Acampamento Antônio Batista: o milagre que brota das mãos camponesas
Natal, RN 4 de jul 2024

Acampamento Antônio Batista: o milagre que brota das mãos camponesas

4 de junho de 2024
6min
Acampamento Antônio Batista: o milagre que brota das mãos camponesas

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Por Jovelina Santos*

Em outubro de 2015, há quase nove anos, nasceu o acampamento Antônio Batista sob a articulação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), semeado por trabalhadores e trabalhadoras rurais em área não produtiva do Perímetro Irrigado Baixo-Açu, pertencente ao Estado do Rio Grande do Norte, cuja terra não cumpria sua função social.

Quem passa pela RN 118, já em território do Alto do Rodrigues, pode avistar várias casas de taipa compondo a paisagem, ladeadas de árvores frutíferas. Porém, não consegue ver a beleza e a transformação de vidas que se espraia para além dos quintais com as plantações das famílias que ali semeiam suas vidas.

Tive privilégio de ver de perto a riqueza que há no lugar, um milagre produzido por mãos de trabalhadores e trabalhadoras que amanham a terra, afagando cada metro para descobrir sua fertilidade. Esse trabalho paciente e meticuloso de quem lida com a arte da agricultura resultou numa produção diversificada em pouca área agrícola.

Lá temos registradas colheitas de acerola, banana, mamão, maracujá, melancia crioula, melão de cheiro, coco, graviola, caju, umbu, seriguela ou ciriguela, pitaia, açafrão, pimenta de cheiro e malagueta, gergelim, cebola de cabeça, rúcula, alface, salsinha, cebolinha, coentro, hortelã, hibisco, romã, beringela, cenoura, jerimum, abobrinha, quiabo, pepino, pimentão, couve, tomate cereja, batata doce de diversas espécies, girassol, macaxeira e feijão guandu. Que se registre a produção de óleo de coco e a extração de mel, cuja complexidade merece um texto próprio a posteriori.

Enquanto passeio pela plantação, sigo atenta às explicações acerca das técnicas agrícolas, do cuidado com a adubação e do uso de defensivos naturais (biofertilizantes). Tomo conhecimento de que toda a produção é orgânica e atesto sua qualidade insuperável. Com orgulho, as famílias camponesas me informaram que a semente de coentro enviada à BioNatur – cooperativa do Rio Grande do Sul que comercializa sementes agroecológicas, foi classificada como a melhor dentre as analisadas, conferindo a estes agricultores e agricultoras um importante conceito de responsabilidade e competência técnica para a produção agroecológica em níveis invejáveis.

E toda essa batalha em meio às adversidades, sendo a maior delas a falta de regularização da terra, da qual depende uma série de melhoria das condições para produzir e viver com dignidade, sendo, pois, a reivindicação incessante do acampamento desde o primeiro dia da ocupação do território. Naquela época, em 2015, Robinson Faria era o governador.

Muita luta foi travada para que as famílias permanecessem no local. Perseguições, insultos e ações para obstaculizar o trabalho e a vida camponesa não faltaram, haja vista que o agronegócio disputa este território com afinco. Mas a comunidade seguiu, lutando e superando, na medida do possível, os muitos percalços.

Em 2019, com a chegada de Fátima Bezerra (PT) ao governo do RN, as vozes no acampamento davam conta do sentimento de esperança e alegria partilhada pelo coletivo. Uma centena de famílias irmanadas na certeza de que com o governo progressista a justiça social haveria de prevalecer e a expectativa de regularização da terra parecia se apresentar de modo mais palpável. E assim se espelhava no olhar de cada homem e cada mulher a expectativa de um futuro promissor logo nos primeiros anos do governo.

Justiça e dignidade para os homens e mulheres que reivindicam terra de trabalho, terra de moradia. “Em breve estaremos produzindo com todas as condições” era o que se ouvia. Os dias, meses e anos foram se passando, o primeiro mandato de Fátima Bezerra terminou e a regularização não aconteceu. Mas a luta não parou e a esperança não morreu, embora o desapontamento seja real e palpável como uma estaca no coração.

Chegamos ao segundo ano do segundo mandato de Fátima Bezerra e as cem famílias continuam na labuta do dia a dia sem que a regularização tenha chegado. Ainda assim, organizam-se coletivamente para garantir a sobrevivência de todos e todas, produzindo de quase tudo um pouco. Associada à produção agrícola se encontra a criação de pequenos animais (aves diversas, ovelhas e porcos) e até mesmo umas cabeças de gado.

Bastante organizadas na distribuição das áreas e definição das culturas, as famílias se articulam em pequenos coletivos como o Grupo Renascer que cuida do plantio do girassol e do coentro, o Coletivo da Horta a Mesa constituído por 12 mulheres que também já iniciaram a formação de um banco de sementes crioulas. Fazem malabarismo para vender a produção, chegando até as feiras dos municípios circunvizinhos e quinzenalmente montam uma barraca no IFRN – Campus de Ipanguaçu onde apresentam à comunidade os frutos do suor de cada um e cada uma, cujo grande valor reside na possibilidade da reprodução social camponesa e na oferta de alimentos de qualidade à população.

Indispensável registrar que a maioria das famílias do acampamento são chefiadas por mulheres, assim como é igualmente importante dizer que a parceria entre as famílias criou laços de irmandade que as fortalecem na luta por terra de trabalho e moradia. Ao final da exposição em que me narraram capítulos duros de sua história, com alegria enumeraram os frutos de suas mãos. Um deles pergunta: “O que falta para esse povo que já fez tudo isso?” E ele mesmo respondeu: “Libera a terra, libera a terra”.

Todos consentiram e eu assumi o compromisso de publicizar o que vi. Acrescento ainda que o olhar apressado dos transeuntes da estrada dificilmente consegue dar a imaginar que para além das casas simples há uma imensa riqueza semeada na terra e nos sonhos das famílias que tão somente almejam a dignidade de viver na própria terra com mesa farta de alimentos saudáveis para suas famílias e as nossas também.

*Professora doutora do Departamento de História – Campus Assu/UERN

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