Javier Milei: a piada obscena da ideologia
Natal, RN 9 de mai 2024

Javier Milei: a piada obscena da ideologia

15 de novembro de 2023
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Javier Milei: a piada obscena da ideologia
Javier Milei é o candidato da extrema-direita na eleição da Argentina / Foto: Reprodução

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No próximo domingo os irmãos argentinos vão às urnas decidir o futuro do país. Uma frase desse tipo pode até ser mais um constrangedor lugar comum das manchetes jornalísticas em tempo de eleições, mas, no caso específico, é o retrato mais exato da situação política da Argentina. Não seria nenhum exagero midiático ou mesmo uma simples banalidade dessas que alimentam programas de análise eleitoral, afirmar que essa eleição na Argentina será uma das mais importantes das últimas décadas.  

Isso porque, disputando com Sérgio Massa, atual ministro da economia e representante do peronismo (uma força política tão abrangente que ninguém sabe bem explicar o que ela é) temos uma figura que pode ser descrita, sem nenhum medo de se cometer algum exagero retórico, como “bizarra”.

Javier Milei quando olhado com uma lupa analítica mais detalhada, transforma gente como Bolsonaro ou Trump em estadistas sofisticados.

Se figuras do tipo Trump e Bolsonaro parecem interpretar personagens, através de um cálculo político que denota alguma esperteza e que atua no campo da famosa “dialética do malandro e do otário” (só existe o malandro porque existe o otário); o caso de Milei guarda fortes indícios de ser, do ponto de vista clínico, bem mais comprometedor.

O candidato, que se apresenta como um “anarco capitalista”, é um misantropo que sofreu abusos e violências na infância e não apenas desenvolveu um comportamento peculiar e esquizotímico, típico dos Incels de rede social, mas que também ouve vozes. 

Ele tem conexões esotéricas com um “bruxo” que o acompanha e que o ajuda a estabelecer contato com o espírito dos mortos. E não apenas com defuntos oriundos de nossa própria espécie. Envolto em um panteísmo holístico e anti-especista, Milei se comunica com Conan; que não é o personagem de Robert E. Howard, mas seu cachorro, morto em 2017. A relação de Milei com Conan era tão íntima que o candidato resolveu apelar para uma empresa de engenharia genética norte americana para clonar seu companheiro canino. Ele produziu sete clones de Conan que conviviam com ele em seu apartamento em Buenos Aires.

Além do mais, ele parece afirmar que o Conan canino era a reencarnação de um leão, que lutou contra ele em uma arena romana (ele teria sido um gladiador na vida passada). Na ocasião, Deus (sim, Ele mesmo) teria interferido na contenda e dito que os dois seriam parceiros em diversas outras vidas. Isso parece ter dado ao economista, nascido em 1970, no bairro de Palermo, em Buenos Aires, um poder de “telepatia animal”. Ele diz se comunicar com outros bichos colocados geralmente em posições menos destacadas na cadeia evolutiva (ao menos, do ponto de vista de nós, humanos).

Até aí tudo bem, mas o mais grave não é o fato de Milei usar seus canais mediúnicos para receber conselhos políticos de seu cachorro, que provavelmente pode até ser mais sábio do que muitos adeptos da extrema-direita global. O problema é que ele também se comunica com o espírito da filósofa Ayn Rand e de Murray Rothbard, o criador do chamado “anarco capitalismo”, a ideologia que alimenta as utopias políticas de sete em cada oito Incels (celibatários involuntários) de 13 anos, que viajam no mundo da deep web

Grave, gravíssimo. 

O fato é que, desde que a extrema-direita, na última década, assumiu a função de crítica ao modelo padrão da democracia liberal (que no século XX foi da esquerda comunista), que uma fórmula política parece se repetir. Os conteúdos doutrinários podem variar mas a fôrma ideológica que gesta os expoentes desses movimentos continua a mesma. Podemos ter um racismo bíblico neonazi de base sionista (como o professado por Itamar Ben Gvir em Israel), um delírio evangélico messiânico de tipo fascista como o de Bolsonaro, um narcisismo ufanista e auto referente do trumpismo norte-americano ou mesmo uma alucinação ancap do tipo mileísta. Não importa. A forma desses fenômenos obedece mais ou menos o mesmo percurso de gestação.  

Como observa o antropólogo norte americano Benjamin R. Teitelbaum em seu livro “Guerra Pela Eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista”; a forma de eclosão desses personagens se repete sempre em algumas etapas básicas.

Num primeiro momento eles introduzem seus discursos nos canais de comunicação tradicionais já existentes (programas de TV ou de rádio de grande alcance popular). Passam a ser figurinhas frequentes, com sua estética bizarra e sua aparente dissonância cognitiva, em programas de auditório, quadros humorísticos, púlpitos de templos religiosos ou entrevistas em programas de variedades e criam, entre o riso e o escândalo, uma performance “engraçada”, que alavanca a audiência e abre um canal para a divulgação de suas ideias. 

Paralelo a isso começam lentamente a montar, com a ajuda das redes sociais, e com um know-how desenvolvida por figuras como Steve Bannon, Alexander Dugin ou o finado Olavo de Carvalho uma rede que tem ares de “sociedade paralela”: coesa, radical e capilarizada.

Alimentada por memes, cortes de vídeos feitos para viralizar nas redes sociais, áudios de whats app criados pra assombrar senhoras idosas e tiozões nos grupos de família essa rede se consolida e solidifica, disseminando, a partir desses canais, todo um conjunto bem pensado e calculado de fake news que vão pautar o debate público, puxando as forças políticas para um campo dominado pela retorica disruptiva e paranoica que eles disseminam. 

Aos poucos, esse  mundo à parte passa a incorporar a piada em forma de “solução política” que surge subitamente, como se fosse um fenômeno natural e espontâneo e não um produto preparado para ser viralizado. Com o passar do tempo, essa rede transforma a retórica do líder em dogma religioso, que vai alimentar um exercito coeso e fanatizado, que dará sustentação e apoio político para a disputa e a manutenção do poder. 

Se você viveu os últimos 10 anos no Brasil e se interessa por acompanhar o cenário político com mais atenção, sabe bem como essa merda toda funciona, não é, amigo velho? 

No fim das contas, aquilo que se chama hoje de alt right (direita alternativa) é na verdade um guarda chuva ideológico que abarca várias tendências de crítica ao estado hegemônico da democracia liberal. Quer seja através de uma crítica ao tal “globalismo”, uma reação aos avanços no campo do costumes ou mesmo, como no caso de Milei, uma rejeição do modelo econômico do capitalismo de Estado.

Em todas essas situações a mensagem é sempre a de que uma “revolução iminente” está se processando. Uma revolução antipolítica e antissistema que pode transformar radicalmente um cenário social em crise. 

O que sujeitos como Milei, Trump, Bolsonaro, Ben Gvir e tantos outros que aparecem por ai apontam é para uma espécie de “metapolítica”, que passa por fora das instâncias, ditas tradicionais, do jogo democrático e que busca não apenas o controle das instituições mas, fundamentalmente, um domínio do imaginário. 

Um domínio que, por sua vez, procura contornar um dado muito evidente que esses agentes precisam camuflar: o fato de que a ruptura da hierarquia que propõe e a crítica do sistema que eles dizem representar é apenas uma “simulação de revolução”. 

Busca-se romper a ordem cultural sem desmantelar os privilégios de classe, desestruturar as instituições não para ampliar a participação popular, mas para fortalecer o privilégio das minorias dominantes; cria-se a figura do “inimigo interno” a ser combatido para desviar o foco das contradições centrais da própria ordem liberal que eles dizem combater. 

Nesse sentido, o “anarco capitalista” portenho que ouve vozes de cachorros mortos, o empresário espertalhão e tarado que defende a supremacia branca, o advogado kahanista que defende limpeza étnica e o genocídio contra palestinos ou o milico neurastêmico que se comporta como um falso messias de feira, se assemelham em sua função ideológica. São todos recipientes vazios, sacos semióticos que servem para guardar a piada obscena da ideologia em tempo de crise. 

Algo que, vamos combinar, não é novo. Afinal, Hitler e Mussolini já cumpriam bem esse mesmo papel antes de ser modinha.

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