Porcelanas quebradas
Natal, RN 26 de abr 2024

Porcelanas quebradas

27 de agosto de 2022
5min
Porcelanas quebradas

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Por Sheyla Azevedo

Uns meses atrás, meu celular e computador resolveram quebrar de uma só vez. Nesses tempos difíceis em que vive a imensa maioria de nós, nem preciso dizer que fiquei assim meio que estatelada, precisando fazer escolhas e revirando ideias daqui e de acolá para resolver esses dois problemas. Foi quando conheci o Caio. Na verdade, eu não sei bem quem é o Caio. Eu só entrei em contato pelo chat do meu cartão de crédito e a pessoa que digitava do outro lado se identificou como Caio. Mas o que sucedeu naqueles próximos minutos ficaram marcados em minha memória afetiva. Caio não só se mostrou prestativo, como foi muito atencioso comigo, tirando-me as dúvidas de maneira paciente. E, ao final, ao fazer a pergunta de praxe, se poderia me ajudar em algo mais, eu brinquei e disse: "estou esperando um milagre". E, como poderia ser previsível, ao invés de se lamentar por não ser uma espécie de santo milagreiro, Caio escreveu: "Estou na torcida para que esse milagre aconteça o quanto antes para a senhora, uma cliente gentil e que fez meu trabalho parecer fácil". E eu me emocionei por estar falando com um ser humano por trás da máquina. Às vezes, a vida tem dessas coisas. A vida moderna, quero dizer, em que máquinas se comunicam com a gente. Senti que conseguimos naquele momento, dois completos estranhos, encostar o coração um no outro, como num abraço. Uma tarefa que às vezes parece inatingível e até impossível com quem está bem do nosso lado.

Um pouco mais recente, minha mãe precisou ficar internada por sete dias no hospital por conta de uma pneumonia. Após exaustivos dias naquele périplo veio a recomendação de uma injeção de alto custo que deveria ser tomada em casa, como indicação para a pneumonia não retornar tão cedo. Nem preciso explicar a vocês o quanto me afligia aquela situação de ter de encontrar alguém que pudesse ir em casa, para que minha mãe não precisasse se expor ou ir até uma farmácia. Foi então, que seu Roberto, um senhor muito prestativo que trabalha no meu condomínio me indicou Gabriel. Eu não tinha certeza quem era ele até iniciarmos a conversa pelo aplicativo. Fato é que o vi crescer, um garotinho que até pouco tempo brincava pelo pátio do condomínio. Estudante de Enfermagem na UFRN ele me perguntou sobre a medicação, enviei fotos da receita, mostrei o que havia comprado para a aplicação e após ele me tranquilizar de que tudo tinha sido feito corretamente, eu lhe perguntei quanto seria o serviço. Nada mais natural, claro. E Gabriel disse que não iria me cobrar nada por aquilo. Então eu insisti, afirmando que era o trabalho dele e tal e aí ele me escreveu o seguinte: "UFRN=SUS"! E, de novo, fiquei estatelada.

Dessa vez pela emoção e orgulho desse menino! Gabriel tem apenas 21 anos e uma consciência coletiva que raramente vejo nas pessoas. Especialmente em parte da juventude, muitas vezes alheia, preocupada em rolês e shows, sem exercitar a menor responsabilidade afetiva com os íntimos, muito menos com estranhos, a não ser que possa ser recompensada por isso. Pois bem, Gabriel destoa dessa apatia, para não chamar de egoísmo. Melhor, ele canta o canto da solidariedade e da responsabilidade social. Contou-me que a inspiração para cursar Enfermagem - uma profissão que realmente é voltada para cuidar das pessoas, para além de diagnósticos e receituários - veio da avó, quando ela teve um câncer, e que ele se envolveu bastante nos cuidados com ela. Inclusive, quer especializar-se em Enfermagem Oncológica e já faz estágio na área.

Dia desses, uma amiga estava me falando de uma prática milenar chinesa, na qual eles nunca jogam fora as louças de porcelana quebradas. Ao invés disso, eles colam as várias pecinhas com uma massa que contém ouro. Sendo assim, a peça antes estragada por quebraduras e fissuras, vai ganhando novas formas e contornos cheios de valor e de significados. E eu fiquei pensando nesses acontecimentos e de como Caio e Gabriel, duas argamassas improváveis, me ajudaram a colar pedaços meus, quebrados por esses caminhos angustiados da vida. E parafraseando Josué de Castro em seu clássico A Geografia da fome (1946), quando disse, “gente é para brilhar e não para morrer de fome”, eu diria: que bom seria se pudéssemos todos estar mais atentos às colas que a vida nos oferece, para nos fazer reluzir e matar nossa fome de bons afetos.

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