Antes que seja tarde
Natal, RN 30 de abr 2024

Antes que seja tarde

16 de julho de 2022
4min
Antes que seja tarde

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Um amigo me manda uma fotografia de uma das janelas do HUOL, cuja paisagem sempre me pareceu divinamente melancólica e eu lembro de um passado distante. Início dos anos 1990, época em que passeava os olhos por aquelas paisagens com certa frequência, por ocasião de sempre ir ter com uma pessoa querida que estudava por lá. A fotografia me remeteu a um sentimento que costumamos ter de que o passado é sempre melhor do que o tempo presente. Que a intensidade com a qual vivemos tais e tais fatos da vida se nos parecem melhores depois que passam. Será?

Mera ilusão. A memória é feita dos fatos em si e de nossas fantasias, provocadas por boas ou más sensações e sentimentos que estávamos vivendo naquele fragmento. Portanto, a memória tem um naco de realidade e grandes pedaços de nossas "verdades internas", constituídas de invenções, ilusões, desejos e percepções que fazem parte da nossa subjetividade. O tempo é um fragmento furtivo que está sempre escorrendo de nossas mãos. Um período entre um ponto e outro, com início e fim, que ora já passou, ora está por vir. Daí a ordenação do passado, presente e futuro. Atravessados por esses fragmentos, carregamos a capacidade - ou não - de dirigir nossas vidas, como se fosse um filme. Claro que é sempre mais agradável, olharmos para uma "película" que já passou do que prever como serão as próximas cenas. Porque isso exige trabalho. Viver dá trabalho! Ninguém está aqui a passeio.

O que é inegavelmente ingênuo é pensar que o que já passou era melhor do que vivemos agora. O agora é agora e logo em seguida não é mais! Mas é a única coisa palpável que temos. Passado e futuro são intocáveis. Pensar constantemente num passado maravilhoso é assentar os pés por sobre um tempo idealizado e uma tentativa de escamotear nossas frustrações do dia-a-dia.

Saindo um pouco das nossas subjetividades e adentrando no tempo corrente, e de nossa vivência social, fica difícil não termos nostalgia do que vivíamos no nosso país dez anos atrás. A onda de violência, fome, pobreza, fascismo, corrupção, intolerância e morte assombra nossos dias. E o medo traz raiva, e a raiva traz medo, numa espiral sem fim que nos sufoca. Sem a menor vocação para evocar a “Pollyanna Moça” que não mais habita em mim, ouso dizer que uma das poucas potencialidades que devemos nos ater – e exercitar - é a nossa capacidade de mudar. E isso não quer dizer que vamos mudar o tempo! Mas podemos mudar as perspectivas.

Como eu disse antes, nosso passado não era perfeito. As insatisfações de hoje podem ser usadas a nosso favor, assim como as fantasias de um tempo ido “maravilhoso” podem nos servir como exemplo, como combustível, nunca como uma prisão. O mais incrível que percebo no tempo presente é que muitas pessoas estão deixando o passado de opressão para trás e buscando sua voz, seu espaço, seus direitos.

Pessoas pretas, gordas, magras, pobres, com deficiência estão conseguindo um espaço de fala e de visibilidade impensáveis décadas atrás. Olhando sob uma outra perspectiva, quantos Genivaldos de Jesus não devem ter morrido por asfixia ou por outro tipo de abuso policial, sem que jamais ficássemos sabendo? Quantas mulheres, e até mesmo meninas, não foram vítimas de relacionamentos abusivos e de violência sexual e foram emudecidas pelo machismo, antes desses fatos que vierem a público nos últimos meses? Sempre existiu, mas nunca foi tão discutido. E isso é bom!

A visibilidade, a discussão pública de determinados temas e o descortinamento de atos ilícitos e institucionalizados no nosso país não devem ficar tão somente na denúncia vazia, tampouco serem banalizados. Ao invés disso, peguemos esses fragmentos de indignação e senso de justiça e sigamos rumo às mudanças que queremos agora! Grão por grão, pedrinha por pedrinha podemos construir um presente dentro do que é possível e não idealizado. É tudo o que temos, antes que seja tarde!

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