Se o passado ensina o futuro, é preciso reinterpretar a Lei de Anistia
Natal, RN 8 de mai 2024

Se o passado ensina o futuro, é preciso reinterpretar a Lei de Anistia

10 de janeiro de 2024
5min
Se o passado ensina o futuro, é preciso reinterpretar a Lei de Anistia
Alexandre de Moraes (Foto: Jefferson Rudy / Agência Senado)

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O passado ensina o futuro. A afirmativa, apesar de eu ter total concordância, não é minha. Ela esteve no discurso feito pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), durante o evento “Democracia Inabalada”, realizado no Congresso Nacional, no último dia 8 de janeiro, para marcar um ano da tentativa de um novo golpe no Brasil.

Em uma fala quase irretocável, o ministro só não levou em conta as últimas decisões do Supremo a respeito da Lei de Anistia. E por que deveria ter lembrado?  Porque a não responsabilização penal de agentes de Estado que serviram à ditadura civil-militar nos trouxe ao 8 de janeiro de 2023.

A discussão jurídica em torno da Lei de Anistia não é simples, mas é uma necessidade ao Brasil que se quer democrático. Há um entendimento entre juristas de que as violações a direitos humanos cometidas por agentes do regime podem ser consideradas crimes comuns e não políticos, sendo possível punir aqueles que as praticaram.

Essa é a posição, por exemplo, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que solicitou que a Suprema Corte mudasse sua interpretação sobre a legislação sob o argumento de que a Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, não alcança aqueles que praticaram crimes como a tortura. Contudo, em abril de 2010, por 7 votos a 2, os ministros do STF decidiram arquivar a ação da OAB.

Decisão que contribui para o estabelecimento no Brasil, pós experiência traumática do período de ditadura civil-militar, de um esquecimento, ou melhor dizendo, uma proibição de recordar por decreto. Dessa forma, os atos de anistia têm resultado no desaparecimento dos atores sociais diretamente envolvidos e numa memória que já não se ordena pelo testemunho.

Em nome de uma paz civil, além dos vazios narrativos nos discursos oficiais, os poderes públicos se servem de diversos outros meios para reivindicar o esquecimento, utilizando-se de instrumentos legislativos ou regulamentários para esse fim. Ainda que desta proibição de recordar resulte o reconhecimento de que algo ocorreu, as supostas ameaças de que o passado possa interferir no processo de coesão nacional do presente são instrumentos argumentativos para que crimes cometidos pelo Estado não sejam recordados e, por isso mesmo, repetidos.

Com o sacramento pelo STF da Lei de Anistia, que limitou a possibilidade de investigar, julgar, condenar e reparar os danos causados às vítimas de violações de direitos humanos, durante a ditadura civil-militar brasileira, a noção do esquecimento como instrumento de ação pública vai sendo vinculada à política de reconciliação nacional. Um erro.

Por isso, é equivocado definir o 8 de janeiro de 2023 como sendo apenas ataques, invasão e depredação dos prédios e do patrimônio público, sem considerar o que ele representa no contexto da política de esquecimento, que diz respeito à atuação de autoridades públicas legítimas em negar trechos da história coletiva, em benefício de outras lembranças que tornaram a realidade mais apaziguadora ou mais aceitável e atua como um empecilho à instauração de regimes democráticos em países com passado autoritário ou violento.

A impossibilidade de garantir um processo de recuperação da verdade e de realização da justiça transicional implica na continuidade do passado no momento presente. E o dever de rememorar marca-se muito mais no agora do que no que passou. A recuperação da democracia exige um trabalho de confrontar o passado. Emerge daí a convicção de que proteção e respeito à dignidade humana não podem ser postergados e constituem um anseio civilizatório. Memória, verdade e reparações conjugam-se em termos de justiça.

É preciso questionar os discursos que, embora aleguem defender a democracia, procuram alcançá-la por meio de "pacificação" ou "conciliação" com setores golpistas, especialmente no que se refere às forças armadas. Essa noção de que a democracia pode ser assegurada através de acordos e entendimentos com aqueles que previamente tentaram destruí-la remete a episódios históricos, como o período de redemocratização pós-ditadura civil-militar. A falta de questionamento sobre o papel das forças armadas no golpe e na ditadura, aliada à ausência de uma efetiva Justiça de Transição, proporcionou um ambiente propício para que os militares se sentissem à vontade para novamente desafiar a democracia e aponta para a possibilidade de vermos se repetir.

A reinterpretação da Lei de Anistia pelo STF é uma necessidade.  A importância do tratamento adequado do passado no processo histórico é sua capacidade de determinar o porvir de uma nação. Não se trata de revanchismo, tratar o passado, com a punição dos agentes de Estado violadores de Direitos Humanos, é tratar do futuro do país.

Para a democracia vencer, como Moraes avaliou ter acontecido no pós 8 de janeiro de 2023, ela precisa, em primeiro lugar, ser efetivada, o que pressupõe, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), quatro tarefas fundamentais: o direito à memória; a reparação às vítimas e às suas famílias; a punição e a reforma das Instituições.

Não anistiar os de hoje precisa significar não anistiar os de ontem!

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