Lula tem razão ? A fala do presidente e a questão do genocídio
Natal, RN 14 de mai 2024

Lula tem razão ? A fala do presidente e a questão do genocídio

9 de março de 2024
14min
Lula tem razão ? A fala do presidente e a questão do genocídio
Mais de 30 mil crianças estão sem pai nem mãe na região. Seus parentes morreram nas mãos do exército de Israel / Redes sociais/ONU

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Por Caio Gabriel*

Aos desavisados, adianto: esse não é um texto antissemita. Se for “torcedor” político, pare a leitura por aqui!

A pergunta que intitula esse breve papo, refere-se a um dos assuntos mais comentados nas últimas semanas, seja por meio do jornalismo comercial, ou nos acalorados embates do mundo virtual das redes sociais, sobre as falas do Presidente Luís Inácio Lula da Silva em duas ocasiões: uma durante a reunião da Cúpula da União Africana, e a outra, recentemente (23/2), no Rio de Janeiro, durante o lançamento de um programa de governo. Na África, de maneira indignada, o presidente condenou os descomedidos ataques dos exércitos israelense contra a população civil palestina da Faixa de Gaza, e comparou a brutalidade das ações ao Holocausto, ambientado na esteira da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e promovido pela Alemanha nazista de Hitler:

"O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus.” Já no Rio, Lula comentou: O que está acontecendo em Israel é um genocídio. São milhares de crianças mortas, milhares desaparecidas. E não estão morrendo soldados, estão morrendo mulheres e crianças dentro do hospital. Se isso não é genocídio, eu não sei o que é genocídio.

A fala do presidente Lula arrebanhou de prontidão toda a ira do Estado Maior e Ministerial israelense, porém, a vista do restante da comunidade internacional, surgiram apenas algumas tímidas falas de discordância. Por incrível que pareça, o mal estar fabricado foi construído, e continua a ser exortado, no ambiente da informação e da política domésticas, quando passaram a surfar na mesma onda da “indignação” sionista do ministro Benjamin Natanyahu e de conhecidas entidades judaicas ultraconservadoras, a tradicional narrativa alarmista dos jornais tradicionais, criando uma sensação austera de ambiente de “crise” no campo da diplomacia internacional. Nessa mesma “prancha”, também pegaram carona as bancadas da extrema direita brasileira do legislativo federal, que por sinal, muitos de seus membros ganharam notoriedade por situações de apologia, negacionismo ou relativização ao nazismo nos últimos anos, e claro, os grupos políticos que se envergonham da relação extraconjugal que tem com as forças reacionárias do país, que preferiram em nome do “Estado Democrático de Direito”, exigir uma “Retratação Pública” do chefe do executivo (fala do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco).

Lula não refreou o discurso, e em seu pronunciamento entrou em uma seara um tanto complexa. Isso é um fato! O holocausto, considerado até então, um dos mais horrendos crimes contra a humanidade no século XX, que resultou no extermínio de 65% da população judaica na Europa, e 30% no mundo, ainda gera embates em torno da posse e legitimidade da memória: quem tem propriedade para falar sobre? O tema é passível de análise crítica? As dores e revoltas em torno do crime, pertence unicamente a todo o povo judeu, ou apenas a uma parcela dele? Comparar o holocausto aos outros crimes em massa, é um ato de antissemitismo? Perguntas centrais a respeito da memória e suas apropriações, não fazem da análise, uma batuta revisionista, essa sim, mal intencionada e criminosa.

Antes de ver o assunto apenas por uma lente eufórica de “fanfic”, é importante compreendermos que a memória do holocausto se constitui como uma importante e complexa base de formação e consolidação do Estado de Israel, partindo primeiro do fato de que o evento foi uma das molas propulsoras para a fundação do país em 14 de maio de 1948 em território majoritariamente palestino: tratava-se ali, por intermédio da  recém fundada (1945) Organização das Nações Unidade (ONU) dos interesses políticos norte-americanos, de uma política de reparação internacional a comunidade judaica espalhada pelo mundo, diante da barbárie nazista.

A própria constituição da Nação Israelense é baseada em fatos em contextos delicados: fomentada em meio a um território de predominância árabe, abertamente hostil da presença judaica na região, Israel logo expandiu seu território de maneira agressiva contra seus vizinhos, em especial a Palestina, e assim vieram: a Primeira Guerra Árabe Israelense (1948-1949), Guerra dos Seis Dias (1967) e a Guerra do Yom Kippur (1973), todas elas resultando progressivamente no alargamento espacial do Estado de Israel. Consequentemente, acompanhado a essa expansão, veio o início de um histórico conjunto de violações de Direitos Humanos, como a expulsão de mais de quase 800 mil palestinos de suas casas, a destruição de centenas de vilas, e o empreendimento de dezenas de massacres contra civis palestinos, entre eles a carnificina de Deir Yaseen em 1948, quando centenas de homens, mulheres e crianças foram violados e mutilados antes de serem executados por milícias sionistas. Nagib Mohammed Abdalla Nassar (professor emérito da Universidade de Brasília), afirma que o episódio de Yaseen, junto a tantos outros que estão documentos, foram motivos suficientes para fazerem com que o físico Albert Einstein desistisse da possibilidade de se candidatar a presidência o futuro Estado de Israel.

Nesse ambiente de conflitos territoriais e étnicos, a memória do Holocausto se tornou um importante suporte teórico defensivo, e justificativo, para os imbróglios políticos e militares na região, ou seja, a cama sobre qual deitava a expansão do Estado-Nação de Israel, era “acolchoada” com o ideário da “autodefesa”, da “sobrevivência judaica”, e o mais importante: a não repetição de um “Shoah” (“calamidade” em hebraico, como é denominado o holocausto pelos judeus da Europa e de Israel). Assim como elementos culturais, religiosos, políticos e econômicos, o Holocausto exerceu uma importante influencia no processo de formação da identidade do povo Judeu, e respectivamente consolidação do Estado.

Hannha Arendt, filósofa alemã de origem judaica, uma das principais mentes sobre a questão e uma das primeiras teóricas a entender o totalitarismo e as engrenagens do regime nazista (escreveu célebres obras, como Origens do Totalitarismo, A Condição Humana e Eichmann em Jerusalém) foi perspicaz prematuramente, quando ainda em 1945, anteviu os riscos da formação de um enclave judeu em meio ao mundo árabe, onde o resultado seria, de acordo com a sua análise, nada mais do que a formação de um Estado-Nação altamente militarizado, e uma vez instalado os conflitos ali, pouco seria viável uma solução pacífica. De carona, Arendet já denunciava o comportamento agressivo de alas radicais da política israelense, quando refletia a cerca dos arriscados frutos a serem colhidos pela ausência completa de oposição aos projetos sionistas para a região, ou seja, havia um latente autoritarismo em curso em meio a construção do Estado Judeu.  Se viva fosse hoje, Hannah Arendt soltaria ao mundo aquele típico carão debochado: “eu avisei, não avisei?”

As bases agressivas que ajudam a entender a formação do Estado de Israel tem uma forte ligação com a memória do Holocausto: além de ser um dos elementos que consolidam a formação da identidade nacional israelense, o Holocausto se tornou, com o passar do tempo, uma narrativa perversamente desvirtuada por grupos sionistas radicais, evidentemente as custas do sofrimento das vítimas diretas e indiretas dos criminosos nazistas, inclusive, memória esta sequestrada pelos grupos de extrema direita do país.

É nesse contexto dramático que entra a questão do Genocídio, e a fala do Presidente Lula. Direto ao ponto: genocídio é genocídio em quaisquer partes do mundo, seja lá na Turquia (Genocídio Armênio, 1915), na China (Genocídio de Nanquin, 1937), na Ucrânia (Holodomor, 1931 a 1933), na Alemanha e Europa Oriental (Holocausto, 1933 a 1945), no Camboja (Genocídio Cambojano, 1975 a 1979), em Ruanda (Genocídio Tútsi, 1994), na Bósnia-Herzegovina (Genocídio de Srebrenica, 1995) e claro, na Faixa de Gaza (Palestina, 2024).

Faço essa afirmativa a partir da observação de dois pontos. Primeiro: Genocídio (Génos em grego– Família, Raça, Parentes, Povo, Nação/ Caedere em latim– Corte, Morte, Matança) é um conceito etimológico que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, justamente para definir a prática de assassinatos em massa contra grupos predeterminados, e que ganhou espaço na legislação internacional a partir da definição dada ainda na década de 1940, pelo jurista polonês de origem judaica, Raphael Lemkin, para delimitar conceitualmente o massacre nazista. Porém, a ideia de Genocídio só foi utilizado de maneira jurídica, no decorrer dos Julgamentos de Nuremberg (1945-1946), que visava punir nazistas e não nazistas envolvidos com o Holocausto. Na mesma seara contextual, o conceito ganhou resguardo no Direito Internacional a partir do seu agregamento a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948, documento que se tornou a vanguarda para o entendimento e criminalização dos assassinatos em massa. De maneira muito didática de modo a não deixar lacunas para dúvidas ou interpretações dúbias, o art,2º da norma define que Genocídio são atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

Além de uma categorização formal da lei, o Genocídio tem também um importante viés: o ritual simbólico. Os Crimes de Genocídio, seguem a uma plataforma quase que uniforme quanto ao seu processo de elaboração e execução. Primeiro, antes da materialização dos massacres, há um longo empreendimento para a pavimentação justificativa, onde as vitimas ganham espaço em meio a narrativa do Estado algoz de que elas representam um determinado perigo: econômico, político, ideológico, religioso ou racial, e aí entra em cena a “guerra das narrativas”, com a popularização de curtos e repetidos ditames a serem seguidos pela população e pelos poderes instituídos, como o combate a “impureza racial”, “necessidade de Democracia”, “combate ao terrorismo ou corrupção”  ou manutenção da “segurança nacional”, tudo isso exposto de maneira isolada, ou em conjunto.

Instaurado a sensação de insegurança, vem o segundo ponto: o projeto de desumanização do “inimigo” a ser aniquilado. A inferiorização do inimigo responde o questionamento sobre a real necessidade dos massacres, e esse roteiro é bem alinhado em quaisquer contextos históricos. Por diversas vezes, Benjamin Netanyahu proferiu falas públicas nessa intenção, a ponto mesmo de manipular a memória do Holocausto ao relativizar o papel dos nazistas, e imbuir a “culpa” a comunidade árabe pelos horrores do extermínio: “Hitler não queria exterminar os judeus naquela época. Ele queria expulsá-los. Haj Amin al-Hussein foi até Hitler e disse: ‘se você expusá-los, eles virão para cá. É absurdo ignorar o papel desempenhado pelo Mufti Haj Amin al-Hussein, que era um criminoso de guerra e encorajou Hitler a exterminar o Judaísmo Na Europa”. Oras, se há a adulteração da memória do Holocausto, transferindo a responsabilidade do Nazismo para lideranças muçulmanas do período, por essa linha, logos não há freios morais para tudo o que vier acontecer de atroz contra a comunidade islâmica.

Em outros pronunciamentos, não tão menos cruéis, o ministro da defesa israelense, Yoav Gallant,  afirmou que a luta israelense na faixa de Gaza era contra “animais, e estamos agindo de acordo”, ou mais recentemente, a Ministra da Igualdade de Israel, May Golan, em sua fala ao Parlamento do país, de modo despudorado afirmou estar “orgulhosa das ruínas em Gaza”, chegando a comparar as solitárias vozes discordantes do recinto a “porcos”. Veja: em meio ao processo de desumanização do outro, o ódio é institucionalizado, e o efeito se torna claro quando as forças israelenses se sentiram absolvidas de todas as formas de amarras morais. Em Gaza, soldados registram suas “peripécias” assassinas em redes sociais: torturando, matando e pilhando residências e comércios, tudo com um largo sorriso satisfatório.

Largada a construção da desumanização, vem a terceira etapa da edificação do genocídio: a uniformidade ideológica da sociedade. O “Estado Combatente contra o mal” não admite vozes destoantes, críticas ou apelativa, sejam elas internas, ou aquelas oriundas da comunidade global. Logo, os bodes expiatórios são servidos de bandeja sob a alcunha de “traidores”, e assim lembremos que são corriqueiros os títulos de “comunista”, “terrorista”, e a bola da vez: “antissemita”. Qualquer argumento em contrário, vem a ferocidade das palavras e dos atos: aos holofotes do mundo, o ministro das relações exteriores de Israel, Elin Cohen, vociferou em pleno conselho de segurança da ONU contra o Secretário-Geral da entidade, António Guterres, quando questionado sobre a perda da dosagem da reação israelense: “Em que mundo o senhor vive? Como se pode colocar um acordo de cessar-fogo quando estão dispostos a matar e destruir a nossa existência?” Não obstante o ataque colérico, o ministro israelense cobrou a renuncia do secretário geral. É ou não é uma clássica deslegitimação dos críticos? Aliás, genocida detesta os devidos créditos de...genocida.

Misturada a “receita” que antecede o genocídio, só falta apenas o fator desencadeador, e na região do atual conflito, veio com os ataques do Hamas contra a população civil israelense da fronteira com a Palestina. Foi dado o sinal verde para o genocídio palestino!

Em Gaza, não há atuações pontuais. As bombas destroem quarteirões inteiros, exterminando famílias e gerações de palestinos de uma única vez. Além das explosões, há cercos e matanças dentro de hospitais, execuções em campos de refugiados (que em tese, são protegidos pela norma internacional), e ataques e restrições impiedosas a comboios de alimentos e água. A carnificina se sobrepuja especialmente sobre as crianças, onde pelas estimativas da ONU, cerca dos 30.00 mil palestinos mortos e quase 69.000 mil feridos, metade são crianças. O toque pitoresco a essa mistura de sanha assassina, vem com os dados apresentados pelo CPJ (Comitê para Proteger os Jornalistas): da totalidade de jornalistas mortos em 2023 pelo mundo, em exercício do ofício, 75% foram mortos nas ofensivas em Gaza. Não basta a consumação do genocídio, há o controle da informação, por meio também da morte, daqueles que tentam denunciar.

Soldados israelenses queimam caminhão com comida em Gaza, 2023. Fonte: CNN Brasil

Esse estratagema justificativo torna o Genocídio atemporal, inclusive para os crimes em massa cometidos antes do nascimento formal do termo e sua tipificação na lei. Porém, vale ressaltar que as sistemáticas adotadas para aniquilar, mudam de acordo com o tempo, espaço e contexto, fato este que torna o Holocausto único pelo processo de industrialização da morte, mas que não o torna isento de comparações no que tange a natureza simbólica e intencionalidades a outros genocídios.

Sobre Gaza, me recordo de uma tira que circula em meio das redes sociais ultimamente: tem aparência de genocídio, odor de genocídio, comentários de genocídio, mas não é genocídio?

Portanto: a comparação de Lula foi dura? Sim. Foi dolorosa? Muito. Foi errônea? Jamais.

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Caio Gabriel é historiador, professor, bacharel em Direito e mestre em Políticas Públicas e Estudos Urbanos

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Referências:

Netanyahu já se envolveu em polêmica por declarações sobre holocausto

Não há crimes de extermínios mais graves e menos grave, seja pelas motivações ou pelo saldo de vítima.

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