Memória e Justiça: marcha na Argentina teve participação de potiguar
Natal, RN 9 de mai 2024

Memória e Justiça: marcha na Argentina teve participação de potiguar

31 de março de 2024
8min
Memória e Justiça: marcha na Argentina teve participação de potiguar
Ato do 24 de março na Argentina, feriado nacional por Memória Verdade e Justiça | REUTERS/Agustin Marcarian

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A Argentina encheu as ruas no último domingo (24) para homenagear as vítimas da última ditadura no país (1976-1983), e gritar “nunca mais”. Mas na Plaza de Mayo, tradicional palco de atos e manifestações da esquerda na capital Buenos Aires, não estiveram só nascidos no país. Havia um DNA potiguar entre as milhares de pessoas: a natalense Laura Seabra, estudante de Medicina na Universidad de Buenos Aires (UBA), que diz ter vivido “algo impressionante”.

“Havia participado da marcha no ano passado e já sabia o quão forte era o sentimento de unidade nacional e luta pela democracia. Mas esse ano foi histórico. Desde que cheguei no metrô e vi os trens chegando lotados e a quantidade de gente que tinha para entrar vi a loucura que ia ser a Plaza de Mayo”, relata. 

“Dentro dos trens a caminho da praça, onde é feito o ato e leitura em memória e homenagem às vítimas do terrorismo de Estado, já estavam cantando e gritando temas como ‘Milei, lixo, você é a ditadura’, ‘a pátria não se vende’ e ‘30.000 presos e desaparecidos presentes, agora e sempre’. Ao chegar na praça era visível o clima de indignação com o atual governo e com as declarações da vice-presidente”, conta.

A raiva contra o atual presidente do país, o ultradireitista Javier Milei, não acontece à toa. No domingo, em meio ao aniversário de 48 anos do golpe militar na Argentina, a Casa Rosada — sede do Executivo — divulgou um vídeo questionando o número de 30 mil presos e desaparecidos; Milei compartilhou o material. Sua vice, Victoria Villaruel, também encampa a tese revisionista. No mesmo dia, ela escreveu no X (antigo Twitter): 

“Os Direitos Humanos são para Todos. Memória também. Verdade, Justiça e Reparação para as vítimas do terrorismo. Os responsáveis ​​por estes crimes não podem ficar impunes”,  numa crítica aos guerrilheiros e ativistas que lutaram contra a ditadura, e completou com a #NãoForam30000. O número de 30 mil vítimas é o apontado pelas organizações de direitos humanos.

De costas, Laura Seabra exibe, na cabeça, lenço do "nunca mais" | Foto: cedida

Já o professor Eduardo Pellejero é nascido na Argentina mas dá aulas no Departamento de Filosofia da UFRN, em Natal. Ele diz que a memória é algo que está vivo, com corpo, rostos e vozes. No aniversário do golpe argentino, Pellejero afirma que a “memória ocupou as ruas, deu a cara, se fez ouvir”. 

“Disse, sem ambiguidade, nunca mais. Depois, nos cafés e nos bares, nas estações de metrô e nas paradas de ônibus, e também na intimidade dos lares, muitos contaram as suas histórias — histórias de dor e de resistência, de perda e de luta. Alguns terão assistido com incredulidade à peça televisiva que divulgou o atual governo, que promove uma rara forma da memória, feita de negação e de esquecimento”, aponta. 

Segundo o filósofo, o governo Milei busca confusão e polêmica e procura ocultar os efeitos provocados pelas políticas de confisco salarial e de desinvestimento social que implementou desde que tomou o poder. 

“Mas para quê? Se o programa do governo tiver sorte, crescerá a desigualdade e a pobreza, diminuirá a indústria nacional, se alienarão os bens públicos (a terra, a água, a energia, a comunicação, a saúde, a educação). No fim de contas, quem ganha se o governo consegue levar à frente o seu programa? Certamente, não a maioria dos seus eleitores, que, se mantêm o seu apoio, o fazem alentando uma forma de pensamento mágico: a ideia de que as coisas podem mudar sem um investimento coletivo, sem reunir sinergias, sem envolver-se num trabalho difícil — e provavelmente interminável — para dar forma ao “paisito”, como dizia Gelman. Mas não há porvir sem política, sem participação pública nas coisas que nos dizem respeito a todos e a todas”, reflete.

No 24 de março, manifestantes exibiram placas com nomes de mortos e desaparecidos na ditadura argentina | Foto: Perodismo de Izquierda

Desde o início de seu governo, Milei tem “esticado a corda” com as organizações populares do país. Chegou a apresentar a “lei ônibus”, um “superpacote” com centenas de mudanças econômicas, incluindo privatizações de estatais — o texto foi reprovado na Câmara —, e o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), incluindo uma reforma trabalhista e o fim da lei de abastecimento, que acaba com o direito do Estado de fixar preços máximos de produtos essenciais e de multar empresas que praticam preços acima do limite. Neste mês, o Senado rejeitou o DNU, mas para que a medida deixe totalmente de ter validade, ainda precisa passar pela Câmara. O governo de ultradireita também ativou um protocolo “antipiquetes”, para restringir manifestações que bloqueiem vias públicas. Na última terça (26), em discurso a empresários, Milei chegou a comemorar a demissão de 70 mil funcionários públicos na Argentina.

Ainda no Brasil, Laura viveu parte do governo Bolsonaro. No país vizinho, entretanto, ela considera que os ataques de Milei começaram muito mais violentos. 

“A tentativa de passar a Lei Omnibus, depois do anúncio do DNU, uma tentativa de reforma constitucional para la de autoritária, já no início do ano gerou uma resposta popular impressionante, que pressionou a CGT [Confederação Geral do Trabalho da República Argentina, principal central sindical do país] a finalmente chamar a uma greve geral no dia 24 de janeiro. Apesar da lei ter caído depois do fracasso da votação de suas centenas de artigos — devido à pressão da mobilização massiva no Congresso, que resistiu a repressões brutais por uma semana —, o governo Milei continua seguindo sua tentativa de projeto neoliberal. Nessas últimas semanas está tentando desfinanciar e acabar com a produção cultural nacional. Mas o clima nas ruas mostra que eles não terão facilidade alguma de conseguir instalar esse projeto antipopular de país”, considera.

Próximo ao 1º de abril no Brasil, em que se marca os 60 anos da ditadura civil-militar local, Pellejero é questionado se vê uma diferença na forma como os dois países enxergam o seu passado.

“Como todo país, o Brasil é uma multiplicidade de uma diversidade estonteante, e, como tal, não tem apenas um passado, pelo que a memória é necessariamente uma construção em andamento, uma tarefa plural e, como tal, um espaço de dissensos. Seja a história da ditadura ou da colônia, da escravidão ou do patriarcado, o horizonte que se abre para todos nós reserva problemas imponderáveis e questões que exigem a transformação das nossas subjetividades e, correlativamente, das nossas instituições, para serem colocadas”, diz. 

“Se na Argentina as mutações subjetivas que tiveram lugar com o final da ditadura, assim como as novas articulações intersubjetivas que ganharam corpo, forçaram uma tomada de posição pelas instituições (como os julgamentos, as reparações, etc.), não vejo razão para que tal coisa não venha a acontecer no Brasil. De fato, no Brasil há movimentos sociais que promoveram transformações institucionais que na Argentina parecem longe de ser instauradas (por exemplo, as cotas raciais). Mais importante me parece chamar a atenção sobre o caráter precário de qualquer conquista política: a promoção, ao nível de direito, das conquistas sociais não nos libera de continuar a lutar pela sua existência. A menor distração pode resultar em retrocessos inimagináveis”, aponta o docente.

De acordo com Laura Seabra, a estudante de Medicina, Brasil e Argentina têm formas diferentes de encarar o que foi a ditadura nos seus respectivos países.

“A diferença é gritante. Além da massiva marcha de 24 de maço — feriado nacional por Memória Verdade e Justiça —, se vê em toda cidade murais, monumentos, museus, homenagens às avós da Praça de Maio e às vítimas, placas em locais onde pessoas foram sequestradas espalhadas pelas ruas”, descreve. 

“Tudo isso se deve a uma cultura de luta popular muito diferente da brasileira, além de que a Argentina foi o único país a julgar e condenar os comandantes e torturadores responsáveis pela última ditadura do país. É um tema muito forte na história argentina, também muito refletido por organizações de direitos humanos e na produção cultural no país”, aponta.

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