O Brasil sob escombros e os desafios do governo Lula
Natal, RN 9 de mai 2024

O Brasil sob escombros e os desafios do governo Lula

22 de junho de 2023
15min
O Brasil sob escombros e os desafios do governo Lula

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O titulo do artigo é uma referência ao livro Brasil sob escombros: desafios do governo Lula para reconstruir o país, organizado por Juliana Paula Magalhães e Luiz Felipe Osório e publicado pela editora Boitempo (2023). Trata-se de uma coletânea, com 22 artigos, entre outros de Luis Felipe Miguel (professor e cientista político), Francisco Carlos Teixeira da Silva (historiador), Rafael Valim (advogado), Cesar Calejon (jornalista e escritor), Maria Ligia Quartim de Moraes (professora e socióloga), João Quartim de Moraes (professor e filósofo), Silvio Almeida (advogado, filósofo e Ministro dos Direitos Humanos), Breno Altman (jornalista), Armando Boito Jr (professor e cientista político), Luiz Gonzaga Beluzzo (economista), Alysson Mascaro (jurista, professor e filósofo do direito) e Walter Pomar (historiador).

Os temas são muito variados, como a política no governo Bolsonaro (Luis Felipe Miguel), Bolsonaro: três golpes de Estado e um genocídio (Francisco Carlos Teixeira da Silva), os desafios do feminismo pós-Bolsonaro e o “projeto deliberado de inviabilização e sujeição das mulheres” (Maria Lygia Quartim de Moraes), sobre a Operação Lava Jato e a perseguição a Lula e ao PT (“um teatro jurídico escandaloso” no dizer de João Quartim de Moraes), e a parceria entre juízes, promotores e órgãos da imprensa e também sobre a questão agrária, mineração, economia, um balanço das eleições (“Frente amplíssima Anderson Alves e Ricardo Musse, “como superar a catástrofe fascista” (Leonardo Attuch) etc.), a crise econômica (“caminhos e descaminhos do crescimento” (Luiz Gonzaga Beluzzo), relações internacionais (“os desafios das relações internacionais do governo Lula” (Walter Pomar), racismo (“Não há democracia com racismo” (Silvio Almeida), “LGBTQIA+ sob o governo Bolsonaro: desumanização e disputa no campo dos direitos (Regina Facchini e Gabriela Calazans), entre outros.

Dada e amplitude e complexidade, outros temas poderiam ser objeto de análises como a política sobre a liberação de armas e munições (expressa no conjunto de decretos e portarias), o vergonhoso retorno do Brasil ao mapa da fome, a exploração de pânico moral (a invenção do chamado kit gay foi apenas um dos muitos exemplos), o papel de segmentos evangélicos (e católicos também), aliados do fascismo, enfim, parte de uma análise mais substancial do processo de demolição institucional dos últimos quatro anos.

Como disse Ricardo Kotscho em artigo publicado no Portal Uol em 13 de junho de 2013 “uma república destroçada por anos de incúria, golpismo, esculacho e malversação de dinheiro público”.

Nesse sentido, cabe a pergunta: por onde recomeçar o processo de reconstrução do país? De um lado um conjunto de iniciativas, no sentido oposto do governo anterior, em relação aos direitos humanos, políticas públicas, educação, saúde, cultura, retorno de programas como Minha casa Minha Vida, Mais Médicos, Farmácia Popular etc. e de outro, a vanguarda do atraso no Congresso Nacional, tentando impedir os avanços e levando o governo, sem maioria no parlamento, a fazer concessões não apenas com liberação de verbas para emendas parlamentares, como também negociações de cargos no Executivo.

E também não se pode desconsiderar o papel da Grande Imprensa nas críticas ao governo e a Lula em particular. Lula que como diz Kotscho está “sempre em dívida com editorialistas e comentaristas, alguns órfãos da lavajatismo” (ele cita Merval Pereira, mas há muitos outros) e embora saliente que não faltam conselheiros, consultores e “professores” do presidente que querem lhe ensinar o que fazer (Artur Lira é apenas um exemplo) requer dele uma habilidade política extraordinária nesse processo de reconstrução do país, tanto no plano interno (os embates com a extrema direita e fascistas dentro e fora do Congresso Nacional) como em relação à retomada da política externa, que havia sido abandonado no governo anterior.

Um balanço que também deveria a incluir o relatório final dos 32 grupos técnicos que foram formados (equipes de transição, com a instalação do Gabinete de Transição instaurado no dia 8 de novembro de 2022 e cujo relatório foi publicado no dia 22 de dezembro de 2022). Grupos de especialistas de várias áreas, que com dados, análises e propostas (e de forma voluntária) fizeram um diagnóstico do governo anterior e elaboraram as diretrizes do novo governo (Educação, Saúde, Meio Ambiente, Turismo, Minas e Energia, Comunicação, Pesca, Cultura, Ciência e Tecnologia etc.).

A composição dos GTs, como diz o relatório final, teve como diretriz “a valorização da diversidade regional, de gênero e de raça, de maneira a estimular olhares diversos e plurais para um diagnóstico mais abrangente possível”.

Entre alguns dados do relatório constam que na área cultural houve uma redução de 85% do orçamento, com 66% menos servidores entre 2019-2022; na saúde, a constatação de uma gestão irresponsável da pandemia de Covid, que se expressou em mais de 700 mil mortes, um presidente que se posicionou contra as vacinas (e a ciência) com todas as suas consequências, entre elas a diminuição da cobertura vacinal); na educação, com os cortes sistemáticos de recursos (do congelamento de recursos da merenda escolar, a diminuição de verbas para as universidades, ciência, tecnologia, pesquisas, corte de bolsas, ampliação da evasão escolar etc.); na segurança, o conjunto de medida (portarias, decretos etc.) visando facilitar o acesso a armas de fogo (que se expressou no aumento de circulação de armas entre a população civil e provocou, entre outras consequências, o aumento do número de feminicídios); no meio ambiente, com o aumento das taxas de desmatamento na Amazônia e a falta de compromissos de acordos internacionais (Um exemplo foi o fim do Fundo Amazônia, criado em 2008 para financiar ações de redução de emissões provenientes da degradação florestal e do desmatamento (de 2009 a abril de 2019, quando o governo Bolsonaro paralisou o Fundo, havia sido aplicados mais de R$ 1 bilhão em 103 projetos de órgãos públicos e organizações não-governamentais).

Em relação a isso, o governo fez um “revogaço” de centenas de Conselhos Federais e extinguiu o Comitê Orientador (COFA) e o Comitê Técnico (CTFA) e só no dia 3 de novembro de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a reativação do Fundo Amazônia no prazo de 60 dias (o principal doador, a Noruega, anunciou depois da vitória de Lula em outubro de 2022 que voltará a ajudar o país).

Mas não foi apenas um diagnóstico que a equipe de transição fez do governo Bolsonaro em várias áreas e constatou retrocessos em todas, mas também um conjunto de propostas (sugestões e medidas) que o governo deveria fazer como a revogação e revisão de medidas em relação à flexibilização de compras de armas e munições, medidas contra o avanço do garimpo em terras indígenas, entre outras. (A íntegra do relatório final da equipe de transição está disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/retrato-do-desmonte-veja-a-integra-do-relatorio-da-transicao/).

Há de se destacar também o papel dos resistentes à escala fascista, de uma imprensa alternativa, de sites como o Diário do Centro do Mundo, Ópera Mundi (Breno Altman), site e TV 247, O Cafezinho, Portal do José, Meteoro Brasil, Plantão Brasil (Thiago dos Reis), Galãs Feios (Helder Maldonado e Marco Bezzi), blogs como de Bob Fernandes, Bemvindo Sequeira e muitos outros que tiveram um papel importantes de reflexão, análises e denúncias durante o governo Bolsonaro.

A resistência à escala fascista ocorreu também no Congresso Nacional (uma minoria, mas que existiram e continuam a existir), no Supremo Tribunal Federal, em especial o papel fundamental do ministro Alexandre de Moraes, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e também de parcelas da sociedade brasileira que deu a vitória a Lula na eleição de outubro de 2022.

Considerado o governo em seu conjunto, tem pertinência à pergunta do jornalista Juca Kfouri em artigo publicado no dia 2 de fevereiro de 2023 (portal Uol), no qual indaga “Como perdemos para essa gente em 2018?”. Para ele, “A cada nova noticia do mal engendrado golpe dos bolsonaristas mais ganha força a expressão de que perder para essa gente é algo que nos desmerece as todos” até porque “eles são incapazes de fazer uma coisa bem feita: de cuidar da pandemia e dar golpe de Estado”.

E “as novas notícias” vão desde “a minuta golpista guardada na casa do ex-ministro da justiça, a tentativa mal sucedida de gravar o ministro do STF, a continência ao pneu, a reunião de canastrões, cafajestes e pinóquios da mídia que nos levam a perguntar o tamanho da vergonha que temos de sentir por permitir que, um dia, o obscurantismo e a burrice tenham vencido e ainda ter conseguido, poucos meses atrás, 58 milhões de votos”.

Quanto à minuta golpista, as intenções antecedem. Ver nesse sentido o artigo A teia do golpe: a trama montada por políticos, militares e policiais para golpear a democracia no Brasil, publicado na revista Piauí n.201 (junho/2023) por Ana Clara Costa, entre outros aspectos, referências ao abuso de poder e” uma estratégia jamais vista no regime democrático, com a cooptação e aparelhamento das Forças Armadas, gastança bilionária (“perto dos 300 bilhões de reais”) a operação da PRF no dia da eleição, especialmente no Nordeste, onde Lula havia ganhado no primeiro turno (e que não evitou a vitória também no segundo turno), referências ao tenente coronel Mauro Cid “cujo nome aparece em todos os escândalos desenterrados do governo Bolsonaro”.

Em relação a isso, no dia 15 de junho de 2023, foi revelada a existência de mais uma minuta para dar suporte a um eventual golpe de Estado no celular do tenente coronel e ex-ajudante de ordens do presidente da República, que está preso e teve a quebra de sigilo telefônico determinada pelo ministro Alexandre de Moraes do STF. O documento previa não só a anulação das eleições como o afastamento de ministros e substituição por “ministros confiáveis”, como até mesmo a instauração de um Estado de Sítio (depois foi publicada uma matéria com mensagens que o jornal Folha de S. Paulo teve acesso que revelou também a participação de alguns militares (como o coronel Jean Laward) e a mulher de Mauro Cid e a filha do ex-comandante do Exército, Villas Boas na trama que o Ministro da Justiça, Flávio Dino, chamou de “transe satânico”, salientando o perigo que o país correu se essa trama golpista tivesse tido êxito, agora sob a égide um golpe de Estado.

Esses são apenas alguns. Há muitos outros. No dia 4 de julho de 2022 foi publicado um artigo Harrit Harazin no jornal O Globo, intitulado A cloaca nacional, uma espécie de síntese do governo até então (e que continuou até o final do ano) e inicia dizendo como seria bom se existisse “um GPS capaz de localizar o lixão humano que Bolsonaro catou pessoas de sua confiança, de apoio e de afeição moral” e onde “cada dia pipocavam novos ou velhos seres acanalhados” e cita Nelson Piquet (“o Piquet de sempre, vil e requentado, inabilitado a qualquer convívio em sociedade”) (depois foi revelado o papel que ele teve depois guardando em sua fazenda jóias presenteadas a Bolsonaro, como foi revelado por André Borges e Adriana Fernandes em matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo no dia 28/03/2023, na qual afirmam que os itens foram encaminhados à casa de Nelson Piquet no dia 20 de dezembro de 2022, faltando apenas 11 dias para o fim do mandato de Bolsonaro. E ainda teve o fato, em 29 de dezembro de 2022, de o presidente mandar um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) ao aeroporto de Guarulhos, para tentar resgatar a caixa de diamantes que era destinada a Michelle Bolsonaro “como seu próprio ministro Bento Albuquerque reafirmou ao Estadão”. E como diz a matéria “o entendimento foi que seriam bens do Estado brasileiro, enquanto as jóias foram tratadas como bens pessoais” (https://www.estadao.com.br/politica/bolsonaro-guardou-joias-e-outros-presentes-em-fazenda-de-nelson-piquet-em-brasilia/).

E Dorrit se refere a outro personagem bolsonarista, Daniel Silveira, na época deputado federal pelo PTB “golpista de estimação do planalto”, que foi agraciado com a Ordem do Mérito do Livro da Biblioteca Nacional (dirigida por um bolsonarista, foi talvez uma das mais vergonhosas homenagens da biblioteca Nacional, lembrando que ele foi um dos quebraram uma placa de homenagem a Marielle Franco, e que havia sido condenado pelo STF no dia 20 de abril de 2022 a 8 anos e 9 meses de prisão.

Em relação a essa condenação, no dia seguinte, algo inédito no país, o presidente da República, usando de suas prerrogativas, concedeu o perdão da pena, a concessão de um indulto a Daniel Silveira e só no dia 10 de maio de 2023, portanto mais de um ano depois, o STF concluiu o julgamento e derrubou a perdão por oito votos a dois (os dois contra foram de André Mendonça e Cássio Nunes Marques), considerando o indulto como desvio de finalidade e o decreto inconstitucional (antes, a PGR considerou o decreto como constitucional). Como ele já estava preso desde o dia 2 de fevereiro de 2023 por descumprir as medidas cautelares do STF (como o uso de tornozeleira eletrônica, redes sociais etc.) vai continuar preso, até porque, não cabem mais recursos.

Outra expressão do que Dorrit chamou de integrante do lixão, foi o então ministro da educação, o pastor evangélico Milton Ribeiro (a condição de ser bolsonarista e pastor talvez tenha sido o que o qualificou para o cargo e não uma reconhecida competência da área de educação) e se refere ao “baú de bíblias e falcatruas aguardando explicações”. Uma matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo denunciou a existência de uma espécie de “gabinete paralelo” no MEC, liderado por pastores. Em seguida, um áudio divulgado pela Folha de S.Paulo' confirmou a denúncia. Nele, Ribeiro afirmava que repassava verbas para municípios indicado por dois pastores, Gilmar Santos e Airilton Moura   a pedido do presidente Jair Bolsonaro. Segundo matérias publicadas em 28 de março de 202 no jornal O Globo, o ministro foi acusado de aparecer em fotos estampadas nas bíblias ao lado dos pastores.

Em função das denúncias a Procuradoria Geral da República (PGR) decidiu abrir um inquérito para investigar o ministro da Educação “após o chefe da pasta afirmar, em áudios divulgados pela imprensa, priorizar os amigos do “pastor Gilmar” no repasse de verbas aos municípios, a pedido do presidente Jair Bolsonaro”.

Outro citado no artigo é Pedro Guimarães, então presidente da Caixa Econômica, alvo naquela semana de denúncias de assédio sexual e moral, considerado um “predador sexual” que em função do depoimento de várias mulheres e a grande repercussão do caso, foi demitido (ele e do segundo no comando da Caixa, Celso Leonardo também acusado de assédio) poucos dias antes da publicação do artigo Harrit cita um episódio ocorrida em Teresina (PI) no qual ele solicitou um carro brindado e o usou para uma “conversa privada” com uma funcionária da Caixa e diz que “à distância, o motorista filmou o carro sacolejando"... E mesmo depois das denúncias, ele apareceu em um evento no Palácio do Planalto na apresentação do Plano Safra, com a esposa “de quase 20 anos” e duas filhas e afirmou ter “uma vida pautada na ética”. E Dorrit: “Quanta baixeza recorrer-se a família em vez de protegê-la" e conclui o artigo afirmando que esse GPS “certamente apontaria Bolsonaro como “epicentro predador da decência nacional”.

Mérito para o Portal Metrópole que investigou e publicou várias matérias (repórteres Fabio Leite e Jeniffer Goularte. A reportagem inclui um vídeo disponível no You Tube, dividido em três partes contando detalhes do caso).

Em abril de 2023, a Caixa Econômica foi condenada a pagar R$ 10 milhões “a título de dano moral coletivo, por tolerar práticas de assédio sexual e moral dentro da instituição (matéria de Jéssica Sant'Ana, g1 – Brasília/DF no dia 27/04/2023). A matéria informa ainda que o valor seja revertido a instituições sem fins lucrativos.

Estes são apenas alguns casos. Há muitos outros que poderiam ou deveriam integrar o elenco, antes, durante e depois do governo Bolsonaro. Estes exemplos, associados ao relatório final da equipe de transição e o breve – e ainda provisório - balanço apresentado no livro Brasil sob escombros, evidenciam o que foi e o que poderia ser a continuidade do governo Bolsonaro: a pavimentação do caminho do país em direção ao coração das trevas.

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