Um dia no “Caldeirão do Diabo”
Natal, RN 28 de jun 2024

Um dia no "Caldeirão do Diabo"

3 de fevereiro de 2019
Um dia no

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Um jogo de futebol de salão no "Caldeirão do Diabo", a Colônia Penal João Chaves. Meados dos anos 1970. Um time de adolescentes, 17, 18 anos, todos loucos por futebol, alguns alunos do saudoso Olinto Galvão, na escolinha do América, recebem um convite para enfrentar a equipe da penitenciária.  E lá foram os rapazes da Cidade Alta sob o comando de  Edival "Burro Preto".

Desculpem, mas se não escrever assim o "nome" de nosso treinador quase ninguém vai saber que se trata do homem que fundou o Independente, time onde jogaram craques como Lula Soberano, Marinho Chagas, Dênis, PPO, Tinho, Berg, Gelson,  Tôco,  Zé Carlos, Paulinho, Leandro, França, entre tantos outros.

Mas, voltando um pouco e explicando esse convite tão fora de propósito, já que, naquele tempo o "Caldeirão" guardava figuras como Vilarin, o monstro de Capim Macio; Severo, assaltante de alta periculosidade que, entre suas façanhas, chegou a  passar uma noite inteira agarrado ao tronco de um coqueiro, no topo, com a bala de um riflre alojada no ombro para escapar da busca da PM. Era o tempo de Telê, Gaspar, o chefe do clã dos Timbira, família da qual fazia parte o famoso "Ruela"; outro  famosão da época, era um tal "Mago", arquiteto do assalto ao Nordestão. E tinha Arnaldo, famoso atirador, assaltante e muitas outras figuras famosas da crônica policial. "Seu" João, policial civil, pai de um dos atletas, o famoso Toinho Nicotina, falecido recentemente, estava cumprindo pena na JC por agredir um advogado. E foi ele o nosso agente e intermediário para o confronto.

Toinho passou uns 15 dias tentando formar um time para esse embate. Poucos sequer queriam ouvir falar disso. Mas ele tanto insistiu, elogiou os "rapazes", advogou, enfeitou, que acabou despertando a curiosidade de um reduzido grupo de quatro jogadores e o treinador. Chegou o dia. E lá vamos nós. Pega ônibus direto para a distante Zona Norte, salta do coletivo, a partir daí, não sei meus colegas, mas comecei a sentir um friozinho na barriga. Toinho, que já havia visitado o pai várias vezes e até participado de alguns jogos na quadra, feliz, trigueiro, mais parecia que estava entrando no Palácio dos Esportes em dia de jogo festivo. Revista dali, revista dacolá, passamos pelos agentes da Lei e, a cada corredor atravessado o portão, enormes portões de ferro, era fechado com um estrondo. Não sei, mas tinha a impressão que ficaria preso naquela imensa masmorra. As celas tinham uma inhaca de môfo, bolôr e sujeira. Em cada uma que passávamos éramos saudados, sem falar nos pedidos de cigarro e dinheiro. O carcereiro, Assis, era esse o nome do cara grandalhão e mal encarado, dava porrada em quem colocava a mão para fora da grade ao mesmo tempo que gritava pra gente: "não dê nada a esses filadaputa não"!

Entramos numa cela mais apresentável, vamos dizer assim. Era do organizador-treinador-goleiro do time da prisão. O famoso Arnaldo. Até hoje lembro, estou vendo o rosto dele na minha frente. Cordato, simpático, gentilíssimo, uma "dama", mas só que esse moço tão agradável de seus 32 anos, mais ou menos, com  físico de atleta, já havia matado pelo menos uns seis em assaltos a mão armada. Ele mostrou o terno da seleção da casa, falamos amenidades e fomos encaminhados para a quadra, claro, sempre do lado do carcereiro bonzinho e soldados armados de fuzis.

O palco da partida. Sim, não posso deixar de dizer, nosso Toinho, que já havia jogado na prisão, muito bom de bola e firula, era ídolo. "O Filho de Seu João joga demais", diziam todos. E Toinho comandava como se fora um cicerone das atrações de um museu de horrores.

 - Aquele careca ali, matou a mãe e o pai-, e dava sua risada de hiena.

- Tá  vendo aquele ali, é desmoralizado aqui dentro, os caras chamam ele de "ladrão de pneu careca - e ia traçando o perfil dos sem moral e dos seus ídolos de "grandes feitos", os mais respeitados na cadeia.

O nosso grupo era formado, além de Toinho,  por Hélio Gavião (já falecido), figura de quem já falei várias vezes em textos; Pequeno da Cachorras (querido  amigo Fernando, já falecido), eu e Marcos Falcão. Faltava um goleiro. Edival, treinador, não foi convencido a completar o time. "Jogo não", firmou pé.

Imaginem quem Arnaldo arranjou para defender nosso time? José Vilarin Neto, "O monstro de Capim Macio". E lá veio ele, todo de preto, vestido a caráter, recebendo a maior vaia que já vi alguém tomar numa quadra.

Os presos, liberados para ver o jogo, faziam uma zoada ensurdecedora. Claro, em vários postos-chave policiais armados com fuzis vigiavam. Hoje eu fico imaginando: já pensaram uma rebelião naquele momento? Que loucura a nossa. Dona Toinha e "Seu" Sinedino nunca sequer sonharam que fui a esse show.

O jogo. Empolgante! Talvez um dos momentos de maior adrenalina de minha vida. A "casa" toda torcendo por nós, os forasteiros, contra os colegas de penitência. Só Vilarim destoava. "Esse frangueiro vai acabar com vocês, galeguinho", dizia um; "esse nojento tá comprado por um cigarro brejeiro", dizia outro. Ganhamos de 11 a 10. Acreditem, esse foi o placar. Vilarim era frangueiro mesmo, ou estava comprado. Os caras faziam festa a cada gol nosso, e execravam o assassino quando o time da casa marcava. Fim, festa.

Os caras passaram a me tratar como deus, até ganhei de Toinho em popularidade depois da partida.

A saída da prisão. A grande encenação. Recolhidos quase todos os presos. Os de melhor comportamento misturados conosco, conversávamos animados,  caminhando pelos corredores em busca do portão da saída. À essa altura, com tantos elogios e afagos, já não sentia nenhum tipo de aversão aos prisioneiros. Antes do principal ainda passaríamos por dois blocos fechados. No último, que dava acesso ao da saída para rua, Assis, o carceireiro, controla, passa Toinho, Hélio Gavião, Falcão, Pequeno, ficamos para trás, eu e Edival.  Nesse momento, surpresa. O nosso treinador vai passar e é barrado.

- Onde pensa que vai neguinho?, pegunta Assis. Edival, entre surpreso e assustado, responde já mudando um pouco de cor - eu sou do time, o treinador do time sou eu - diz com olhar suplicante.

O carceireiro, cara de poucos amigos, tripudia: - tá pensado que sou otário, vou engolir essa, volta, volta logo pra tua cela e deixa de onda...!

- Não, não... eu sou do time, pode perguntar aos menino - ao dizer isso olha desesperado na direção de Hélio Gavião e Toinho Nicotina. Os dois safados, sérios, nem olham na direção do coitado.

- Vamos, vamos, vamos - diz Toinho e vai saindo junto com Gavião, para desespero completo de nosso técnico.

- Olha aqui seu Assis, o meião do time da Cidade - mostra Edival ao careceireiro.

- Deixe de onda, o time daqui também tem desse meião, bora, bora, bora volta pra tua cela, porra, já disse! - rebate o homem da chave sem pestanejar.

E eu? Do lado de dentro ainda, vendo o pobre amigo ser cercado por vários detentos, já começava a, também, ficar assombrado, queria pedir para passar, mas não tinha coragem.

Edival, sem saber mais o que fazer, cinza de tão assustado, só conseguia balbuciar: - Hélio, Hélio, isso não é brincadeira que se faça...

O carcereiro repetia para que Edival voltasse para a cela, quase gritava. Nesse momento, para piorar e muito a situação de nosso querido treinador, surgiu lá de trás um outro presidiário que, acreditem, parecia a cópia, um pouco mais jovem, dele. O neguinho foi se chegando, foi se chegando, pôs a mão no ombro de Edival e disse:

- Bora irmãozinho, deixa de onda, num colou não, vamu voltar pra nossa cela, vamu!

Nem precisa dizer que nosso "Burrão" quase desfalece. E eu também. Nesse momento, "Seu" João, pai de Toinho, Pequeno e Marcos Falcão estouram na gargalhada, não conseguiram mais segurar.

Todo mundo só faltava se acabar de tanto rir, inclusive o sisudo dono das chaves do enorme portão. Para meu alívio, ele abre, a gente passa. Edival, ainda se recuperando, mira Hélio Gavião e repete: - Hélio, Hélio...

A armação de "Seu" João, Toinho e Hélio Gavião rendeu meses de gargalhadas, e ainda hoje rende, nas esquinas de nossos encontros. No entanto, eles dizem que a "participação especial" do "irmãozinho" de Edival não foi combinado.

E foi assim.

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