Excesso
Natal, RN 19 de mai 2024

Excesso

17 de fevereiro de 2024
4min
Excesso
Ilustração: Jônatas e Davi por Gottfried Bernhard Goez, 1708-1774. A cabeça de Golias no canto inferior direito

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Deus estava em todo lugar. Era isso que eu sabia, era isso que me ensinaram e era nisso que eu acreditava. Me chamo Davi e vou te contar uma história sobre um tempo em que isso começou a ser um tormento....

Eu nasci e cresci em uma congregação religiosa cristã e não há problema algum a relatar quanto a isso... Não, enquanto eu era uma criança... Não, até chegar a adolescência... Não, até eu conhecer Jônatas.

Foi em um domingo comum que nos vimos pela primeira vez. Foi num domingo comum que nossos olhos se prenderam uns aos outros.  Foi num domingo que nos apaixonamos. Foi naquele domingo que Deus começou a me castigar e meu tormento deu início.

Eu iria pro inferno.

Eu era uma desgraça pra Deus.

Eu era contra a natureza de Deus.

Eu estava deixando de ser filho de Deus.

Passei a cultivar um medo imenso... Medo de que todos descobrissem, de que todos notassem alguma coisa, de que eu fosse expulso de casa, da igreja. Medo de perder meus amigos, minhas amigas, minha família... Deus estava ali, vendo tudo. Ele sabia de todos os meus passos, de todos os meus pensamentos, de todos os meus atos...

E eu pecava. Jônatas era meu maior pecado. Eu era seu maior pecado. Pecávamos contra a carne, contra a natureza, contra Deus. Como podíamos nos amar?! Dois homens, adolescentes cheios de hormônios e desejos. Coisa do demônio!!! Como podíamos nos amar?! Davi e Jônatas, Jônatas e Davi. Já havia registro desse amor?! Já, estava na Bíblia. “Indo-se o rapaz, levantou-se Davi do lado do sul e prostrou-se rosto em terra três vezes; e beijaram-se um ao outro e choraram juntos; Davi, porém, muito mais. (1Samuel 20.41)”

Deus estava em todo lugar. Nos meus sonhos Ele aparecia expulsando-me do Paraíso (Adão, Eva ou a Serpente?!); nos meus pensamentos Ele me perseguia, sussurrava em meus ouvidos que eu morreria no inferno, queimando em brasas quentes pela eternidade. A congregação dizia o mesmo, reforçava essa mensagem: “É PECADOOOOOO!!!”

Eu e Jônatas nos olhávamos e baixávamos a cabeça, arrependidos. Tentamos nos afastar. Várias vezes. Brigamos. Inventamos intrigas. Começamos a namorar as garotas da igreja. Queríamos nos redimir diante de Deus. Ele estava em todo lugar e sabia que era legítima nossa culpa, nosso arrependimento... Mas Ele também era testemunha do nosso amor, do nosso desejo, da vontade imensa de estarmos juntos, sentindo o corpo um do outro, nos amando, sendo felizes, sendo quem éramos...

Sua sombra nos atormentava, nos perseguia, nos encurralava. Até que um dia Jônatas sumiu. Sua família havia se mudado para outra cidade, outro estado, distante... A família dele descobriu nosso amor. Não seríamos mais possíveis. Ele noivara. E eu sofri, caí em um fosso profundo, escuro, onde quem me fazia companhia era Deus. Deus me dizia que eu era uma pessoa pervertida, pecadora, imunda, infeliz; que eu não era digno de ser seu filho; que se continuasse insistindo em ser quem eu era, antinatural, eu seria condenado pela eternidade. Deus estava em todos os lugares inclusive ali, no fosso, me castigando. Estaria eu já no inferno? Deus não já estaria me castigando?

Emagreci, parei de ir à igreja, definhei aos poucos no meu sofrimento, no meu pecado, na minha condenação, sendo vigiado por um Deus inclemente, impiedoso, vingativo e julgador... Entrei em uma crise depressiva profunda, disseram os médicos. Precisava de tratamento. Minha mãe dizia que eu precisava de Deus, que eu precisava voltar pra igreja, que eu tinha que voltar a ser o homem que Deus tinha feito... Minha mãe esbravejava: É FALTA DE DEEEEEEEUS!

De onde falo agora, ninguém pode me ouvir. Ninguém pode sentir meu alívio. Ninguém pode mensurar minha paz... De onde eu falo agora, tenho um desejo enorme de gritar para minha mãe, de vociferar para o mundo todo que quando eu decidi não mais existir, não mais sofrer, não mais me sentir uma aberração, não foi por falta de Deus, foi por excesso!!!

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.