Outra carta a Linda Baptista
Natal, RN 8 de mai 2024

Outra carta a Linda Baptista

1 de janeiro de 2024
4min
Outra carta a Linda Baptista
Ilustração: Monik Flores / Pikbay

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Sóror,

Escrevo-te esta singela missiva de Ano Novo para dar-te as minhas notícias e, ao mesmo tempo, saber das tuas. Desejo que esta te encontre bem junto aos teus, com muita saúde e algum dinheiro para desfrutá-la. Molho a pena em gim e melancolia, como bem gostavas, para contar o que vai pela aldeia. Não são grandes coisas, que de miudezas é feita a melhor miséria. Além do mais, tu o sabes, não me sinto à vontade com palavras escritas; prefiro cantá-las. Escrever, querida Linda, é para mulheres ainda por fazer e ser, engendrando-se em novas fêmeas. Elas têm lugares de fala. Nós tínhamos o que o tempo decretou desprezível: boleros, tangos, sambas-canções, guarânias. Falavam por nós – e eram música.

As notícias são velhas como o ano que se finda nesta catraia colonial em busca de abismo para despenhar-se. A Intendência cortou metade da renúncia fiscal destinada à cultura na taba-de-Poty-mais-artista. À socapa, o presidente propôs, e o conselho dos xeleléus, à sorrelfa, chancelou sem debate a transferência do dinheiro para outra rubrica orçamentária, de controle direto do gestor. Honraram, esses excelentes, a estação de bovinos, muares e magos de presépio que toma as esquinas e os becos aldeões nesta dezembrada sem quartel.

A excelência-mor está em todas e todos, tal a diana do pastoril, regendo o frenesi de suas inseguranças eleitorais, hesitante entre a moça do cordão azul e o moço do encarnado. Na dúvida, aproveita a estrutura da festa para exibi-los diante de tutti quanti, como um protagonista que rivalizasse em onipresença com o boyzinho indefeso na manjedoura e o velhinho assediado por peter pans no shopping. Faltou talvez um iluminado para soprar a ideia áurea, cabal: ômi, vista-se logo de papai noel. A roupa não precisa de ser vermelha; pode ser verde-amarela, em homenagem ao passado que não passa. Combina, não achas?

Enquanto isso, na Redinha Velha, querida Linda, um magote de tapuias espera as vingas virarem cajus para saquear os tabuleiros potiguaras. Mas, não me animo com emboscadas assim, para fabular nelas revanches ideológicas ou devires progressistas, pela substituição definitiva ou pelo revezamento temporário dos bandos. Aprendi com a história, mestra que não tergiversa, o rigor da espera: dias piores sempre virão. A Intendência que o diga.

Eu digo que li, astrodia, em notícia mal redigida, palavra que me arrepiou: Chernobyl. Imediatamente, molhei minha madeleine naquele leite de mãe. Sim, sóror Linda, o bar onde colhias tuas melhores aflições, tuas piores alegrias, para as crônicas que o tempo amarelou e encadernou, como faz a tudo que é de papel. Aquele, sim, era teu, literalmente, lugar de fala, transubstanciado nas crônicas que atiçavam o deboche e outros cachorros contra as nulidades conspícuas de Natalópolis colonial.

A palavra estava à deriva num desses textos que arremedadores chamam de jornalismo. Contava do lançamento de um livro de gastronomia escrito pelo velho Max, um dos seus mui queridos naquelas noites de barfly, repletas de tipos talhados para a tua verve anarquista. Como a poetisa que, mal te via, disparava a saudação contumaz em qualquer mês do ano: Chernobyl: terno abril. E tu, plena de sororidade, aparava o trocadilho com uma cascata de traduções de Paulo Mendes Campos, Thiago de Melo e Ivan Junqueira para The Waste Land: Abril é o mais cruel dos meses. Germina / Lilases da terra morta, mistura / Memória e desejo, aviva / Agônicas raízes com a chuva da primavera.

A memória de uma palavra duplamente extinta (a cidade e o bar) conduziu-me à resolução de Ano Novo: adotar palavras desaparecidas ou em risco de, tal como se fez com o leão-dourado e outros micos redivivos. Pronunciá-las. Chegar mesmo a direcionar conversas para encaixá-las nalgumas frases. Fazer mais: adotá-las e cuidá-las como se fossem cão, gato ou ave de estima. Mais ainda: dar-lhes vida usando-as para nomear as mascotes. Um cão buliçoso pode ser o Trêfego. Um pássaro de alto voo, o Nefelibata. Uma cobra manhosa, a Madorna.

Para dar bom exemplo, adotei a palavra que abre esta singela missiva. Ela me lembra de ti e de outros fantasmas dos natais passados. Para comprovar a seriedade do meu engajamento lexicográfico, adotarei também uma gata, tão maliciosa quanto teus textos salpicados de fojos, açaplãs e quebra-canelas. E vou chamá-la, como se fora o verso inicial de um bolero cantado por ti, de Sóror Saudade.

Me queiras bem.

Dircinha Baptista

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