PL que equipara aborto a homicídio é retrocesso, defende advogada
Natal, RN 4 de jul 2024

PL que equipara aborto a homicídio é retrocesso, defende advogada

16 de junho de 2024
11min
PL que equipara aborto a homicídio é retrocesso, defende advogada
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Um retrocesso para os direitos conquistados pelas mulheres e também para o ordenamento jurídico brasileiro. É assim que a advogada e professora de Direito do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Brenda Camilli, define o PL 1904/2024, que equipara aborto a homicídio.

O regime de urgência do projeto foi votado na última quarta-feira, 12, numa votação relâmpago que durou 23 segundos. Isso significa que ele pode ser votado diretamente no Plenário, sem passar antes pelas comissões da Câmara. O texto equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio. A autoria da matéria é do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), co-assinada por outros 32 parlamentares.

O cenário tem mobilizado diversos movimentos sociais, principalmente de mulheres, que denunciam o PL como um retrocesso diante de décadas de luta pelos direitos de meninas, mulheres e pessoas que gestam.

“Para se ter uma noção, o aborto de uma gestação fruto de um estupro foi descriminalizado no Brasil há mais de 80 anos, quando entrou em vigor o Código Penal de 1940. Então, em outro momento histórico, quando as mulheres tinham bem menos direitos como um todo, elas já tinham direito à interrupção de uma gestação que fosse fruto de um estupro”, pontua Brenda.

Hoje, a lei permite o aborto nos casos de estupro, de risco de vida à mulher e de anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto). Atualmente, não há no Código Penal um tempo máximo de gestação para o aborto legal.

O objetivo do PL 1904/2024 é mudar o Código Penal para aumentar a pena às pessoas que fizerem aborto quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas. Neste caso, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples, que pode chegar a 20 anos, uma pena que supera a pena máxima do estupro, que chega a 10 anos.

“A gente não tem como afirmar que, no caso da mulher que realizasse o aborto após as 22 semanas, receberia a pena máxima de 20 anos. Mas a gente sabe que é uma possibilidade. E uma certeza é que a pena, no caso de homicídio, é regime inicial fechado, uma pena de reclusão, de 6 a 20 anos. Então essa mulher iria, realmente, ser cerceada da sua liberdade, ficar em regime fechado, o que seria extremamente violador – uma outra violência após tantas outras”, explica Brenda.

O que agrava o problema é que, em grande parte dos casos nos quais a gestação não é interrompida antes das 22 semanas, trata-se de meninas em contexto de violência sexual, muitas vezes dentro do próprio contexto familiar, explica Brenda.

“É sempre difícil denunciar uma situação de estupro, mas uma situação de estupro que gera uma gestação e a gestante não interrompeu antes das 22 semanas, normalmente são situações de violências repetidas, envolvendo familiares das vítimas.”

Em média, a cada quatro casos de violência sexual no Brasil, em três a vítima é criança ou adolescente. Além disso, em cerca de 70% das vezes, a violação acontece dentro da própria casa da vítima. Os dados foram mostrados por levantamento da Fundação Abrinq.

A advogada Brenda ressalta que, no caso de mulheres adultas, em geral, quando são vítimas de um estupro não cometido por um familiar, há uma maior chance de procurar ajuda médica e medicamentos que possam impossibilitar qualquer gestação. Um cenário que é mais difícil para as adolescentes.

“E agora, além de já ser difícil tomar providências quanto a isso, se a mulher não correr de forma imediata [para impossibilitar a gestação], pode receber uma pena maior que a do estuprador”, lembra a professora.

Um passo para outros retrocessos

Um dos pontos mais discutidos é o fato do texto, que altera o Código Penal, utilizar a palavra homicídio para se referir ao aborto. A linguagem utilizada é extremamente perigosa, aponta Brenda Camilli, e pode encaminhar outros futuros retrocessos.

“Na minha visão, o que se quer é, oficialmente, encaminhar para que, numa próxima alteração legislativa, em nenhuma situação se consiga mais realizar um aborto em uma gestação que tenha sido oriunda de um estupro”, ressalta. “As palavras, uma vez repetidas e alimentadas, vão se fortificando. Então, a partir do momento que se aprova um projeto de lei absurdo nesse nível, e ele passa a valer, um próximo projeto seria: ‘Então, se é equiparado ao homicídio a partir de 22 semanas, por que não é com 21, 20 semanas?’. É um retrocesso inimaginável aos direitos reprodutivos, aos direitos das mulheres, no século 21 a gente estar discutindo um projeto de lei que em 1940 seria absurdo.”

“Isso é, mais uma vez, uma forma de buscar criminalizar as mulheres”, complementa.

Brenda explica que a palavra homicídio, no texto, deixa claro que a gestação com 22 semanas, para os autores, é equiparada a matar alguém, apesar de que “Quando, no Direito Civil brasileiro, o nascituro tem expectativas de direitos. Ele não é, ainda, uma pessoa. Só é uma pessoa se nascer com vida. Porém, aquela mãe é uma pessoa, que deveria ter seus direitos plenamente respeitados”, defende ela.

O trecho em questão faz a advogada pensar que, em um futuro próximo, pode trazer outras consequências para gestantes, já que pode estar aberto a interpretações. “Em uma interpretação literal, esse projeto de lei pode ser ainda mais nocivo do que aparenta”, avalia.

Além disso, mesmo que não seja aprovado, só o fato do projeto estar sendo discutido já é nocivo às mulheres, ressalta Brenda.

“Essa discussão é muito nociva, porque várias pessoas vão sair dela – ainda que o projeto de lei não seja aprovado – com essa mentalidade mais fortificada, de que o aborto é um homicídio, o aborto é matar alguém. Vai sair daquele caminho mais meramente religioso, de algumas pessoas que misturam moral, religião e direito e vai para um caminho realmente mais jurídico. E isso é muito perigoso.”

Os interesses do conservadorismo

Segundo a advogada, o conservadorismo está mais preocupado em punir as mulheres do que os agressores e estupradores. E explica que os motivos de querer silenciar as mulheres e suas lutas têm a ver com o avanço das conquistas desse público no país, e cita alguns exemplos.

“O próprio código civil atual, que entrou em vigor janeiro em 2003, a Lei Maria da Penha em 2006, Lei do Femincídio em 2015… então os direitos femininos estão em ascensão, e isso não é interessante para uma parcela da população brasileira. Então me parece que é uma tentativa de parar os movimentos reais de igualdade entre e mulheres”, defende Brenda.

A sociedade que falha com as mulheres

Brenda entende, ainda, que o PL do estuprador viola a Constituição Federal, principalmente no que diz respeito à cidadania e dignidade da pessoa humana. Mas ainda o direito à vida, liberdade e igualdade.

“Esse projeto de lei falha totalmente em qualquer cuidado com a mulher, o corpo feminino e a sua dignidade. É tratar uma vítima como uma homicida, o que é muito sério.”

Para Brenda, o projeto falha também no tratamento igual entre homens e mulheres, em direitos e obrigações, que está prevista no art. 5º da Constituição.

“A gente vê, mais uma vez, que existe uma certa proteção ao masculino – nesse caso, agressor, que pode ser estuprador – e uma culpabilização repetida, reiterada quanto à mulher, vítima do estupro, tendo que passar, agora, a uma perseguição criminal equiparada a um assassino.”

Ela ainda explica que, em um cenário no qual o projeto de lei seja aprovado, o Brasil entrará em um patamar diferente no que diz respeito aos direitos humanos, que a advogada aponta também serem afetados.

“O Brasil vai se comparar a países que têm situações de retrocesso e nocivas, que não tratam, de fato, mulheres e homens como iguais.”

A advogada ainda ressalta que, se aprovado, o projeto de lei vai fortalecer o sentimento de culpa das mulheres, que já se sentem culpadas quando são violentadas.

“E vai fortificar muito as agressões contra as mulheres, e a ideia de que a mulher está em um patamar inferior ao homem”, afirma,  relembrando o caso de quando uma juíza impediu o aborto de uma menina de 11 anos que engravidou após ser estuprada em Santa Catarina, em 2022. A vítima descobriu estar com 22 semanas de gestação ao ser encaminhada a um hospital de Florianópolis, capital do estado.

Na ocasião, Justiça e Promotoria pediram para a menina manter a gestação por mais "uma ou duas semanas", para aumentar a sobrevida do feto.

“Esse PL vai, na minha percepção, fortificar muito mais a dificuldade da mulher de retomar a vida após a violência sexual, agora após a violência moral, física também e, principalmente, psicológica”, argumenta Brenda.

Aborto é questão de saúde pública, defende a advogada

O aborto, defende a advogada, deve ser tratado como questão de saúde pública. Para além da descriminalização, deve-se ter, ainda, um apoio estatal e multidisciplinar para a gestante que pode vir a abortar.

“O nosso cenário hoje, em vários países, inclusive no Brasil, em cenário no qual a gestação não é oriunda de um estupro, várias mulheres morrem tentanto abortar em clínicas clandestinas, em situações que são feitas de forma inadequada. Isso gera até um custo público. E essas mulheres que morrem ficam invisibilizadas, como se a vida daquela mulher não importasse para o Estado: só importaria a vida que viria a surgir após o nascimento daquele feto”, defende Brenda.

“Se a temática fosse tratada de forma correta, complexa, envolvendo realmente um debate público mais pleno, a gente poderia chegar numa situação de redução de números de abortos, que parece ser o que alguns alegam que querem, de proteger a vida. Mas a gente sabe que a proteção da vida não é o que essas pessoas querem, porque se quisessem, se preocupariam com a mãe, que está viva”, complementa.

Mais de 200 meninas deram à luz no RN no ano passado, mesmo com direito a aborto

Segundo dados da plataforma Integrada de Vigilância em Saúde (IVIS), do Ministério da Saúde, 219 meninas de 0 a 14 anos pariram no ano passado no Rio Grande do Norte. Só em Natal, foram 51 registros. A plataforma mostra o número de nascidos vivos, mas em todos estes casos o tipo de gravidez foi única. Esse número poderia ser ainda maior se os casos de óbito materno-fetal e aborto entrassem na conta.

Cada uma delas poderia ter tido direito ao aborto legal já que, de acordo com entendimento da Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o crime de estupro de vulnerável é presumido quando a vítima tem menos de 14 anos e não deve ser relativizado. Ainda nesse entendimento do STJ, são considerados irrelevantes, para a caracterização desse crime, o eventual consentimento da vítima, sua experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso com o agente.

“Foram 219 meninas que tinham direito ao aborto legal, por se tratar de estupro presumido, mas que levaram a gestação ao fim. Foram 219 meninas torturadas”, lamenta advogada Suelen Gil, do Observatório de Direitos Sexuais e Reprodutivos do RN.

Já em todo o Brasil, foram 13.909 casos de nascidos vivos de meninas de até 14 anos no ano passado.

Nos dados preliminares de 2024, até maio, 3.924 bebês nasceram de meninas abaixo de 14 anos. No Rio Grande do Norte, já são 65 registros.

No acumulado entre 2010 e 2023, ou seja, de 14 anos, a plataforma IVIS mostra que foram 6105 crianças nascidas de meninas abaixo de 14 anos.

Saiba+

Mulheres farão ato em Natal contra PL do Estupro; veja detalhes

PL que equipara aborto a homicídio: deputados do RN se posicionam

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.