Sidarta Ribeiro: da timidez à porta-voz em defesa da maconha no Brasil
Natal, RN 27 de abr 2024

Sidarta Ribeiro: da timidez à porta-voz em defesa da maconha no Brasil

13 de novembro de 2023
0min
Sidarta Ribeiro: da timidez à porta-voz em defesa da maconha no Brasil
Neurocientista Sidarta Ribeiro lançou recentemente "Flores do Bem" / Foto: Luiza Mugnol Ugarte

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

A aproximação do neurocientista Sidarta Ribeiro com a maconha foi lenta. Na casa da família dele, o tema foi tratado com pânico após experiências negativas que marcaram a vida de seu irmão.

“Havia um pânico moral muito grande e, como filho e amigo de minha mãe, eu não estava em posição de tomar uma atitude diferente naquele momento”, relata o professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que ganhou fama internacional após publicar “O Oráculo da Noite” (2019).

Foi apenas em seu primeiro congresso internacional de neurociências, em 1996, que Ribeiro viu pela primeira vez um pequeno grupo de cientistas abordarem os possíveis usos terapêuticos da cannabis. No ano seguinte, o grupo aumentou. Dois anos depois, estava maior ainda. E, a cada ano, o número de pesquisadores aumentava.

“Eu percebi que havia uma revolução em curso”, recorda.

A relação entre Sidarta, maconha e a esfera pública, então, começou a se transformar. Em 2007, publicou seu primeiro livro sobre o tema, co-autorado por Renato Malcher-Lopes, “Maconha, Cérebro e Saúde”, em que reunia alguns dos principais achados científicos sobre a planta que já estavam sendo discutidos nos Estados Unidos e Europa, mas que ainda não eram debatidos no Brasil.

“Na época, eu não fiz lançamento nem nada. Lançamos o livro meio escondido, e fomos deixando ele fazer seu efeito”, relata. 

A timidez não faz mais parte da relação de Sidarta Ribeiro com a maconha. Há anos, o neurocientista protagoniza debates públicos sobre a importância da legalização da planta, da importância de conduzir pesquisas científicas sobre seus possíveis usos terapêuticos e com ampla crítica à guerra às drogas. “Que, na verdade, é uma guerra contra pessoas”, afirma.

Em seu livro mais recente, “As flores do bem” (Editora Fósforo), ele chuta de vez a porta do armário, trazendo reflexões autobiográficas enquanto usuário terapêutico, experiências de grupos e associações de familiares de pessoas com condições como Epilepsia e  Síndrome de Dravet e um apanhado histórico sobre a mudança da percepção pública a respeito da maconha e a guerra às drogas. 

A Agência Saiba Mais conversou com o neurocientista fundador do Instituto do Cérebro da UFRN sobre seu mais recente lançamento, que chegou às livrarias na última terça-feira, 7 de novembro. Para Ribeiro, é urgente debater a legalização da maconha no Brasil, não apenas pelos potenciais usos terapêuticos da planta, mas por outra questão: o encarceramento em massa.

“O problema central é existirem 800 mil pessoas presas no Brasil, quase todas jovens, quase todas negras, quase todas faveladas, muitas delas presas por causa do comércio de uma planta”, diz.

Confira abaixo a entrevista: 

SAIBA MAIS: Seu livro chama atenção logo na introdução ao trazer sua história pessoal, a relação do Sidarta jovem com a maconha e o impacto que a planta teve dentro de sua família. Como essa experiência pessoal influenciou o Sidarta pesquisador e quando você passou a se interessar em pesquisar sobre essa questão? Falamos muito em neutralidade, tanto na ciência como no jornalismo, mas essa experiência pessoal impactou nessa escolha?

Sidarta Ribeiro: Essa é uma pergunta super interessante. Como eu conto no livro, minha aproximação com a maconha foi muito lenta porque havia um pânico moral muito grande em minha própria família, e eu não estava em posição, enquanto filho mais velho e amigo da minha mãe, de ter outra atitude naquele determinado momento. Ao longo do tempo, isso foi sendo ressignificado. O que para mim foi um divisor de águas do ponto de vista científico, não pessoal, foi perceber que o tema da cannabis e do sistema endocanabinoide não é um tema acessório. Ele foi se tornando um tema central. 

Meu primeiro congresso de neurociências foi em 1996, em Washington (EUA), e lá tinha um pequeno grupo de pessoas preocupadas com o sistema endocanabinóide, parecia quase um detalhe. No ano seguinte, tinha o dobro, e aquilo foi crescendo, crescendo... qualquer pessoa que estivesse desarmada perceberia que havia ali uma revolução em curso. E eu percebi, assim como vários contemporâneos meus. Eu não pensava que fosse pesquisar o sistema endocanabinoide, mas eu percebi que aquilo teria impacto em qualquer pesquisa que eu fizesse. E, em paralelo a isso, eu também estava me tornando um usuário de cannabis, uma experiência pessoal que me jogou de vez nesse contexto. Isso me permitiu construir uma alteridade interna, de você construir uma outra perspectiva. 

Eu não me aproximei desse assunto diretamente até 2007, quando eu publiquei o "Maconha, Cérebro e Saúde" com o Renato [Malcher-Lopes]. E quando eu lancei o livro, eu me senti muito em um lugar estranho. Eu não fiz lançamento nem nada, lancei o livro meio que escondido, e fui deixando ele fazer seu efeito. Mas ele fez efeito. Muita gente leu e, naquela época, trouxe informação que estava disponível na Europa e nos Estados Unidos, mas que não estava disponível no Brasil, e aí as coisas foram acontecendo, como o "Cortina de fumaça", do Rodrigo Mac Niven, um documentário importante. Ele me chamou, e eu também fiquei na dúvida: será que participo? Mas me empolguei, falei tudo que pensava e aí então fui saindo um pouco do armário nesse sentido, porque o debate estava precisando, assim como está até hoje, de mais qualificação. Muitas vezes eu me deparei com pessoas com posições extremamente firmes com base em nada, com base em mentiras ou mitos, e eu senti que era uma responsabilidade mesmo.

E quando eu lancei o livro, eu me senti muito em um lugar estranho. Eu não fiz lançamento nem nada, lancei o livro meio que escondido, e fui deixando ele fazer seu efeito.

Esse momento agora, de 2023, de lançar o "Flores do bem", é também um momento em que estou me expondo mais, compartilhando com o público as vulnerabilidades: que sou paciente, trato ansiedade. É sair do lugar do "eu sei, sou neutro e isento" e dizer que, na verdade, não existe essa neutralidade, porque todos estão implicados. 

Já faz algum tempo você tem feito um esforço consciente de publicar cada vez mais para o grande público, em uma linguagem mais simples e acessível. Por que tomar essa decisão?

Escrever para o público não especializado, o público amplo, é um aprendizado, não é uma coisa simples. A minha escola foi, principalmente, uma revista que já não existe mais, que é a "Mente Cérebro". Eu fui convidado a escrever uma coluna mensal e fiz isso por 10 anos e foi muito legal porque era um texto mensal, mas que me consumia o mês inteiro. Era super difícil, aquilo saía com uma linguagem de artigo, com uma linguagem hermética... aos poucos, por causa da interação com o público, eu vi que aquilo não funcionava, que tinha de ser de outro jeito, e eu fui mudando. 

O Oráculo [da Noite] foi uma tentativa também de fazer uma coisa para o público mais amplo, mas que é um livro muito grande e que tem muito texto, principalmente no meio, então muita gente falava: "ah, esse livro é ótimo, mas eu não consegui ler a parte do meio, a parte mais biológica", e isso me incomodou, porque eu pensei "cara, eu não quero que meu livro seja abandonado no meio do caminho".

Escrever para o público não especializado, o público amplo, é um aprendizado, não é uma coisa simples.

E aí, quando eu comecei o Sonho [Manifesto], eu falei assim: "ah, eu queria que esse livro fosse curtido pela avó da minha companheira, Terezinha". Acho que ainda não consegui completamente também, mas ele é mais acessível, de bolso. E aí eu acho que o Flores do Bem é o que mais chega perto desse objetivo, mesmo entrando em alguns detalhes de ciência, como móleculas e tal, que para muitas pessoas é insuportável. Eu sei que é, mas tentei fazer com que aquilo fosse o mais palatável e o mais divertido possível, porque se as pessoas forem ler algo relacionado à ciência e acharem aquilo chato, nada acontece, né?

E como tem sido a recepção desse caminho dentro do meio científico, entre seus pares?

O Brasil tem um ambiente científico muito progressista, que é pautado pela SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], da qual tenho muito orgulho de ser parte, e acho que existe esse fomento, inclusive dentro do CNPQ [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] de reconhecimento da divulgação científica como sendo parte essencial do fazer científico. O que recebo é, em geral, encorajamento e apoio. Às vezes, é claro, há críticas de colegas que falam que eu simplifiquei demais uma questão, e é aí que reside o perigo. O perigo é que nas tentativas de chegar em todo mundo, você perca de alguma maneira a essência da mensagem. Isso é um problema com o qual é preciso ter muito cuidado, tem que escolher bem as palavras, duvidar das palavras, para não chegar ao final desse processo e falar: "legal, eu falei com todo mundo, mas perdi a mensagem"

Vamos entrar um pouco mais nessa parte da biologia, que o senhor disse que para muitos é “insuportável”, mas que precisa ser discutida quando falamos de usos terapêuticos de qualquer substância. Uma dúvida comum e recorrente quando se trata do uso medicinal da maconha é: como uma única planta pode ser utilizada de forma terapêutica para condições tão distintas, que vão de ansiedade e depressão à epilepsia, por exemplo?

É, eu acho que causa certa perplexidade nas pessoas, sobretudo em quem é contra a maconha, que ela tenha tantas indicações terapêuticas, e as pessoas ficam incrédulas, achando que é uma falácia, papo de maconheiro que é fã da maconha. O primeiro passo é entender que a maconha é uma planta, mas é também um coquetel de moléculas. Tem muitas moléculas diferentes que, inclusive, fazem coisas opostas. O THC e o CBD, que são as mais abundantes nas flores de maconha, são moléculas que, embora tenham uma estrutura química quase idêntica, têm efeitos fisiológicos quase opostos. Só com isso a gente já vê que ela serve para coisas diferentes, porque se ela tiver mais THC ou mais CBD ela vai ter efeitos bem diferentes. Por exemplo, uma pessoa que estiver em surto psicótico não deve de forma alguma ingerir THC, mas pode muito bem se tratar com CBD. E tem 500 substâncias de interesse, não tem duas. 

Outro ponto é que as doenças, apesar de serem diferentes, podem ter uma base comum. Por exemplo, os canabinoides têm uma capacidade de dessincronizar a atividade neuronal, então em vez de os neurônis dispararem todos juntinhos, eles disparam com um pouquinho de flexibilidade, e isso é muito bom por exemplo no caso da epilepsia, porque ela impede aquela super descarga elétrica que leva a uma crise epiléptica mas, como você não impede a atividade dos neurônios, ela continua a funcionar, ela não fica torporosa, que é o que acontece com muitos antiepilépticos convencionais, em que a convulsão é derrotada às custas de reprimir a atividade neuronal. 

Então o que eu diria é o seguinte: a maconha tem muitas moléculas, essas moléculas têm vários efeitos diferentes e esses vários efeitos geram indicações para diversas doenças. Ela serve para tudo? Não. Ela serve para todo mundo? Não. A maconha é muito boa para uma medicina personalizada, considerando um determinado momento da vida, o estado de uma determinada doença... e isso pode mudar, inclusive, ao longo do dia. Você pode ter uma posologia em que toma THC de manhã e CBD de noite. É preciso botar os pés no chão para entender que sim, a maconha é boa para muitas coisas mas, por outro lado, não fazer afirmações taxativas. "Ah, então maconha é boa para todos os cânceres". Não, não é verdade. Então temos que ficar de olhos abertos, pés no chão, com bastante ceticismo, mas sem perder a curiosidade. 

(...) a maconha tem muitas moléculas, essas moléculas têm vários efeitos diferentes e esses vários efeitos geram indicações para diversas doenças. Ela serve para tudo? Não. Ela serve para todo mundo? Não. A maconha é muito boa para uma medicina personalizada, considerando um determinado momento da vida, o estado de uma determinada doença... e isso pode mudar, inclusive, ao longo do dia.

Hoje já está diferente mas, 10 anos atrás, ao fazer debates com profissionais da saúde, sobretudo médicos, as únicas perguntas eram sobre o perigo de receitar, e não sobre a possível utilidade dele. E eu dizia: "caramba, se eu estivesse aqui com um remédio, escrito com uma sigla qualquer, que foi patenteado ontem por uma grande farmacêutica com essas características, vocês iam se interessar. Então por que não se interessar por essa planta?"

Para finalizar, é impossível falar de maconha no Brasil sem falar sobre a criminalização, que ainda é uma realidade apesar do movimento de “descriminalização silenciosa”, como alguns chamam, que tem partido principalmente a partir do Judiciário graças à pressão de associações de familiares e pessoas que já se beneficiam do uso medicinal da planta. Quais caminhos você enxerga como possíveis para ampliar e avançar neste debate?

Acho que o que está muito claro é que esse uso terapêutico, que é concreto e desejável, ele tem acesso por vários viéses: de classe, de raça, culturais… tem muita gente que não tem acesso porque não sabe nada a respeito e também tem gente que sabe a respeito, mas não tem condições de contratar um advogado, entrar com o habeas corpus,  ter uma consulta médica etc. O uso terapêutico da maconha já existe no Brasil há um tempão, mas é sobretudo para pessoas brancas e de classe média. Então ela está legalizada, mas só para uma parte da população. 

O Judiciário está fazendo seu trabalho e o STJ já reconheceu e garantiu vários direitos de habeas corpus que haviam sido derrubados em segunda instância, mas o problema é que estamos falando de algumas centenas de casos entre milhões de pessoas, então não é uma solução. A solução de fato é mudar a lei, legalizar e regulamentar. Agora, se a gente legalizar e regulmanentar o uso terapêutico da cannabis no Brasil, mesmo que seja uma legislação muito avançada, que permita que não apenas empresas e associações, mas mesmo que as pessoas possam fazer o cultivo doméstico, ainda assim a gente não vai ter tocado no problema central.

Na minha opinião, o problema central é existirem 800 mil pessoas no Brasil, quase todas jovens, negras, faveladas, em sua maioria, por causa do comércio de uma planta. O maior problema é a desigualdade de tudo isso. Por que as pessoas de classe média, branca, podem fazer uso não apenas desta, mas de qualquer substância que queiram comprar e as pessoas periféricas do país continuam tendo a polícia subindo a favela e dando tiro em morador em nome da guerra às drogas? Isso, para mim, é o que deveria nos mobilizar, porque estamos jogando fora as vidas dessas pessoas e isso é o futuro do país. O nosso problema profundo é que, em nossa sociedade, muitas drogas são celebradas e glorificadas, e isso gera enormes problemas sociais, e isso precisa acabar. 

O maior problema é a desigualdade de tudo isso. Por que as pessoas de classe média, branca, podem fazer uso não apenas desta, mas de qualquer substância que queiram comprar e as pessoas periféricas do país continuam tendo a polícia subindo a favela e dando tiro em morador em nome da guerra às drogas? Isso, para mim, é o que deveria nos mobilizar

A maconha, em particular, é muito útil, mas mesmo que não fosse: nada justifica a PM matar Agatha Félix numa kombi escolar do lado da mãe, e a gente precisa parar essa guerra imediatamente, porque ela não é uma guerra contra as drogas, é uma guerra contra pessoas. 

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.