A primeira vez no Maracanã
Natal, RN 30 de abr 2024

A primeira vez no Maracanã

13 de maio de 2018
A primeira vez no Maracanã

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Lá se vão quase 30 anos. Às vezes penso que sonhei muita coisa que vivi no futebol. E nem mesmo uma foto, única que seja, eu tenho para provar que joguei no Maracanã. Vou contar a história de minha primeira vez no estádio mais importante do mundo, mas sabendo que muita gente vai correr para os “alfarrábios” para saber se é verdade.

Nem mesmo os arquivos dos jornais mais antigos, imagens, pois o jogo foi transmitido. Me pergunto: como uma pessoa joga no Estádio Mário Filho, templo do futebol do mundo, ainda era na época, e não tem sequer uma foto de recordação? Por isso me parece sonho. Ainda vivo em minha memória.

A chegada ao estádio. O acesso, a visão dos torcedores, os mais apaixonados, aqueles que sempre chegam mais cedo, os ambulantes, os curiosos querendo saber como era esse time desconhecido, adversário do Botafogo.

A entrada nos vestiários. Um mundo à parte, tapetes verdes no espaço do aquecimento, tudo gigante, diferente do que normalmente estávamos acostumados. O coração velho batendo acelerado, o cuidado para não demonstrar o nervosismo que tomava, para que os companheiros não confundissem com medo. A sorte é que, do grupo, poucos, talvez dois ou três, no máximo, já haviam jogado no templo.

Bateu a hora. Como passou depressa. O fim do aquecimento. As palavras de ordem, as orações. Confesso: não escutei absolutamente nada do que foi dito. Nem mesmo a preleção repetida do treinador, o discurso exasperante de marcar, marcar e marcar.

O entrar em campo, os tapinhas nas costas, a força dos mais experientes entendendo, conhecendo aquele momento especial que nós, os “estreantes”, estávamos vivendo. Um frio congelante na barriga ao subir as escadas, as mesmas usadas por Mané Garrincha, Pelé, Dirceu Lopes, Tostão, Zico, Gerson...

Enfrentar o time de meu coração (na época muito mais que hoje), Botafogo, atletas consagrados, inclusive da seleção brasileira, como Josemar e Alemão, entre outros. Os olhos do Rio de Janeiro na gente, se bem que a imprensa não deu muita atenção à partida.

O olhar para o placar eletrônico, o jogo já rolando e eu, dividido, esperando a bola ao mesmo tempo que ansiava ver meu nome surgir em letras brilhantes. O pior é que eu era o número 11 do Alecrim, o último, então, vocês imaginam, levou quase meio minuto para ver esse sonho simples realizado. De novo a palavra sonho.

Ainda passa esse filme todinho na minha cabeça. A primeira participação minha na partida, poderia ter sido um desastre. Saraiva sai jogando pela direita, chama minha atenção. Lilico! – chama ele e levanta a bola na minha direção, estico a perna direita, dominaria com tranquilidade,  uma jogada comum, nossa saída de bola, mas a perna esquerda, de apoio, escorregou (tinha chovido no Rio e a grama estava muito molhada) e eu caio. A bola foge do meu controle e lá vai um ataque perigoso do Fogão. Antes,  tomo uma vaia de doer nos ouvidos. Por uns 30 segundos escutei o coro impiedoso da galera: “sai daí pau de arara, isso é fome, tá caindo de fome esse retirante do Nordeste, infeliz tá com tanta fome que nem se segura em pé”, entre outras coisas. Aqueles gritos, as vaias, a humilhação, provocaram um efeito contrário ao que aquele grupo discriminador de torcedores imaginava.

Um “fogo”, não tenho outra palavra para descrever, uma onde da indignação me subiu à cabeça e, acreditem, acho que joguei como nunca em minha vida, mesmo tendo que escutar os berros do treinador para que eu não descuidasse da marcação.

Logo em seguida a esses apupos, à humilhação que passei, a partida continuava, e, acreditem, não me encolhi, muito pelo contrário. Depois de um ataque barrado, o goleiro César Augusto tinha a pelota nas mãos, normal, como jogador de meio-campo, abri do lado esquerdo e pedi para sair jogando. Ele me lançou. Ouvi vários gritos de companheiros: “olha o ladrão! Olha o ladrão!” Fernando Macaé, lembro até hoje, centroavante, fazia sua estreia no Bota justamente naquele dia. Ele estava, isso é evidente, doidinho para mostrar serviço à torcida. Sim, por falar em torcida, mais de doze mil torcedores compareceram ao estádio naquele dia. Comparando a hoje, hein? Voltando ao lance: o 9 do Fogão estava na altura do círculo central e partiu com tudo na minha direção, parecia um touro brabo, e veio  gritando “é minha! É minha!” Queria intimidar mesmo...

Coitado: fingi com uma finta de corpo que devolvia para César, e com a parte lateral do pé puxei a bola saindo pelas minhas costas, um drible comum, mas que ele não esperava. Ninguém no Maraca, nem mesmo o meu goleiro César contavam com o atrevimento que tive depois de tantas vaias. O Macaé danou-se no chão, ficou de bunda verde e preta, calção manchado pelo drible que apliquei. A vaia dessa vez foi para ele. Não sei, mas acho que ouvi alguns aplausos para mim, provavelmente dos torcedores da FERA presentes.

A partida se desenrolou de forma surpreendente para todos, talvez até para nós mesmos, jogadores. O Alecrim jogou muito, de verdade, como um time grande, posso até dizer sem exagero, de igual para igual. Tomamos um gol quando estava com um homem a menos (Lúcio Sabiá saiu machucado), e nesse momento o Bota se aproveitou, pois o juizinho da Copa do Mundo – Romualdo Arpi Filho - danado de esperto mandou o jogo seguir e nesse desacerto aconteceu o gol deles. 1 a 0. Veio o segundo, 2 a 0, acho que alguns da imprensa até imaginaram que, a partir dali, partida decidida e talvez com goleada. Que nada! Continuamos de pé, lutando, buscando.

Tanto é que criamos chances sim, tivemos oportunidades de marcar, criamos para isso. Depois, causando um frisson de surpresa em todo estádio, o ótimo lateral direito Saraiva, pouco mais de 1.70m de altura, subiu bonito, mais alto que os grandalhões da defesa do Bota e marcou um golaço de cabeça. Acreditem, em lances seguintes, seguidos, assustamos o poderoso time carioca. Curió entrou e chutou cruzado, quase marca. Odilon em linda jogada também quase faz um golaço.

E eu? Brigando no meio-campo, roubando bolas, peitando Josemar, Alemão, jogando de cabeça erguida mostrando com raça que não tinha nada de “fome” e nem medo de jogar contra o Botafogo ou qualquer grande clube do futebol do Brasil.

Acreditem, naquele dia, ao sair em defesa do atacante Emanoel, estreante, muito jovem ainda, ele cometeu o erro de ficar cara a cara com o Alemão que, sem que o árbitro notasse, aplicou um tapa no rosto do garoto. Aquilo me adoeceu, e no empurra-empurra, aproveitei e  cheguei a dar um soco, isso mesmo, um soco no estômago do jogador da seleção brasileira, Alemão.

Romualdo Arpi Filho, que estava fazendo de tudo para o Bota ganhar, claro, não viu, mas pela confusão e pelo atrevimento de encarar um negão da defesa que me ameaçava, ele ainda me tascou um cartão amarelo. Como era, meu Deus, o nome do zagueiro que ficou me ameaçando...?  "Aí amarelo, passa fome, se você for lá na área vai tomar um cacete...", disse ele tentando me intimidar. Eu estava com os diabos no couros, nem liguei a mínima e peitei o zagueirão. “Vou lá sim seu perna-de-pau, você só tem tamanho e safadeza, não tenho medo de você...”

No fim, Botafogo 2 x 1 Alecrim. Uma partida inesquecível. No vestiário, no semblante de todos os jogadores, a certeza de dever cumprido. Já tinha chegado aos ouvidos de todos que o time foi muito elogiado pela imprensa e por João Saldanha, justamente. Ele até pediu desculpas por ter criticado o Alecrim durante a semana. "Alecrim que conheço é aquela planta que a gente faz um chazinho", disse o  Fera sobre o Alecrim durante a semana. João era um crítico contundente daquele modelo de campeonato. Uma posição equivocada, mas que não diminuía minha admiração por ele.

No outro dia, caminhando ao lado de Claudinho, massagista, no Aeroporto do Galeão - estava chegando a hora do embarque de volta para Natal - ao passar diante de uma loja de material esportivo, me surpreendi com um quase grito do rapaz que estava limpando os vidros. “Ei galego danado! Ei, você mesmo, queria acabar com meu Fogão ontem, era?”

Confesso que assustei. Ele disse isso e veio vindo em minha direção. Me pegou pelo braço e me arrastou para dentro da loja. “Olha dona fulana (não lembro nome) foi esse galeguinho aqui ó, ele queria acabar com o nosso Fogão ontem...”

Lá de dentro, veio vindo uma negrona linda, digna de ser “Mulata do Sargentelli’, chique, com um sorrisão de dentes perfeitos, lindona. Era a proprietária. Ela botafoguense como seu empregado, e que também tinha visto o jogo do dia anterior, sorriu e olhava para mim super admirada. “Mas, olha o danado, como é pequenino e magrinho, e lá dentro do campo tão valente...” Eu, abismado, embasbacado, sorria, os dois me elogiando, perguntando minha idade, dizendo que eu deveria ficar no Rio e jogar no Botafogo, coisas de torcedor. Foi novela para sair da loja. Ela ainda me deu umas lembrancinhas, tudo do time da Estrela Solitária, e me fui.

Já em Natal, acreditem, foi que recebi o prêmio maior. Meus amigos Ranilson Cristino e Roberto Luís da Costa Barbosa, o Bora-Porra, de quem já contei tantos causos, é que me contaram dos elogios que João Saldanha me fez durante a partida.

E eles me relataram direitinho o que foi dito: o narrador durante a partida elogiou por duas vezes a atuação do quarto-zagueiro De Leon, vejam só, cria do próprio Botafogo, carioca da gema. Realmente, meu zagueiro jogou muito. Certa altura, continua Ranilson e Bora Porra, João Saldanha interrompeu o narrador. Concordou com a grande atuação de De Leon, mas disse assim: “Você está certo, o zagueiro Gilberto De Leon joga muito bem, fico imaginando como é que os dirigentes deixaram escapar um menino de tanta qualidade, mas, nesse time do Alecrim, o grande destaque é esse galeguinho maguinho, perna fina, camisa 11, ele está em todo lugar do campo, sabe marcar e sabe jogar. É ele, para mim, o grande destaque do time de Natal”, teria dito.

Isso mesmo. Orgulho da minha carreira de jogador profissional ter sido elogiado, e muito, por ninguém menos que João “Sem Medo” Saldanha, um dos maiores nomes da crônica esportiva do Brasil em todos os tempos. Por aqui, à exceção de Rubens Lemos pai, que sempre me fez generosos elogios, o máximo que diziam de mim é que eu era "um bom jogador..." e sempre com ressalvas por conta do meu jeito polêmico de ser.

É bem capaz de ter muita gente duvidando, o danado de tudo isso é que não tenho como provar que estou falando a verdade. Pois é, joguei no Maracanã, ano de 1986, muito antes dele se tornar estádio “Padrão Fifa”. Se vocês cascavearem nas fichas dos jogos daquele ano vão ver meu nome no Alecrim que tinha César, Saraiva, Lúcio Sabiá,  depois Ronaldo, De Leon e Soares; Doca, Eu, Didi Duarte e Odilon; Curió e Baíca.

Disseram até que dirigentes do Botafogo queriam me contratar e também ao De Leon, quarto zagueiro, que hoje mora em Mossoró. Ele, certamente, vai lembrar dessa partida também. Mas, sobre esse interesse, nada nunca chegou para mim e nem para ele, creio. De qualquer forma, vale a lembrança, a saudade, mesmo que seja sem foto, sem filme, sem gravação de áudio, sem nada.

18/09/ 1986 - Botafogo-RJ 2 x 1 Alecrim-RN - Maracanã

Leia outros textos de Edmo Sinedino:

Na pelada com Romário

O Capiba da Metropolitana

Quem bebe, não joga 

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.