A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos foi criada no dia 4 de dezembro de 1995 ( Lei nº 9.140) no primeiro ano de governo de Fernando Henrique Cardoso. Foi instalada no dia 6 de janeiro de 1996, com o objetivo de esclarecer violações e responsabilizar o Estado brasileiro por crimes o qual “ reconheceu como mortas dezenas de pessoas que, em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, encontravam-se desaparecidas”.
Entre os seus objetivos o de “proceder o reconhecimento de pessoas desaparecidas por terem participado ou terem sido acusadas de participação em atividades políticas, faleceram, por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas e localizar os corpos de pessoas desaparecidas no caso da existência de indícios quanto ao local de ocultação ou sepultamento”.
E não apenas a localização de corpos como a reparação por meio de indenizações.
Trata-se de um trabalho complexo, longo e que requer compromissos dos governos federais e mesmo considerando os três governos petistas (2003 a agosto de 2016) e o que foi feito, ainda há muito a fazer. Nesse sentido é importante registrar que nos governos de Michel Temer e especialmente no de Jair Bolsonaro, houve um grande retrocesso. Os pedidos de reparação de danos causados na ditadura militar foram sistematicamente negados entre 2017 e 2022, governos com expressiva e fundamental influência militar.
E culminou no dia 30 de dezembro de 2022, em mais um “legado” do governo Bolsonaro quando foi publicado no Diário Oficial da União o relatório final que levou à extinção da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Político. Como disse o Memórias da Ditadura: “O encerramento de seus trabalhos, feito às pressas, torna evidente a efetividade de seu papel em revelar os agentes da violência do Estado brasileiro”. (https://memoriasdaditadura.org.br/comissao-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicos/).
Da mesma forma ocorreu com o esvaziamento da Comissão da Anistia. A concessão de anistia prevista na Constituição de 1988 foi regulamentada pela Lei n° 10.559, de 2002, que prevê reparações morais e econômicas aos anistiados (“Podem ser anistiadas as vítimas de perseguição, atos de exceção e arbítrio, ou que tenham sofrido violações de direitos humanos no período que vai de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988”).
A Comissão foi criada subordinada ao Ministério da Justiça e constituída por sete integrantes na qual o governo indicava quatro e já no início do governo de Bolsonaro, a comissão passou a ser vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e mudou a composição, nomeando aliados e se tornando aparelhada por militares. Não por acaso, entre 2019 a 2022, rejeitou praticamente todos os pedidos de anistia. De 4.285 processos julgados entre 2019 e 2022, 4.081 foram rejeitados, ou seja, 95% dos pedidos analisados (https://www.metropoles.com/brasil/dominada-por-militares-sob-bolsonaro-comissao-acumula-pedidos-de-anistia).
Com o fim do governo Bolsonaro, no governo Lula, a Comissão de Anistia foi recomposta logo no início, em 17 de janeiro de 2023, e retomou as atividades no dia 30 de março, dando continuidade a norma que estabelece a análise de requerimentos coletivos de anistia e a exigência de pedidos de desculpas em nome do Estado brasileiro em casos de deferimentos. Segundo Nilmário Miranda, chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade a quem a Comissão de Anistia passou a ser vinculada, teve seu papel desvirtuado nos últimos anos, em especial durante o governo Bolsonaro e que se trata agora de reconstruir sobre escombros as políticas de reparação dos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura.
A comissão tem como missão principal conceder anistia política, exclusivamente, a perseguidos pelo Estado brasileiro no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988 e deve rever casos negados especialmente no governo Bolsonaro.
Em julho de 2023, uma sessão plenária a Comissão de Anistia analisou quatro requerimentos relacionados aos pedidos de anistia política referentes às irregularidades cometidas durante o regime militar para Celso da Rocha Miranda (post mortem), Antonio Pereira da Mata (post mortem), Vicente Primo de Oliveira e Adail Ivan de Lemos aos quais foram concedidos, por unanimidade, anistia política e oficializou pedidos de desculpas do Estado brasileiro.
E no dia 2 de abril de 2024, a Comissão, também por unanimidade, concedeu uma inédita reparação coletiva, ao analisar os documentos apresentados pelos povos indígenas Krenak (norte de Minas Gerais) e Guarani-Kaiowá (da Terra Guyrakorá, em Mato Grosso) que acusaram o Estado brasileiro de cometer diversas violações dos direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985). Uma matéria publicada no site do Mídia Ninja no dia 2 de abril de 2024(Comissão de Anistia julga reparação inédita a indígenas, ignoradas no governo Bolsonaro) afirma que “ Segundo estimativas da Comissão Nacional da Verdade, durante o período de 1946 a 1988, cerca de 8.350 indígenas foram mortos. Esses casos, que envolvem a expulsão dos povos de seus territórios ancestrais, foram inicialmente negados pela então ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, durante o governo de Jair Bolsonaro” (https://midianinja.org/news/comissao-de-anistia-julga-reparacao-inedita-a-indigenas-ignorada-no-governo-bolsonaro/). Em relação ao povo Krenak, ver o documentário Guerra sem fim: resistência e luta do povo Krenak, baseado nos depoimentos de integrantes do povo Krenak ao Ministério Público Federal entre maio e agosto de 2014, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=DfkGVfkJpAM.
No editorial Conciliar não é esquecer de 31 de março de 2024, o jornal O Estado de S. Paulo, insuspeito de qualquer viés de esquerda (foi um dos jornais da grande mídia, como o Globo e a Folha de S. Paulo que apoiou a ditadura) afirma: “Já passou da hora de um melhor ajuste com a história, necessidade ampliada com as sequelas deixadas pelo 8 de Janeiro. As investigações já demonstraram a inegável conivência e até mesmo entusiasmo de alguns militares com o golpismo bolsonarista. Se é verdade que não se pode julgar as Forças Armadas pelo comportamento de alguns poucos, estimulados nos últimos anos por Jair Bolsonaro – um mau militar, como qualificou o general Ernesto Geisel –, também é verdade que o bolsonarismo intoxicou os quartéis com a fumaça do golpismo” e defende que o presidente Lula reabra a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos “importantíssima para levar o Estado brasileiro a ser responsabilizado pela contumaz violação de direitos humanos por seus agentes durante a ditadura militar”, com o entendimento de que conciliação e anistia não significam esquecimento, além da necessária responsabilização de quem cometeu crimes.
No governo Lula, Silvio Almeida, o ministro dos Direitos Humanos, no início de sua gestão, afirmou que pretendia discutir a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, o que ainda não ocorreu, passado um ano e três meses.
No dia 6 de março de 2024, o Ministério Público Federal, no Distrito Federal, recomendou ao governo federal em documento encaminhado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania que reinstale em 60 dias, no máximo, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, prescrevendo “a continuidade dos trabalhos da comissão especialmente em relação ao reconhecimento de vítimas, busca de restos mortais e registros de óbito. O órgão também orienta que sejam destinados recursos humanos e financeiros para o funcionamento da comissão, além de medidas que garantam a permanência da instância colegiada até que todas suas competências legais sejam finalizadas”.
E se refere ainda que os trabalhos da comissão “devem prosseguir para permitir a perfeita execução das condenações impostas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil” (https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-03/mpf-recomenda-reinstalacao-da-comissao-de-mortos-e-desaparecidos). Em 18 de dezembro de 1992 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução 47/133 na qual se refere à “proteção de todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados”. O artigo 1º. Declara que “todo ato de desaparecimento forçado constitui um ultraje à dignidade humana” e deve ser condenado “Como uma negação dos objetivos da Carta das Nações Unidas e como uma grave violação dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais”.
Nesse sentido, espera-se agora que o governo federal possa reinstalar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e como diz o referido editorial do Estadão “Esse sim, o caminho adequado para a exata compreensão da responsabilidade do Estado pela morte presumida de cidadãos que estavam sob sua custódia e para pôr fim à longa noite que ainda assombra e divide o País”.
É preciso enfrentar o que ocorreu no passado, refletir sobre o que foi a ditadura no país, suas causas e especialmente suas consequências. Não se trata de revanche por parte de suas vítimas, nem de vingança, mas de justiça. Há ainda muitas feridas, mas como cicatrizá-la sem se confrontar com o passado? Nesse sentido, a reinstalação e o desenvolvimento dos trabalhos da Comissão será um passo importante.