Aporofobia: a aversão (e ódio) ao pobre
Natal, RN 15 de mai 2024

Aporofobia: a aversão (e ódio) ao pobre

10 de dezembro de 2023
9min
Aporofobia: a aversão (e ódio) ao pobre
Foto: Carlos Costa / CMC

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Adela Cortina, escritora e filósofa espanhola criou o termo aporofobia para definir o ódio aos pobres, indigentes, a aversão aos desfavorecidos. Em 2017 publicou o livro Aporofobia, el rechazo al pobre (Ediciones Paidós), publicado no Brasil em 2020, com o título Aporofobia a aversão ao pobre: um desafio para a democracia (Editora Contracorrente), com tradução de Daniel Fabre e prefácio de Jessé Souza. 

Ela é doutora honoris causa por diversas universidades, membro da Real Academia de Ciências Morais e Políticas de Espanha (primeira mulher a fazer parte da instituição), professora emérita de Ética da Universidade de Valência e diretora da fundação Étnor.

O termo  Aporofobia, como ela explica em uma entrevista à BBC Mundo em 2020 vem de duas palavras gregas: "áporos", o pobre, o desamparado, e "fobéo", que significa temer, odiar, rejeitar “Da mesma forma que "xenofobia" significa "aversão ao estrangeiro", aporofobia é a aversão ao pobre pelo fato de ser pobre”. Essencialmente, significa “a rejeição sistêmica à pobreza e às pessoas sem recursos”.

Para ela “Nomear a rejeição aos pobres permite-nos tornar visível esta patologia social, investigar as causas e decidir se concordamos que continue a crescer ou se estamos dispostos a desativá-la por nos parecer inadmissível”.

E não se trata de algo recente, sempre existiu, “está nas entranhas do ser humano, é uma tendência universal (...) enquanto atitude, ela possui um alcance universal: todos os seres humanos são aporófobos por raízes cerebrais, mas também sociais, que podem e devem ser modificadas, se é que levamos a sério ao menos estas duas chaves da nossa cultura, o respeito à igual dignidade das pessoas e à compaixão, entendida como a capacidade de perceber o sofrimento dos outros e de se comprometer a evitá-lo”.

Na Europa, demagogos de extrema direita e seus cúmplices se posicionam contra os imigrantes e refugiados. Eles não são bem-vindos em todos os países, e pior, com apoio de parcelas significativas da sociedade, que os percebem como ameaças, mas para Adele Cortina o ódio a imigrantes e refugiados não se deve ao fato de serem estrangeiros, mas por serem pobres. São os ninguéns a que se refere Eduardo Galeano no Livro dos abraços (Editora LP&M, 1991) Os ninguéns. Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. (...) Que não são seres humanos, são recursos humanos (...). Que não tem cultura,têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, tem número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata” (p.71)

Uma matéria publicada por Felipe Souza da BBC News Brasil em São Paulo em 6 de janeiro 2022 mostra como a aporofobia se expressa em algumas cidades do Brasil. Como em São Paulo e Florianólis, por exemplo. São objetos como pedras, grades e espetos de ferro que foram inseridos na arquitetura de diversas construções e equipamentos públicos com o objetivo de “evitar a presença e permanência dos mais pobres, principalmente os moradores de rua”. Em Florianópolis foram construídos pontos de ônibus com ferros em forma de cilindro e espaçado, que impede que alguém se deite.  Na época, foi denunciado e como teve grande repercussão, a Prefeitura de Florianópolis disse que trocaria todos os bancos 'anti-humanos' por novos modelos. Havia também várias placas espalhadas nos semáforos pela cidade, exibindo diferentes textos, tais como "A miséria compromete o nosso futuro. Não dê esmola" (até mesmo em igreja, proibindo que as pessoas dessem esmolas nas suas dependências).

Em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua que, desde 1986, promove trabalhos sociais voltados principalmente para a população em situação de rua na cidade de São Paulo que tem usado esse termo, aporofobia, denunciando e criticando procedimentos contra os pobres que moram nas ruas, o que ele chama de instalações hostis como uso de grades, lanças, cacos de vidro, pedras pontiagudas e outros visando impedir que pessoas em situação de rua os ocupem, que expressa à aversão às pessoas mais pobres.

Um dos principais objetivos do Padre Júlio Lancellotti é o de fazer com que os órgãos públicos retirem as instalações urbanísticas que impedem a aproximação e permanência de moradores de rua em locais públicos, como por exemplo, grades em bancos de praças para evitar que uma pessoa se deite.

Em 12 de dezembro de 2022, ele se reuniu com voluntários para quebrar a marretadas pedras colocadas na frente da Biblioteca Cassiano Ricardo, no Tatuapé, Zona Leste de São Paulo. As pedras pontiagudas já haviam sido instaladas pela Prefeitura em um viaduto na cidade, para evitar que o local fosse utilizado como abrigo por moradores de rua (ou população em situação de rua).

Esse tipo de instalação não é recente, ocorre não apenas em cidades brasileiras, mas também em grandes metrópoles e uma referência fundamental sobre esses procedimentos é o livro Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles de Mike Davis (1946-2022) publicado no Brasil em 2009 pela Boitempo. Considerado um clássico da sociologia urbana analisa a construção de Los Angeles (Estados Unidos), uma metrópole que, como São Paulo, junta riqueza e miséria ao mesmo tempo.  Segundo Davis a área metropolitana de Los Angeles, no final dos anos 1980, podia ser compreendida como a metáfora de um desajuste estrutural do sistema capitalista, que ampliou a desigualdade, com a especulação imobiliária, condomínios fechados, aumento da violência urbana e com a expansão do transporte individual.

O objetivo primordial era o da busca incessante e incondicional pelo lucro máximo, que como diz Ricardo Líseas na orelha do livro “'constrói espaços urbanos vazios de qualquer humanidade”, de evitar a presença de pessoas pobres, marginalizando, expulsando-as, em especial, migrantes e cujo desdobramento foi uma série de eclosões violentas na década seguinte, previsto por Mike Davi, como a conhecida revolta de Los Angeles de 1992 (https://observatoriodatv.uol.com.br/noticias/especial-retrata-conflitos-sociais-de-los-angeles-em-1992).

E um problema que está presente hoje. No Brasil, são milhares de pessoas morando nas ruas e em metrópole rica como São Paulo. E não por acaso. Desde 2015, o país voltou a fazer parte do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) e o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), publicado no dia 12 de julho de 2023 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), confirmou a piora dos indicadores de fome e insegurança alimentar no Brasil. E segundo os dados do Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil de 2022, mais de 33 milhões de pessoas não tinham o que comer (e milhares nem onde morar) resultado do desmonte das políticas públicas sociais que o país viveu nos últimos anos. Segundo o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate a Fome, Wellington Dias, com a implantação total do novo Bolsa Família e seus novos adicionais por crianças, gestantes e adolescentes até 18 anos incompletos, o Governo Federal – dados de junho de 2023 — retirou 18,5 milhões de famílias da linha da pobreza. É o caminho para que o país saia, mais uma vez, do Mapa da Fome.

Mas a pobreza, a fome, a miséria, as desigualdades e a aporofobia continuam. Não se resolve em curto prazo. Em relação ao combate a aporofobia, em São Paulo como desdobramento da luta do padre Júlio Lancellotti, a Comissão de Desenvolvimento Urbano, da Câmara dos Deputados, aprovou em novembro de 2021 o projeto de lei Padre Júlio Lancellotti, que proíbe a implantação de técnicas e construções que usem equipamentos para afastar ou restringir o uso de espaços públicos, principalmente por pessoas em situação de rua.  A chamada arquitetura hostil em espaço público, como bancos de praça, que eram retos, e foram substituídos por bancos ondulados justamente para evitar que pessoas possam durmam neles.

Em dezembro de 2022 foi aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado a lei 14.489/2022, Lei Padre Júlio Lancellotti que foi vetada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. Publicada no Diário Oficial da União do dia 22 de dezembro de 2022, precisou ser republicada após uma correção e foi promulgada e publicada no dia 11 de janeiro de 2023.

Uma das iniciativas importantes, criado com a ajuda do padre Júlio Lancellotti foi o Observatório de Pobrefobia/Aporofobia Dom Pedro Casaldáliga que realiza estudos, pesquisas para denunciar locais em todo o país que estejam adotando arquitetura hostil para afastar a presença de moradores em situação de rua. Em seu site publicou um mapa com locais em São Paulo com arquiteturas hostis (aos pobres) disponíveis aqui.

O tratamento desumanizado à pessoa em situação de rua ofende e viola a dignidade da pessoa humana. Diz Adela “Se em nossas sociedades o sucesso, o dinheiro, a fama e o aplauso são os valores supremos, é praticamente impossível fazer com que as pessoas tratem todas as pessoas igualmente, reconhecendo-as como iguais”.

Reconhecer como iguais numa sociedade tão desigual como no Brasil no qual milhões de pessoas vivem na extrema pobreza, além da importância (e necessidade) de acabar com o preconceito é fundamental uma mudança estrutural que possa efetivamente acabar com a pobreza, a fome, a desigualdade e a miséria,

A aporofobia viola a dignidade de todas as pessoas, exclui os pobres e a pobreza é evitável porque hoje há recursos suficientes, como a produção de alimentos no Brasil, para erradicar a fome. O problema central é a persistência das desigualdades.

Para Adele Cortina é preciso descobrir as raízes profundas da aporofobia, investigar suas causas, os caminhos pelos quais cada pessoa e cada sociedade possam entender e sentir que essa atitude é contrária à humanidade mais elementar, da necessidade uma educação moral acompanhada de instituições sociais, políticas e econômicas capazes de promover o respeito à igual dignidade de cada pessoa, enfim construir uma sociedade baseada na igualdade de valor das pessoas “educando no respeito pela dignidade de todas elas, e não só com palavras, mas também mostrando no dia a dia que nos reconhecemos e nos sentimos igualmente dignos”.

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