Tapuia é raiz e mulher: Como Francisca Bezerra virou a principal liderança feminina indígena do Rio Grande do Norte
Natal, RN 26 de abr 2024

Tapuia é raiz e mulher: Como Francisca Bezerra virou a principal liderança feminina indígena do Rio Grande do Norte

11 de abril de 2022
9min
Tapuia é raiz e mulher: Como Francisca Bezerra virou a principal liderança feminina indígena do Rio Grande do Norte

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Francisca Bezerra cresceu sem entender porquê seu pai, um contador de histórias de mão cheia, insistia em pedir para que ela não falasse a ninguém sobre a origem indígena da família. Foi assim também com os primeiros professores que Francisca conheceu na escola. Nas aulas, as informações sobre a cultura dos povos originários enchiam os olhos e a imaginação da estudante, mas a recomendação era a mesma de José Faustino: negar quem era e de onde veio.

- Meu pai sofreu muito por não poder contar a ninguém, pelo medo que sentia de ser perseguido, da violência. Eu o respeito porque foi uma forma dele nos proteger e de se proteger também. Mas eu não aceitava e fui buscando mais informações e encaixando com o que ele me falava. Pensava: “porquê nossa história tem que ficar apagada, enterrada ?” Então fui para a comunidade do Tapará convencer as pessoas, conversar com os mais velhos para buscar mais informações sobre nosso tronco familiar”.

Francisca Bezerra, 51 anos, indígena e pesquisadora.

Francisca começou a pesquisar suas raízes em 2005, quando tinha 34 anos. Ela nasceu na comunidade do Bêbado, no município de Macaíba, e viu na infância, de uma hora para outra, os vizinhos da família pegarem o que tinham e sumir da aldeia. De repente, ficaram apenas ela, os pais e sete irmãos até uma tragédia abater os Bezerra. Um certo dia, dois irmãos de Francisca se queixaram de uma estranha dor na barriga e de uma incessante diarreia que não sarava com chás e folhas. Assis e Francisco, de 7 e 10 anos de idade, morreram no mesmo dia – um à tarde e outro já de noite - sem assistência. Até hoje a família não sabe a doença que matou os meninos. Francisca tinha só 5 anos:

- Eu também sentia aquela dor e diarreia, mas ninguém sabe como eu escapei também. Francisco e Assis eram os irmãos com quem eu mais brincava, a gente saía junto para caçar, até hoje lembro deles e de certa forma essa minha luta é em homenagem a eles também”, diz.

Perseguição

Após a morte dos pequenos, a família também pegou os pertences e saiu a pé em direção a Várzea. Lá, moraram com uma das avós de Francisca até José Faustino construir uma casa de palha já na comunidade de Tapará, onde os Bezerra reencontraram os vizinhos que haviam se mudado do Bêbado após ameaças e perseguições de fazendeiros da região:

- Hoje temos espaço onde morar, mas foi a custa de muito sofrimento e luta. Sou da família Bezerra, mas não sou parente de Fátima Bezerra não (risos)”, brinca fazendo referência ao sobrenome da governadora do Estado, que também tem descendência indígena.

Líder indígena sofreu violência doméstica e hoje debate machismo com homens e mulheres na comunidade

Francisca Bezerra é a primeira liderança feminina indígena do Rio Grande do Norte / foto: Rafael Duarte

A comunidade Tapará pertence à tribo dos Tapuias-tarariús. Além deles, vieram a Brasília participar do 18º Acampamento Terra Livre, que segue até 14 de abril, em Brasília, representantes das comunidades de Sagi-Trabanda (Baía Formosa) e do Catu (Goianinha/Canguaretama). Participam do evento 43 representantes dos povos originários do Rio Grande do Norte.

A luta a que Francisca se refere é travada diariamente contra o avanço do projeto genocida do governo Bolsonaro contra os povos indígenas – pauta principal do Acampamento Terra Livre 2022, em Brasília, onde a agência Saiba Mais conversou com ela - e também contra o machismo resistente nas aldeias e tribos do Rio Grande do Norte e fora do Estado potiguar.

Aos 51 anos, Francisca Bezerra é a primeira mulher a liderar os indígenas da comunidade Tapará, no Rio Grande do Norte, e desde 2020 representa a micro-região junto à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Uma liderança feminina não é algo comum nos territórios indígenas e, também por isso, cada avanço na luta para incluir mais mulheres nos espaços e ações do movimento é celebrada:

- Para nós, mulheres, isso é muito importante porque fomos muito silenciadas, não tínhamos direito à voz, tirado pelos nossos próprios companheiros indígenas. Era o homem que falava e a mulher tinha que obedecer. A gente quebrou um pouco isso, mas ainda tem mulheres que sofrem”.

A própria Francisca foi vítima de violência física cometida por um ex-companheiro. Tomou a decisão de se separar e colocou na pauta da própria luta ajudar mulheres a se libertar também de companheiros opressores:

- Eu cheguei a sofrer já, com meu companheiro, por isso que eu o deixei. Essa vida não dá para mim, relacionamento tem que ser na base do companheirismo, da conversa, e não do “mandar”. A gente convive com as pessoas com quem se dá bem. Trouxe mais mulheres para perto de mim, criamos o Conselho Indígena na comunidade, e das 15 pessoas, 11 são mulheres e 4 homens”, conta.

Questionada se os homens respeitam as decisões tomadas pelas mulheres, Francisca ri e reconhece que ainda há muito o que avançar:

- Eles têm que aceitar, né ? (risos). Mas a gente sabe que na hora eles até escutam, mas não seguem. Os que estão vindo agora tem outra compreensão. É um avanço. O trabalho é maior com quem já tem essa cultura enraizada, com esse pessoal o trabalho é mais pesado. Temos rodas de conversa com homens, mulheres, com a juventude. Nem todas as mulheres da comunidade participam, algumas justificam que têm que fazer comida, cuidar dos bichos. Eu digo para mandar o homem cuidar enquanto elas participam das reuniões. Mas aos poucos vamos avançando. Da minha aldeia, para você ver, veio mais mulheres do que homens”, comemora.

Indígena teme fim de tribos caso PL da Mineração seja aprovada pelo Congresso Nacional

Inclusão de mulheres nas discussões sobre a tribo é uma das prioridades de Francisca Bezerra / Foto: Rafael Duarte

O Conselho Indígena de Tapará se reúne presencialmente uma vez por mês, mas caso haja necessidade é possível convocar outras reuniões. Se não houver urgência, a maioria das demandas são resolvidas pelo grupo no whats App criado na tribo e batizado de “Tapuia é raiz”.

Ainda sobre a liderança feminina que exerce na comunidade, Francisca conta que em setembro haverá nova eleição. Mas deixa escapar que parte das dificuldades na tribo se deve ao fato de ser mulher:

- Acho que tem relação, eu alego isso. Na minha comunidade eu passo e digo: “não é porque eu sou mulher que vocês tem que ter preconceito”. Alguns dizem: “Agora é tudo só para mulher”. Ora, então façam o contrário ! Parem de maltratar as mulheres, sejam nossos parceiros de verdade”, diz.

Indígenas debatem demandas urgentes em grupo de whatsapp / foto: Rafael Duarte

Há punições para agressores de mulheres na comunidade. O principal deles é o corte em benefícios conquistados pela tribo, como doação de cestas básicas que vem da Fundação Nacional do Índio, Funai:

- A gente começou a punir, quem não cumprisse as regras teria o benefício suspenso. Ou seja, o agressor fica sem a cesta básica. Mas nem sempre adianta porque algumas mulheres deixam de denunciar. A denúncia é outra coisa que a gente estimula, mas é difícil. A delegação de Macaíba é formada por homens e às vezes deixa à desejar também”, conta.

Além de pautas específicas, como o combate ao machismo, Tapará está conectada ao movimento nacional. Sobre o projeto de lei que libera a mineração em terras indígenas e que deve ir à votação na próxima quinta-feira (14), Francisca teme pelo fim da comunidade de Tapará caso a proposta seja aprovada:

- É ruim e muito perigosa. A gente já sofre perseguição dos usineiro e fazendeiros, que estão dentro do nosso território. Se o projeto passar vou ver a comunidade Tapará se acabar. Temo que vire um novo Bêbado. Hoje não temos mais terra para plantar, a não ser no fundo dos quintais das casas. Como vamos criar nossos filhos e netos? Vai chegar um tempo em que vão dizer que ali não tem mais nada pra fazer. Aliás, muitos indígenas já fizeram isso. O Marco Temporal e o PL 191 é prejuízo para nós. Tememos pela nossa própria vida”.

A não demarcação de terras indígenas é outro problema grave na região. E o preconceito contra os povos é recorrente. Longe de casa desde 2 de abril, quando ela e outros 42 indígenas do Rio Grande do Norte vieram para Brasília num ônibus financiado pela Apib, Francisca não esquece de casa:

- O descaso é grande, é como se dissessem: “índio é para se ferrar mesmo”. Ficam fazendo piadas como “tem que morar na mata”. Mas em que mata se eles estão destruindo tudo ? Estou só imaginando como estará Tapará quando eu voltar”, encerra.

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