Puritanismo atual tem viés político, é perigoso e deve ser combatido
Natal, RN 9 de mai 2024

Puritanismo atual tem viés político, é perigoso e deve ser combatido

19 de março de 2024
7min
Puritanismo atual tem viés político, é perigoso e deve ser combatido

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Uma reflexão postada em forma de desabafo pelo cineasta Kleber Mendonça Filho (de "Aquarius", "Bacurau" e "Retratos fantasmas") me fez refletir com maior acuidade sobre um fenômeno que eu já vinha percebendo. Em suas redes Kleber alertou para o fato de que em plataformas de cinema como Letterbox, filmes de conteúdo e temática envolvendo erotismo e sexualidade em algum nível estavam sendo classificados como de "sexo explícito".

"Acho que houve uma americanização puritana de um termo que sempre teve significado claro no Brasil, como referência à representação da sexualidade no cinema. ´Sexo Explícitono período de reabertura saindo da ditadura em 1980 eram os filmes que tinham imagens de sexo real (hard core, penetração, etc). Com a chegada dos multiplexes de grupos estrangeiros e americanos nos anos 90, gradualmente a ´censura 18 anos que sempre foi vista com naturalidade no Brasil passou a ser combatida, adquirindo um certo estigma para o filme. E de anos para cá, percebi o uso cada vez maior do termo ´sexo explícitonão mais como ele sempre foi usado no Brasil (sexo real filmado), mas como é usado nos EUA (explicit sex), sexo simulado soft core, me parece que uma revisão puritana da ideia de um filme ter alguma cena de sexualidade e nudez ser imediatamente descrita como ´explícita (imagino que o bom seria não ter, ficar subentendida, implícita?). Ver que os órgãos federais de classificação etária adotam esse termo em 2024 para descrever filmes onde o sexo obedece a simulações comuns de sexualidade me faz pensar que termo seria aplicado a filmes como ´Calígulaou ´O Império dos Sentidos (que inaugurou o aviso/slogan publicitário ´sexo explícito)? ´Pobres Criaturas tem sexo explícito, como a imprensa há pouco estampou em manchetes?", escreveu o cineasta.

A provocação do diretor faz sentido. Eu já estava chocado com o estigma que se criou nas redes com "Pobres criaturas", tanto que nos EUA, país puritano por formação, a produtora e atriz Emma Stone teve que ir a entrevistas e às redes para explicar que estava à vontade com o papel de uma mulher sexualizada e que as cenas eram necessárias para contar a história e as descobertas da personagem Bella Baxter.

No Twitter existe um movimento, formado por jovens e não por beatas ou tiozões de zap, que critica fortemente cenas "desnecessárias" de sexo em filmes. Trata-se de um mérito que me recurso a discutir. Se roteirista e diretor criaram a cena e os atores toparam filmar, então pronto, necessária ou não ela é válida. Mas é preciso dizer que cenas de sexo ajudam, sim, a contar histórias, motivações de personagens, condução da trama, isso quando o filme nem si não aborda sexualidade como tema principal ("Henry e June", "9 semanas e meia de amor", "Intimidade", "Lua de fel" etc.)

Porém se essas idiossincrasias de redes sociais parecem um espelho do tempo, já que o mundo inteiro parece estar "encaretando", a verdade é que no Brasil existe um puritanismo fabricado em laboratório e usado como ferramenta política com dividendos eleitorais para quem dele faz uso. Comecei a abordar e debater esse tema ainda em setembro de 2017, quando a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, em cartaz no Santander Cultural, em Porto Alegre, foi cancelada após onda de protestos do MBL e grupos evangélicos acusado a exposição de " blasfêmia contra símbolos religiosos e apologia à zoofilia e pedofilia". O cancelamento da mostra (270 trabalhos de 85 artistas que abordavam a temática LGBT, questões de gênero e de diversidade sexual) mostrou a força do movimento conservador em pela era Temer, o golpista, e mostrou à extrema-direita os caminhos a percorrer na "guerra cultural" que deu sua contribuição para eleger Jair Bolsonaro no ano seguinte.

Agora em pleno 2024 com governo Lula esse neopuritanismo à moda brasileira ataca outra vez, em mais uma tentativa de mostrar força, tendo a literatura como vítima da vez. Há pouco mais de um vez uma escola de um município do Rio Grande do Sul proibiu a leitura pelos alunos adolescentes do romance "O avesso da pele", de Jeferson Tenório (um dos melhores e mais premiados romances brasileiros dos últimos anos) por detectar nele "termos de baixo calão e pornografia" descontextualizando trechos importantes da obra que denuncia o racismo estrutural. Em seguida, como nos movimentos organizados, fois vez de secretarias e escolas dos estados do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul proibirem a circulação do livro, que havia sido aprovada pelo maior programa de distribuição de livros para escolas públicas do país, o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), que conta com avaliadores de alto nível.

Paralelamente, um dos mais prestigiados prêmios de literatura do país, o Sesc de Literatura, resolveu reformular as suas regras, e paralisar a promoção dos vencedores (prevista no edital) porque o professor e escritor Airton Souza leu um trecho de “Outono de carne estranha”, romance de sua autoria vencedor da edição de 2023 do prêmio, na casa do Sesc em Paraty durante a Flip e o trecho escolhido descreve uma cena de sexo entre dois garimpeiros e a leitura teria causado “desconforto” à plateia.

Censura nos dois casos, um contra um livro que aborda racismo e outro contra um romance que aborda homossexualidade. Nada mais extrema-direita do que querer uma arte que não debata preconceitos nem sexualidades, no molde do que pensava Roberto Alvim, secretário do governo Bolsonaro em 2020 que em em pronunciamento que foi ao ar nas redes sociais imitou trechos de um discurso do ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. Disse Alvim: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa […] ou então não será nada”. Assim como o nazismo queria uma arte "limpa", o bolsonarismo, pegando carona no movimento neopentecostal que até hoje o sustenta, também clama por uma arte que priorize "o belo, o heroico, motivos como Deus, família e pátria", enfim.

Esse neopuritanismo é perigoso, primeiro porque ele institucionaliza a censura e a eliminação de maneiras diferentes de produzir arte e de pensar. Segundo porque o passo seguinte ao se condenar obras de arte é perseguir seus autores, ou seja, as pessoas. Claro que em tempos de governo Lula e com o STF alerta contra movimentos antidemocráticos, os novos inquisidores têm menos margem de ação, mas eles tentarem esticar limites e sempre lançarem balões de ensaio é algo que preocupa. No livro “Herói mutilado: Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura”, da jornalista Laura Mattos, a autora lembra que na época da ditadura militar, como nos dias de hoje, a censura lança suas garras em nome de “boas causas”. Segundo Mattos, o próprio Dias Gomes temia que, de tanto assistirmos a episódios de censura, acabássemos, todos nós, censores: “Quando passo pelos porteiros da TV Globo, já temo que um deles me chame de lado e diga: ´Olhe, vi no videotape aquele episódio. Acho que você deve mudar aquela cena, aquilo não passa`, relatou o autor em uma carta destinada a Boni, então diretor da TV Globo. Segundo a autora, o clima daquela época de terrorismo terminava por moldar o processo criativo”. Como a cadela do fascismo está sempre no cio, como vaticinou Bertold Brecht, precisamos todos ficar alertas contra a censura e mesmo a autocensura. E que encaremos esse neopuritanismo atual como algo planejado, com método e de potencial altamente perigoso, já que serve a uma causa política. E rende votos ("temos que proteger nossas crianças"), infelizmente

PS: "O avesso da pele" e "Outono de carne estranha" são dois livros maravilhosos e fortes. Recomendo muito a leitura. Assim como "Pobres criaturas" é dos filmes mais impactantes que assisti nos últimos tempos.

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