A ignorância e (algumas de) suas consequências
“Nada mais assustador do que a ignorância em ação” (Goethe)
Uma matéria publicada no dia 08 de janeiro de 2024 pelo grupo Mídia e Democracia da Fundação Getulio Vargas (RJ) afirma que as mentiras (que eles chamam de narrativas falsas) sobre fraude nas urnas eletrônicas que insuflou e culminou com os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 (com o propósito de abolir o Estado Democrático de Direito) ganhou fôlego nas redes sociais especialmente depois da derrota eleitoral da extrema direita na eleição presidencial de outubro de 2022.
O grupo de pesquisadores monitoraram 665 grupos do Telegram e no levantamento que fizeram contabilizou mais de 2,3 mil mensagens cinco dias antes dos ataques as sedes dos três poderes em Brasília, com intensa divulgação de conteúdos com menções à fraude eleitoral que serviram de estímulo para mobilizar os apoiadores do ex-presidente.
O que explica? Como alguém acredita em tantas mentiras? Creio que a ignorância é um dos fatores relevantes para se compreender. Ignorância no sentido definido sucintamente pelo historiador inglês Peter Burke no livro Ignorância; uma história global (Editora Vestígio, 2023) como a ausência ou privação de conhecimento (sociais, ambientais, políticos etc.,) que é muitas vezes invisível para o indivíduo ou grupo ignorante, mas que tem consequências graves (que inclui também a ignorância daqueles que "não querem saber"). O livro, com extensa bibliografia de apoio, é uma excelente contribuição para a compreensão da ignorância e suas consequências
No livro A psicologia da estupidez organizado por Jean-François Marmion (Editora Avis Rara, 2021), no capítulo Da burrice à tolice, Pascal Engel (Filósofo e diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais) afirma que a produção da tolice, que era endêmica na imprensa, tornou-se pandêmica nas mídias, na internet e nas redes sociais, que a difundiram de maneira acentuada, tornando-a uma força política. Dessa forma, diz ele “faz parte do que passamos a chamar de era da ‘pós-verdade’, a qual poderia muito bem ser apelidada de a era da tolice: a produção de um tipo de discurso e de pensamento que não se preocupa mais em saber se há verdade no que foi dito, mas leva em consideração o efeito produzido” (p.55).
No prefácio à edição do livro Ignorância – uma história global, Peter Burke se refere ao descaso em relação à pandemia de covid-19 no Brasil e nos Estados Unidos sob governos de extrema direita, e afirma que tanto Donald Trump como Jair Bolsonaro usaram (e abusaram) do que ele chamou de verborragia “que despreza o pudor de reconhecer a própria ignorância (...). Como seu seguidor, o presidente Jair Bolsonaro, Trump sofre de ignorância em sua forma aguda, a de nem mesmo saber que ele nada sabe”.
Tomemos como um dos exemplos e de graves consequências, quando deixa de ser uma posição pessoal (desconhecimento ou estupidez) de um governante, quando influencia parcelas consideráveis da população com sua ignorância: o caso das vacinas. O que explica que, como tantos estudos científicos disponíveis, livros, ensaios, artigos etc., sobre a importância e necessidade de vacinas e em especial em uma pandemia e que salvou milhões de vidas, não apenas durante mas também depois há quem duvide de sua eficácia e não apenas não se vacine como, sem qualquer fundamento, as critiquem, como ocorreu e ainda ocorre em relação às vacinas que combate à covid-19?
Uma matéria publicada na agência de checagem Lupa no dia 22 de janeiro de 2024 por Ítalo Rômany informa sobre um levantamento feito pela agência na plataforma Palver entre 17 de dezembro de 2023 e 16 de janeiro de 2024, no qual constatou que mensagens falsas como a de que a ivermectina evita os danos provocados pelas vacinas de RNA mensageiro (mRNA) foram compartilhadas em 170 grupos do WhatsApp, alcançando milhares de usuários.
Segundo a matéria “Os conteúdos enganosos disseminados nesses grupos seguem com a mesma narrativa desde o início da pandemia, a exemplo de mensagens que reforçam que milhões foram salvos pelos tratamentos não só pela hidroxicloroquina, mas também ivermectina, vitamina D, C, Zinco”. Para seus divulgadores “a ivermectina serve para a prevenção e para o tratamento do coronavírus, de forma surpreendente” e que a “eficácia não comprovada não é da ivermectina, e sim das vacinas".
O fato é que mesmo com mais de 750 mil mortes no país (uma das maiores taxas de letalidade do mundo) mensagens afirmando que remédios como ivermectina e cloroquina curam a Covid-19 continuam circulando em grupos bolsonaristas do WhatsApp, quase quatro anos após o início da pandemia — apesar dos muitos estudos científicos negarem qualquer eficácia desses medicamentos.
A matéria cita Roberto Canquerini - graduado em Farmácia, especialista em vacinas e em exames de análises clínicas , professor de pós-graduação em farmácia clínica na PUC/RS e integrante do Conselho Federal de Farmácia pelo Rio Grande do Sul - que diz "Medicamentos como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício para o tratamento da Covid-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença” (https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/01/22/fakes-sobre-cloroquina-e-ivermectina-ainda-alimentam-grupos-bolsonaristas-no-zap).
Conforme a bula da invermectrina, o medicamento é indicado para tratar de infecções causadas por vermes e parasitas, como piolho e a hidroxicloroquina são medicamentos que devem ser utilizados para tratamento de afecções reumáticas e derrmatológicas; Artrite reumatoide; Artrite reumatoide juvenil; Lúpus eritematoso sistêmico; Lúpus eritematoso discoide e condições dermatológicas provocadas ou agravadas pela luz solar.
O artigo cita um estudo científico publicado em janeiro de 2024 na Biomedicine & Pharmacotherapy sobre o uso de hidroxicloroquina que estima que o seu uso para tratar pacientes hospitalizados com Covid-19 pode estar relacionado a em torno de 17 mil mortes em seis países. A pesquisa é Deaths induced by compassionate use of hydroxychloroquine during thefirst COVID-19 wave: an estimate. Os países são Bélgica, Turquia, França, Canadá, Estados Unidos, Itália e Espanha.
Outra falsidade que tem sido divulgada é em relação ao chamado detox vacinal, a ponto do Ministério da Saúde fazer um alerta. Em nota divulgada no dia 16 de janeiro de 2024 diz “Se você recebeu alguma mensagem dizendo que tratamentos de detox vacinal ou reversão vacinal são eficazes para purificar o organismo de pessoas que tomaram vacinas contra a Covid-19, saiba que essas notícias são falsas. O detox vacinal é uma pseudociência sem respaldo científico, e adotar essa abordagem pode resultar em sérias consequências para a saúde individual e coletiva”.
E faz uma defesa das vacinas que “representam uma conquista significativa da ciência, desempenhando um papel importante na prevenção de doenças e na proteção da saúde pública. Ignorar ou buscar formas de anular os efeitos das vacinas pode expor as pessoas a riscos desnecessários. As vacinas são de extrema importância tanto para o indivíduo como para a saúde coletiva. Manter a vacinação em dia, mesmo na fase adulta, é um dos melhores métodos para evitar doenças e infecções” (https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-com-ciencia/noticias/2024/janeiro/ministerio-da-saude-esclarece-informacoes-falsas-sobre-detox-vacinal).
Um posicionamento (e comportamento) de um Ministério totalmente oposto em relação ao governo anterior no qual as vacinas foram atacadas desde o início da disseminação do novo coronavírus, no começo de 2020. O então presidente sempre falou e agiu em confronto com as medidas de proteção, como a política de isolamento social e usou palavras como histeria e fantasia e até gripizinha em relação à covid-19.
De acordo com o relatório final da CPI da Pandemia (com 1.289 páginas, a CPI foi instalada no dia 27 de abril de 2021 e apresentou o relatório final no dia 26 de outubro de 2021) a comissão “colheu elementos de prova que demonstraram sobejamente que o governo federal foi omisso e optou por agir de forma não técnica e desidiosa no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, expondo deliberadamente a população a risco concreto de infecção em massa. Comprovaram-se a existência de um gabinete paralelo, a intenção de imunizar a população por meio da contaminação natural, a priorização de um tratamento precoce sem amparo científico de eficácia, o desestímulo ao uso de medidas não farmacológicas”. E destaca que houve deliberado atraso na compra de vacinas, além de incentivar aglomerações, espalhando informações falsas sobre a Covid-19 e também estimulou a desobediência em relação às medidas de proteção, como o uso de máscaras.
Como disse Eugenio Bucci no artigo A pandemia da ignorância (O Estado de S. Paulo, 21 de maio de 2020) ao analisar o comportamento do governo durante a pandemia: “a ignorância é um mal que mata (...) em especial em um país no qual ficaram escancarados os nexos entre a estupidez e o fracasso no combate à pandemia da covid-19”. Para ele, o então presidente se comportou como uma espécie de avatar do fascismo digital, se referindo ao que chamou de a lógica irracional a que ele obedecia, “agindo como um autômato teleguiado pela dinâmica das redes sociais”.
Entre as mensagens falsas e perigosas que circularam em determinados grupos de grupos do WhatsApp citadas na matéria da Lupa é a de que a Sociedade Europeia de Cardiologia teria emitido uma nota afirmando que a cloroquina foi usada no controle de arritmia cardíaca.
Entretanto, como mostra o artigo, em dezembro de 2020, foi publicado na revista da Sociedade Europeia de Cardiologia um estudo que afirma que não se verificou alteração significativa do estado cardíaco nos pacientes tratados precocemente com a hidroxicloroquina e ainda diz que "é digno de nota que atenção especial deve ser dada à identificação de pacientes que sofrem de síndromes de arritmias congênitas, para as quais a hidroxicloroquina pode representar um importante gatilho arrítmico".
A narrativa de que medicamentos como ivermectina e cloroquina têm eficácia para a Covid-19, é fundamentado mais na ignorância do que na ciência e também foi e continua sendo usada para reforçar ataques às vacinas. Desconhecem o fato de que os imunizantes são testados em ensaios clínicos que envolveram dezenas de milhares de voluntários, cumprindo protocolos internacionais antes de receberem registro definitivo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para só depois disso serem aplicados na população.
No Brasil, com o objetivo de reunir evidências sobre a eficácia ou não desses medicamentos, uma pesquisa, relatada no artigo Hidroxicloroquina para pacientes com Covid-19 não hospitalizados: uma revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados afirma que “revisões sistemáticas publicadas não identificaram benefício no uso da hidroxicloroquina ou da cloroquina em pacientes com COVID-19 não hospitalizados (https://www.portal.cardiol.br/post/estudo-apura-efeito-da-hidroxicloroquina-e-cloroquina-em-pacientes-com-covid-19-n%C3%A3o-hospitalizados.
Enfim, mentiras e falsas alegações, que insuflou os atos do dia 8 de janeiro de 2023 foram antecedidas pelos ataques à ciência, a cultura, às vacinas e defesa de medicamentos sem qualquer eficácia para curar a covid, continuam a circular nas redes sociais, estimuladas pela ignorância. Como disse Epicuro de Samos (341 a.C.-271 a.C.) filósofo grego do período helenístico, a ignorância um terrível mal da humanidade e a estupidez é a mais mortífera arma ao alcance do ser humano, a epidemia mais devastadora.