A fome
Natal, RN 7 de mai 2024

A fome

24 de junho de 2022
4min
A fome

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Josué de Castro foi um médico e geógrafo baiano que ficou conhecido internacionalmente por ter escrito a obra Geografia da Fome no ano de 1946. Livro clássico, já traduzido em 27 idiomas, nele o autor desvela a obscuridade do quadro trágico da fome que assolava o país do imediato pós-segunda guerra. Com habilidade ímpar, Castro enfatizou as origens socioeconômicas da tragédia da fome e denunciou as explicações deterministas das elites tupiniquins que naturalizavam este quadro, justificando a seca do Nordeste e a indolência da população como fatores para aquele quadro social brasileiro.

Ao contrário, para Josué de Castro a fome era fruto da dominação do homem pelo homem, das escolhas das elites na condução da política e da economia do país. Numa de suas passagens clássicas, Castro afirma: “Fome e subdesenvolvimento são uma mesma coisa e o subdesenvolvimento é produto da apropriação injusta da abundância de recursos da natureza”.

No ano de 2014 a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação da Agricultura) certificou o Brasil como sendo mais um país que havia saído do mapa da fome. Conforme a agência da ONU, iniciativas como o Programa Bolsa Família e estratégias de Agricultura Familiar haviam levado a população mais vulnerável a consumir 1200kcal diárias que é considerado o mínimo necessário para que uma pessoa esteja devidamente alimentado.

Infelizmente, o Brasil voltou ao temido Mapa da Fome no ano de 2018 e, no ano de 2020 registrou-se que, ao menos 55,2% da população brasileira estava convivendo numa condição de insegurança alimentar. Conforme pesquisa da Rede Penssan, o país regrediu para um patamar equivalente ao início da década de 1990.

Eu nunca passei fome, aquela fome que maltrata a mente, a alma e o bucho, porém ontem, após ter trabalhado três turnos estava faminto e então quis unir o útil ao agradável e parei num boteco para tomar umas cervejas e comer uns churrasquinhos, isso por volta das 22h20. Vendo uma partida de futebol percebi um pastorador de carros próximo a mim assistindo ao jogo e então eu lhe ofereci um copo de cerveja, o que eu teria feito com qualquer pessoa próxima a mim. Ele, educadamente, o recusou, mas disse “se o senhor puder e quiser pagar um churrasquinho com uma água eu aceito”.

Fiquei absolutamente comovido e, prontamente, o atendi. Enquanto o via se saborear com dois churrasquinhos, carne e língua, pensei no livro do Josué de Castro e a sua tese que o subdesenvolvimento que leva à fome é um produto das elites; pensei também nos 120 milhões de brasileiros que acordam cada dia e não sabem se irão se alimentar com o mínimo de 1200kcl até o final da noite; pensei, ainda, na exclusão social que são submetidos milhares de brasileiros por uma elite branca e racista, que ama o Brasil do cartão postal quando está em Paris, Londres, Nova Iorque ou Lisboa.

A partida de futebol já não era importante, e se tornou menos importante ainda quando lembrei de estatísticas que apresentei para meus alunos em umas das minhas aulas: oito brasileiros possuem a mesma renda de 100 milhões de brasileiros, 62 brasileiros bilionários figuram na lista da Forbes, a venda de carros Porsche disparou no país, a espera para a compra de helicópteros chega a 20 meses devido a grande procura pela aeronave, mercado imobiliário de luxo cresceu 81%, investimento financeiro brasileiro no exterior bateu recorde...todas essas informações são relativas ao ano de 2021, no auge da pandemia de COVID’19...

De repente, tudo isso estava materializado num corpo de meia idade, num corpo magro, maltrapilho, sujo, feio para os padrões estéticos e, é claro, mais claro do que água cristalina, num corpo negro.

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