam, espalham e multiplicam a desinformação?

São inegáveis as consequências danosas causadas pela manipulação das mentes e a  desinformação. Certamente o uso das redes sociais foi e tem sido de fundamental importância para a guerra cognitiva. A questão relevante é saber quais os mecanismos eficazes para combatê-la. Usando apenas um exemplo no Brasil, relativo às urnas eletrônicas - que se tornou um dos motes da propaganda bolsonarista - recorrente até hoje, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) as defendeu com argumentos sólidos, e quem acusou e tem acusado não apresentou nem apresenta uma única prova que tenha havido fraudes. Ao contrário do que eles dizem, o TSE possibilita a auditoria do software que é usado nas urnas eletrônicas, com a abertura da fonte a partidos, organizações e instituições acadêmicas. O que não impede a continuidade das críticas infundadas. Mas não bastam apenas os desmentidos, argumentos, dados etc., porque são imunes à argumentação e à racionalidade, vítimas da máquina de mentiras, que continua atuando.

No Brasil, um dos instrumentos importantes no combate a um dos aspectos da guerra cognitiva, que é à desinformação, é o Projeto de Lei das Fake News (PL 2630/2020), aprovado no Senado (30/6/2020) e em tramitação na Câmara. Entre outros aspectos estabelece normas, diretrizes e mecanismos de transparência para provedores de redes sociais e de serviços de mensagens privadas a fim de garantir segurança, ampla liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento, em defesa da dignidade, honra e privacidade dos cidadãos.

O grande desafio é o de como combater nessa guerra cognitiva,  que mecanismos legais se tem para punir os (i) responsáveis por propagar conteúdos fraudulentos,  assegurar a liberdade de expressão, combater o uso de perfis falsos e contas automatizadas e o uso indevido das mídias sociais para a manipulação política? Uma das medidas poderia ser a desmonetização de canais que sistematicamente divulgam conteúdos propositalmente enganosos e combater os atentados contra a democracia.

Zanin e Ambrosio propõem duas linhas principais de combate ao uso das operações psicológicas: a educação (inclusive digital) e o “rastreamento da manipulação e da desinformação online, sua inoculação e seu confronto com a verdade”. A questão é: como fazer isso? Uso eficaz dos serviços de segurança, a aplicação da lei e, como eles dizem  os tribunais necessitam ser suficientemente informados sobre a existência de potenciais tecnologias de guerra cognitiva e ser “treinados para investigar e combater o possível uso nefasto das mídias sociais”.

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