Crimes de guerra e as leis internacionais
Natal, RN 16 de mai 2024

Crimes de guerra e as leis internacionais

18 de novembro de 2023
13min
Crimes de guerra e as leis internacionais
Faixa de Gaza / Foto: reprodução

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

No livro Do Contrato Social ou Princípios do direito político, publicado em 1762, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), no capítulo sobre Escravidão (IV), diz: “A guerra não é portanto uma relação entre homem e homem, mas uma relação de Estado e Estado, na qual os indivíduos são apenas acidentalmente inimigos, não como homens, nem mesmo como cidadãos, mas como soldados (...) sendo a finalidade da guerra e destruição do Estado inimigo, tem-se o direito de matar seus defensores enquanto estiverem de armas na mão; mas assim que as depõem se rendam, cessando de ser inimigos ou instrumentos do inimigo, voltam a ser simplesmente homens, e não se tem mais direito sobre a sua vida. Ora, a guerra não dá nenhum direito que não seja necessário à sua finalidade”. (Editora Penguin/Companhia das Letras, 2011, p.61-62).

Mais de um século depois, em 1864, na primeira Convenção de Genebra (Suíça), foi criado o Direito Internacional Humanitário com o objetivo de respeitar o princípio de que as guerras devem ser travadas dentro de determinados limites que devem ser respeitados, a fim de preservar a vida e a dignidade das pessoas, em especial dos que não estão diretamente envolvidos, como os civis (mulheres, crianças, anciões etc.).

O estabelecimento de um tribunal internacional foi proposto pela primeira vez durante a Conferência de Paz, realizada em Paris em 1919, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e só em 1937 em uma conferência realizada em Genebra (Suíça) resultou no estabelecimento de um Tribunal Internacional Permanente para julgar atos de terrorismo internacional, mas teve pouca adesão e não entrou em vigor. Um ano depois, se inicia a Segunda Guerra Mundial e até seu final, em 1945, sem qualquer possibilidade nesse sentido.

E só em 1949 houve mais uma convenção de Genebra que ampliou a lista de crimes de guerra. Segundo o documento “Determinadas normas humanitárias fundamentais devem ser observadas, independente do tipo de conflito e do estatuto ou das atividades desempenhadas pelas pessoas afetadas pelo mesmo. Portanto, em qualquer momento e em qualquer lugar, são proibidos: o homicídio, a tortura, os castigos corporais, as mutilações, os atentados à dignidade, a detenção de reféns, os castigos coletivos, as execuções sem julgamento regular e todas as formas de tratamentos cruéis e degradantes”.

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, fundado em 1863, trabalha para levar assistência humanitária às pessoas afetadas por guerras e conflitos, e atua em consonância com os princípios da Convenção de Genebra de 1949, como um dos fiscalizadores do Direito Internacional Humanitário. No caso especifico de Israel, afirma que desde 1948, são muitas as situações em que houve o envolvimento dos seus governos em infrações graves ou crimes de guerra como, entre outros,  homicídios intencionais,  tortura e o tratamento desumano, deportação em massa, e até  uso de armas ou meios de combate proibidos (como armas químicas e bacteriológicas).

Além das Convenções de Genebra, há outros, como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional criado como desdobramento da Conferência de Roma, realizada entre os dias no dia 15 e 17 de julho de 1998 adotado por 120 votos, com a abstenção de 21 países e apenas sete votaram contra: China, Iraque, Líbia, Catar, Iêmen, Estados Unidos e Israel. 

O Estatuto de Roma entrou em vigor em 1º de julho de 2022 e estabeleceu as competências do Tribunal Penal Internacional, encarregado de julgar pessoas acusadas de crimes de guerra, genocídio (previsto pela Convenção para Prevenção e Punição do Crime de Genocídio da ONU  de 1948, como atos com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal) e crimes contra a humanidade (não são retroativos, ou seja, trata apenas dos crimes cometidos a partir dessa data).

O que pode fazer o Tribunal Internacional? Que poderes têm? Quando a Assembleia Geral da ONU aprovou a criação de um Tribunal Internacional para julgar as atrocidades cometidas na Guerra, os países vencedores e com grande poder no momento, como os Estados Unidos, Inglaterra e França, criaram dois tribunais para processar acusados de crimes de guerra, em especial da Alemanha e Japão. O Tribunal Militar Internacional, que foi sediado em Nuremberg, na Alemanha, que processou os líderes alemães, e outro, o Tribunal Militar Internacional para o extremo Oriente, em Tóquio, para processar líderes japoneses envolvidos na guerra.

No caso do Tribunal Penal Internacional,  pode exercer jurisdição se a pessoa acusada for de um Estado-Membro, ou se o crime for cometido no território de um Estado-Membro e quando os tribunais nacionais não quiserem ou não puderem julgar crimes internacionais. Mas sua competência é a de julgar os indivíduos e não os Estados (atribuição da Corte Internacional de Justiça) por crimes de guerra e genocídios.

No início dos anos 1990, o Conselho de Segurança das Nações Unidas criou dois tribunais: um para a ex-Iugoslávia, em resposta a atrocidades cometidas pelas forças armadas da Bósnia e Herzegovina em Srebrenica (massacre de Srebrenica) e o que foi considerado como uma limpeza étnica  o que ocorreu durante a guerra entre 1992 e 1995. O Tribunal Penal Internacional e o Tribunal Internacional de Justiça determinaram que as ações fossem julgadas como genocídio. O outro Tribunal foi criado em Ruanda, em 1994 após o genocídio (assassinato em massa) de membros da etnia tutsi cometido por integrantes da etnia hutu, que resultou em mais de 800 mil mortes, ocorridas entre sete de abril de 1994 a 15 de julho de 1994 (ver mais detalhes sobre o genocídio no livro Uma temporada de facões, relato do genocídio em Ruanda, de Jean Hatzfeld, Editora Companhia das Letras, 2005).

Em dezembro de 2000 na Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, assinou o Estatuto de Roma, que entrou em vigor em 1 de julho de 2002, mas o presidente George W. Bush retirou a assinatura dos EUA em 2002, antes mesmo da ratificação. Da mesma forma o fez Israel (que resultou da inclusão na lista de crimes de guerra a ação deliberada de expulsão de milhares de palestinos).

O Tribunal emitiu sua primeira sentença em 2012, quando declarou o líder rebelde congolês Thomas Lubanga culpado por crimes de guerra. Em relação ao Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro, foi denunciado pela primeira vez no dia 27 de novembro de 2019 no Tribunal Penal Internacional com uma representação da Comissão Arns e pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos. Na denúncia, se afirma que Bolsonaro “incitou violência contra populações indígenas e tradicionais, enfraqueceu a fiscalização e foi omisso na resposta a crimes ambientais na Amazônia”. Depois foram mais quatro representações criminais, como a de fevereiro de 2022, depois da apresentação do relatório final da CPI da Covid, na qual ele é acusado de crime contra a humanidade (no dia 1º. de setembro de 2022 ele foi condenado pelo Tribunal Permanente dos Povos por crimes contra a humanidade cometidos durante a pandemia) No entanto,  não teve consequências porque o TPP não tem o peso jurídico do Tribunal Penal, foi mais simbólica e moral, mas é importante ressaltar que, em que pese à documentação apresentada sobre os crimes cometidos, até o momento ele não foi julgado. O Brasil é um dos países signatários do Estatuto de Roma e a Constituição Federal dispõe, no artigo 5º, que o País "se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão" e o decreto 4.388/2002, que trata da ratificação do Brasil ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, prevê pena de prisão aos condenados.

Em 17 de março de 2023, o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão para o presidente russo Vladimir Putin, primeiro chefe de Estado de um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU a ter um mandado de prisão. A Rússia retirou a sua assinatura do Estatuto de Roma em 2016 e, portanto, não reconhece a autoridade do TPI, e assim o Tribunal não tem autoridade nesse país. No entanto, viajar para um Estado-parte ele pode ser preso.

Nesse sentido, como inserir no Direito Internacional, os crimes de guerra, o que está acontecendo hoje na Faixa de Gaza? Estamos diante de mais um caso de reincidência de  violações do Direito Internacional Humanitário,  definidos por acordos internacionais. E não há dúvida nesse sentido, uma vez que se estabelece que quando uma das partes em conflito ataca voluntariamente objetivos não militares (humanos e materiais) como tem ocorrido com os bombardeios de Israel na Faixa de Gaza (que incluem escolas, hospitais, populações civis etc.) trata-se de crime de guerra,  na medida em que milhares de civis morrem, vitimas de ataques aéreos e das bombas.

Em 37 dias desde o início, segundo o Monitor Euro-Med dos Direitos Humanos, os ataques das Forças Armadas Israelense à Faixa de Gaza resultaram em 11.019 mortes (10.203 civis, 4.812 crianças, 2.944 mulheres), 30.220 feridos, 214 escolas destruídas, 12 hospitais, 64 mesquitas e 397 profissionais da saúde mortos em consequência dos bombardeios.

Muito mais letal do que ocorreu em 2014. Segundo a ONU, entre os meses de julho e agosto de 2014, em 50 dias de ocupação, 2.131 palestinos foram mortos, sendo 501 crianças e, dessas, 70% tinham idade menor que 12 anos. Nesses 50 dias de ocupação militar aérea, marítima e terrestre foram registrados 10.918 feridos, sendo 3.312 crianças e 2.120 mulheres. Pelos menos 10.920 casas foram destruídas ou danificadas, além de 98 escolas, 161 mesquitas, oito hospitais (dos quais seis totalmente destruídos), 46 escritórios de Organizações Não Governamentais, 50 barcos de pesca e 244 carros (https://palestinalibre.org/articulo.php?a=52612).

No início de novembro de 2023, Mads Gilbert, médico norueguês, gravou um depoimento dentro de um dos hospitais da Faixa de Gaza (Shifa). Ele trabalha em hospitais de Gaza desde os anos 1970(em distintos períodos) e o depoimento se deu quando se ouve o som de um dos últimos geradores de eletricidade do hospital que está funcionando com azeite de cozinha (motor modificado por “engenhosos técnicos do hospital”). Não há combustível porque este é um dos objetivos de Israel.

Sem energia elétrica, sem aparelho de ar condicionado funcionando, ventiladores, inclusive das incubadoras, como um hospital pode funcionar? Uma matéria publicada no dia 14 de novembro no UOL por Jamil Chade informa que a  ONU anunciou que a ajuda humanitária na Faixa de Gaza está chegando ao fim e  apenas no dia 15 de novembro poucos caminhões foram autorizados a entrar desde o dia 7 de outubro.

No hospital em que o médico está, assim como outros hospitais, tiveram de encerrar a unidade de esterilização (que esteriliza os equipamentos cirúrgicos), ou seja, não tem eletricidade, água, medicamentos, comida, tudo isso, diz ele, planejado e executado pelo governo de Israel e suas forças militares, chamadas de Defesa de Israel, mas que não são forças de defesa, mas de ataques: “Não se trata da defesa de Israel, é um ataque contra o povo palestino, seu direito de existir, seu direito de viver em sua terra, seu direito de ser tratado como humanos”.

Quando se está usando azeite de cozinha nos geradores por falta de combustível para salvar vidas, quando não tem água, pão para alimentar a si e seus filhos “é porque tem um governante sádico que quer infringir tanta dor e tanto sofrimento quanto possível a toda uma população” e não em combatentes contra quem dizem lutar.

E mais: afirma que esta não é uma guerra entre Hamas e Israel, não é uma guerra de defesa de Israel, mas um ataque total contra o povo palestino e seu direito a viver em sua própria terra. Para ele “este é um ataque fascista, um brutal castigo coletivo contra todo o povo da palestina” e que o mesmo se sucede na Cisjordânia ocupada, um verdadeiro apartheid e conclui dizendo ser muito importante às manifestações em defesa da Palestina no mundo, um movimento internacional de solidariedade, contra o genocídio e que se cesse o fogo imediatamente, que Gaza tenha o controle (do que resta) de seu território, do fluxo da entrada de ajuda, que se tenha luz, água, alimentação, médicos, enfermeiros etc., e medicamentos, pois se trata de uma urgência e necessidade pelo qual todos os humanistas e defensores da paz devem lutar, por um Estado laico e democrático, sem discriminação, apartheid, limpeza étnica, racismo, enfim, com igualdade de direitos e soberania política e só pode se dar com o fim da ocupação, que dura 75 anos, e o cumprimento de todas as Resoluções da ONU sobre a palestina, como o seu reconhecimento e o fim da ocupação ilegal (como estabelece Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU  de 22/11/1967, que é muito citada e não respeitada).

No artigo O que Netanyahu faz em Gaza é crime de guerra ou genocídio? Publicado no dia 14 de novembro de 2023 no UOL,  Milly Lacombe diz que “agora o fundamental é que fosse apenas dizer que não importa a semântica, o verbo, o conceito, o debate sobre as palavras. O fundamental seria estabelecer que o que fazem Netanyahu e seu exército na Palestina é indecente, imoral, perverso, grotesco e precisa ser interrompido de imediato”.

No dia 15 de novembro foi aprovada uma Resolução no Conselho de Segurança da ONU  proposta por Malta para o conflito entre Israel e o Hamas . A primeira desde 2016,  com 12 votos a favor, nenhum voto contra e três abstenções: Estados Unidos, Reino Unido e  Rússia.  A resolução pede a implementação de “pausas e corredores humanitários urgentes e prolongados em toda Faixa de Gaza por um número suficiente de dias”, para que a ajuda humanitária de emergência possa ser prestada à população civil , também à “libertação imediata e incondicional de todos os reféns”, a  normalização do fluxo de bens e serviços essenciais para Gaza, com prioridade para água, eletricidade, combustíveis, alimentos e suprimentos médicos. E  exige que as partes cumpram suas obrigações em matéria de direito internacional e do direito internacional humanitário, em especial em relação a civis e crianças. Israel já declarou que não vai cumprir e a questão é: a exemplo de muitas outras Resoluções, mais uma não será cumprida? E se não cumpre, que punições são possíveis? Da mesma forma,  a Corte Internacional de Justiça, com base no que se estabelece como crimes, tem condições de punir os violadores das leis internacionais?

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.