O fascismo é (ainda) uma ameaça no Brasil?
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O fascismo é (ainda) uma ameaça no Brasil?

22 de julho de 2023
10min
O fascismo é (ainda) uma ameaça no Brasil?

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Mesmo com a derrota eleitoral de Bolsonaro, é possível afirmar que o fascismo ou o neofascismo foi derrotado ou ainda permanece como um ameaça no país? Historicamente o fascismo não foi um fenômeno circunscrito aos anos 1920/30. Rob Simen, ensaísta e filósofo holandês no livro O eterno retorno do fascismo (Editora Bizâncio, Lisboa, 2012), ao constatar o crescimento da extrema-direita na Europa e em outros continentes, afirmou naquele momento (2012) que “o fascismo bate de novo às nossas portas, mas nos recusamos a vê-lo e chamá-lo pelo seu nome”.

Desde então movimentos fascistas ou neofascistas e governos autoritários (que criam as condições para sua existência), cresceram no mundo, incluindo o Brasil, em especial no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).

No livro A linguagem fascista, em especial no capítulo Bolsonaro fala às massas: do baixo clero político à presidência da República, Carlos Piovezani, professor de Linguística e Análise do Discurso da Universidade Federal de São Carlos (SP) considera que durante o governo Bolsonaro havia no país, se não propriamente um regime fascista, mas uma linguagem fascista (que antecede a sua pose e continua com ele no governo e depois da derrota eleitoral em 2022) que ajuda a criar as condições propícias para o fascismo Piovezani analisa a linguagem fascista nos discursos de Bolsonaro, e para isso reconstitui sua trajetória política (vereador, deputado federal e presidente da República) e o considera protagonista e incentivador de ações violentas “somadas a expedientes populistas”, alguém que passou de “político insignificante à porta-voz do pensamento reacionário” e salienta um aspecto relevante para compreendê-lo: que “encontra guarida no imaginário brasileiro” e tem, como ocorreu no nazi-fascismo, adesão de parcelas significativas da sociedade. No caso da Itália e Alemanha ambos os ditadores foram também considerados “mitos” nos respectivos países.

Os discursos (violentos, homofóbicos, misóginos etc.), a propaganda política (enganosa), de uma pretensa salvação nacional, para ter êxito precisam de estratégias eficazes e no caso do Brasil uma das estratégias era “verbalizar declarações polêmicas para garantir espaços na mídia”, o desprezo à democracia e suas instituições visando minar a confiança nelas e que foi favorecido por uma verdadeira ‘espiral do silêncio’ (do Congresso Nacional, com poucas e isoladas resistências, da justiça, dos meios de comunicação - mídia hegemônica etc., e até mesmo de setores progressistas - que o desprezava - e também a impunidade que o levou a continuar cometendo o que Piovezanei chamou de “atrocidades verbais e institucionais” antes e durante o mandato.

No livro Como funciona o fascismo – a política do ‘nós’ e ‘Eles’ (Editora L&PM, 2018) Jason Stanley analisa a permanência do fascismo e de como ele funciona, em especial o que chama de política fascista e seu interesse principal são as formas como se articulam as táticas fascistas enquanto mecanismos para alcançar o poder.

Ele afirma que a política fascista não conduz necessariamente a um estado explicitamente fascista, como no Brasil no citado caso, mas sua permanência (e ameaça) inclui algumas estratégias como “o passado mítico, propaganda, anti-intelectualismo, irrealidade, hierarquia, vitimização, lei e ordem (...) e apelos à noção de pátria”.

Estes aspectos podem ser encontrados no Brasil de então, acrescentados de outros como transformar os adversários políticos em inimigos, a repulsa ao diálogo, o culto da violência (expressa também no culto às armas), a intolerância, exploração de ressentimentos, incitamento do ódio (a pessoas e instituições), ataques à democracia, irracionalidade (teorias da conspiração, charlatanismo religioso e não religioso etc.,) e, importante destacar, a necessidade de se ter um “salvador” (um líder que fala para e em nome do povo, mas o excluí de qualquer participação, ou seja, serve apenas para ouvir e obedecer).

Stanley chama a atenção para os perigos da política fascista, da forma especifica como ela desumaniza segmentos (expressivos) da população, expressa na política do “nós” contra “eles” (o “bem” contra o “mal”) que limita a capacidade de empatia entre os cidadãos, levando à justificação do tratamento desumano, indiferença ao sofrimento alheio, especialmente de quem não concorda com o líder, sujeitos à violência etc.

E se historicamente, o fascismo chegou ao poder com uma política de ódio (nos discursos e nas práticas), em um cenário de descrédito de instituições como os partidos políticos, o parlamento (e seus representantes), é fato que isso continua a existir nas sociedades modernas, mesmo as de maior tradição democrática, como as europeias como se observa com o crescimento de movimentos e partidos de extrema direita.

Primo Levi, poeta e escritor italiano, que sobreviveu a um campo de concentração nazista afirmou que o nazismo teve êxito em um país de grande tradição cultural, civilizado, mas não impediu que a maioria da população aderisse cegamente a um desequilibrado, violento e assassino com Hitler.

A questão é: se ocorreu em países com larga tradição democrática, qual a possibilidade disso ocorrer em países de longa tradição autoritária como o Brasil?

Ao se referir aos líderes nazifascistas Primo Levi diz que foram obedecidos, seguidos e tornado “mitos” por milhões de pessoas e alertou que nada garantia que não pudesse ocorrer de novo, até porque seus apoiadores, os ressentidos, ignorantes (a maioria), os oportunistas etc., se tornavam indivíduos sem autonomia, sem capacidade de reflexão, que apenas seguem cegamente um líder, mesmo sendo um estúpido sem qualquer qualificação (e pior, sendo eles também vítimas de suas políticas).

Ao se analisar o surgimento e consolidação do nazifascismo um aspecto importante a ser ressaltado é que os respectivos ditadores ascenderam ao poder pela via democrática, ou seja, foram eleitos, da mesma forma que os governos de extrema direita hoje.

Na época, uma das interpretações era a de que o fascismo foi uma reação à perspectiva de ameaça revolucionária do movimento operário, mas como explicar sua permanência onde essa ameaça não mais existe? Uma resposta pode ser que o fascismo não deixou de existir e assume outras formas.

O fascismo é uma forma de Estado de exceção dentro do Estado capitalista, e historicamente decorreu de uma grave crise política e de representatividade, e enquanto essas condições existirem, como hoje, o fascismo continua sendo uma ameaça.

Nesse sentido, pode-se caracterizar a forma atual como neofascismo, embora não se possa aplicar a todos os partidos e movimentos de direita, mas especificamente aos de extrema direita. O sociólogo e escritor Michel Lowy designa como neofascistas “líderes, partidos, movimentos ou governos que tem semelhanças significativas com o fascismo clássico dos anos 1930, mas também algumas diferenças substanciais". Trata-se como ele diz de “fenômenos novos, que não são idênticos aos que conhecemos no passado”. (https://www.insurgencia.org/blog/michael-lowy-a-ascensao-do-neofascismo).

Idênticos ou não com os do passado, há quem considere o governo Bolsonaro como neofascista. É o caso de Armando Boito Junior, cientista político e professor da Unicamp no artigo A Terra é Redonda e o governo Bolsonaro é fascista, já explicitado no título. Para distinguir da experiência anterior (o fascismo clássico ou original) do neofascismo, diz que tanto o fascismo como o neofascismo são espécies do mesmo gênero.

Para ele, ao contrário do que pensam aqueles que recusam o conceito de fascismo ou de neofascismo para caracterizar o bolsonarismo “não é correto caracterizar o fascismo pela fração burguesa que deteve a hegemonia política no fascismo original – a grande burguesia monopolista italiana e alemã – e tampouco caracterizá-lo fazendo referências genéricas ao nacionalismo, ao militarismo e às práticas imperialistas característicos da política dos Estados fascistas originais”.

O argumento dele é que essas ideologias (e práticas) também estiveram ou estão presentes em democracias burguesas daquele e de outros períodos históricos. E que de uma mesma forma de Estado (democracia, ditadura militar ou a ditadura fascista) “são possíveis diferentes blocos no poder e, consequentemente, diferentes tipos de política econômica, social e externa”.

Outro aspecto relevante são as diferenças entre forma de Estado e bloco no poder. A ditadura fascista supõe a existência de uma ideologia e um movimento social, que são as bases de sua implantação (que não parece ser ainda o caso do Brasil). Por isso, ele afirma que embora o governo Bolsonaro não tenha sido um regime político fascista, mas uma ‘democracia burguesa deteriorada’, havia (e ainda permanece) um movimento com uma ideologia neofascista, e naquele momento, um governo no qual os neofascistas ocuparam a posição dominante no governo. (https://aterraeredonda.com.br/a-terra-e-redonda-e-o-governo-bolsonaro-e-fascista/).

O psicanalista Tales Ab’sader no artigo “Os maus modos do neofascismo brasileiro”, publicado no site da Carta Capital no dia 21 de fevereiro de 2020, afirma também que havia no Brasil características suficientes para qualificar o que se reunia em torno do bolsonarismo como neofascismo. Para ele “Nosso neofascismo diz respeito aos modos de nossa conversão própria da política em violência (...) ele se ordena e se unifica, por fim, ao redor do bolsonarismo (https://www.cartacapital.com.br/opiniao/os-maus-modos-do-neofascismo-brasileiro/).

Enzo Travesso, especialista em história política e intelectual do século XX, no livro As novas faces do fascismo (Editora Todavia, 2021) prefere usar o termo pós-fascismo. Para ele, no século XXI o fascismo não terá a face de Hitler, Mussolini ou Franco nem o terror totalitário e concorda com Theodor Adorno (1903-1969) que afirmou que a sua sobrevivência é potencialmente mais perigosa dentro da democracia – como tem ocorrido hoje – do que a sobrevivência das tendências fascistas contra a democracia.

E uma das estratégicas é não apenas o uso da violência, irracionalidade (teorias da conspiração etc.,) o medo, o pânico moral, como o anticomunismo, como se o comunismo fosse uma ameaça, mas usado como propaganda para enganar incautos e desinformados, com reconhecida eficácia em alguns países (como nos discursos da extrema-direita no Brasil, no qual até a Rede Globo virou comunista...).

Em relação ao uso (e abuso) dos termos comunista/comunismo, um fato recente de seguidores do ex-presidente da República ocorreu no dia 14 de julho de 2023 no aeroporto internacional de Roma contra o ministro do SFT, Alexandre de Moraes, no qual um dos xingamentos, segundo o próprio ministro, foi chamá-lo justamente de comunista. Ignorância e desinformação que não pode ser subestimada, afinal uma pesquisa do Datafolha divulgada no dia 1 de julho de 2023 revelou que 52% dos entrevistados (e sete em cada dez partidários do ex-presidente) acreditam que o Brasil pode tornar-se um país comunista com o governo Lula.

O fato é que em meio à difusão da ignorância, manipulações e fake news, do antipetismo e teorias conspiratórias, turbinados nas redes sociais, há um movimento neofascista no Brasil, antes, durante e depois do governo Bolsonaro, e permanece como uma ameaça à democracia. Nesse sentido, a derrota eleitoral de Bolsonaro foi também uma derrota do neofascismo e a vigilância sobre sua existência e o perigo de retorno deve continuar de forma permanente, pois como disse Umberto Eco no livro O fascismo é eterno (Editora Record, 2018), ele é eterno enquanto durarem às condições que o tornaram possível e por isso “nosso dever é desmascará-lo e apontar para cada uma de suas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo”. Assim, deveríamos aprender com as lições da história para impedir à repetição da tragédia histórica e civilizatória do fascismo.

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