10 anos da maconha medicinal no Brasil; o quanto avançamos no RN
Natal, RN 3 de mai 2024

10 anos da maconha medicinal no Brasil; o quanto avançamos no RN

22 de abril de 2024
14min
10 anos da maconha medicinal no Brasil; o quanto avançamos no RN

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Era um sentimento confuso. Yogi Pacheco sabia que estava cometendo um crime. Mas dormia com a consciência tranquila. “Tem alguém que você ama muito, sua mãe, e você vê que ela está definhando. Aí tem algo inaceitável para a sociedade, algo ilegal, mas que pode fazer a diferença na vida dela”, reflete Yogi, ao relatar o caminho que desbravou até conseguir oferecer um tratamento mais eficiente e com melhor oferta de qualidade de vida para a sua mãe, Márcia Pacheco, portadora de Parkinson, uma doença degenerativa e incurável.

Neste mês de abril, quando se completam 10 anos da Maconha Medicinal no país, a Saiba Mais traz uma reportagem especial sobre os avanços, novidades e desafios que envolvem o tratamento com cannabis no estado do Rio Grande do Norte.

Em 2006 mamãe foi diagnosticada com Parkinson. Existem diferentes tipos de sintomas. Tem gente que treme, gente que a musculatura fica dura, trava, não consegue andar. A noite, às vezes, é o período mais estressante. O paciente de Parkinson geralmente sonha muito, tem um sono fraco, grita. Mamãe teve todos esses sintomas. E depois de quatro anos de tratamento com drogas convencionais, uma delas a Levodopa, os remédios passaram a não fazer mais efeito”, descreve Yogi sobre a fase crítica que precisou encarar com sua mãe. “Os tremores não cessavam, ela ficou com incontinência urinária, falta de apetite, a depressão começou a bater forte e o déficit cognitivo avançava bastante a cada mês. Mamãe vivia dopada e estava definhando muito rápido”. 

Foi num vídeo do neurocientista Renato Malcher que Yogi ouviu pela primeira vez que havia pesquisas que apontavam que a cannabis trazia benefícios no tratamento do Parkinson. A partir desse momento, ele foi atrás de pesquisar tudo sobre o assunto. Era meados de 2010, não havia tratamento autorizado ainda no Brasil. O preconceito era gigante. Ele levou a ideia para a família, houve resistência de imediato. Porém, diante do avanço da doença e não tendo mais ao que recorrer, a família aceitou.

“Por desespero, surgiu a coragem de usar. Estavam mamãe e papai no sofá da minha casa. Eu não sabia extrair o óleo. Comprei uma flor com um amigo. Coloquei no cachimbo. Os tremores da minha mãe estavam muito fortes, precisei segurar o cachimbo para ela. E a reação foi imediata, impactante. Não estávamos preparados para aquilo. É emocionante lembrar dos olhos da minha mãe. Ela olhando para mim, para o meu pai. ‘Meu deus!, olhem isso!’. Os tremores simplesmente pararam”. 

Yogi Pacheco em palestra no Instituto do Cérebro, na UFRN.

Depois veio a dificuldade de lidar com o estigma da planta, a ideia de ser vista como maconheira, não entender a diferença do uso medicinal. Seguiram três anos com Yogi fazendo os cigarros de maconha para a sua mãe. Mas não sem uma metodologia de tratamento. Algo empírico mesmo. “Começamos uma metodologia de tentar achar a dose mais confortável. Cada trago, cronometrávamos os minutos para observar o efeito antes de chegar no estado entorpecente”, explica.

Passar para a vaporização foi outro processo de adaptação e experiências até encontrar a dosagem certa. Sua mãe sempre disposta, atenta, reconhecendo as melhoras na rotina. Yogi então aprende a fazer a extração do óleo da cannabis, o que permite ter maior controle sobre a dose de tratamento.

Percebemos que os tremores reduziram em cerca de 90%. Ela recuperou o apetite, melhorou o humor e o sono. A qualidade de vida dela melhorou completamente. Não só a dela, mas a de todos nós que estávamos ajudando”. 

Yogi, que hoje é professor de kickboxing nos Estados Unidos, cultivou maconha em Natal de maneira clandestina por quase oito anos para o tratamento da sua mãe. Ninguém sabia, nem seus amigos. A situação só mudou em 2017. Em uma audiência pública para debater a cannabis medicinal na Paraíba, ele expôs pela primeira vez sua história. Deu a cara a tapa, sabendo dos riscos.

Meu depoimento abriu portas. Me senti acolhido na Paraíba. Entrei em contato com pessoas que me ajudaram muito. E depois de quase dez anos de tratamento experimental, em casa, na clandestinidade, mamãe recebeu sua primeira prescrição médica”, orgulha-se Yogi.

Também em 2017, sua mãe, Márcia Pacheco, recebeu autorização na Justiça do Rio Grande do Norte para continuar cultivando maconha em casa para o tratamento. Em parceria, a Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRN ficou responsável pela medição do medicamento produzido. Yogi e Márcia foram os primeiros no Brasil a conseguir autorização judicial para cultivo de cannabis para tratamento da doença de Parkinson.

A ONG Reconstruir

A conquista de Yogi e Dona Márcia levou à criação da ONG Reconstruir Cannabis Medicinal, em Natal. O objetivo era difundir o tratamento. No Brasil, remédios derivados da maconha já estavam permitidos desde 2014. Porém, só existiam os importados no mercado, cujo preço é inviável para a maioria da população.

Para garantir acesso ao tratamento, a ONG cultivou, extraiu e distribuiu, clandestinamente, o óleo de cannabis para pacientes com Parkinson, Alzheimer, epilepsia, câncer e outras doenças em que já existiam pesquisas evidenciando os benefícios terapêuticos da planta. Era algo semelhante ao que a Abrace faz na Paraíba desde 2015, porém esta tem autorização da Justiça, e a ONG potiguar não.

Felipe Farias, presidente da ONG Reconstruir Cannabis Medicinal, em Natal.

A Reconstruir até tentou uma autorização na Justiça em 2018, mas a ação está suspensa. Segundo Felipe Farias, presidente da ONG, a Justiça teve um entendimento de que se tratava de uma empresa, e não associação, mesmo com posição favorável do Ministério Público. Enquanto isso, a Reconstruir segue em outras frentes de atuação.

A ONG dá acolhimento aos pacientes e oferece vários tipos de suporte. Por exemplo, auxílio na documentação burocrática e jurídica para quem deseja cultivar e produzir o próprio medicamento, orientação na judicialização contra os planos de saúde e o SUS para quem precisa ter acesso aos remédios importados, oferecem informações sobre a compra dos medicamentos disponíveis nas farmácias, ensinam a cultivar e extrair o óleo em casa.

A Luta na Justiça

De acordo com a advogada Carla Coutinho, embora não seja possível ter um noção precisa do número de pacientes com autorização judicial para tratamento canábico, estima-se que seja um contingente alto.

“Considerando que no Brasil mais de 430 mil pessoas fazem tratamento com cannabis, e só o gasto público no Nordeste foi de R$ 3,8 milhões apenas com o fornecimento de medicamento de cannabis em 2023, dá pra se ter uma ideia do quão grande é a judicialização desse tema. E ainda têm as pessoas que não judicializam e compram das Associações, a um preço mais acessível que o importado, um óleo na maioria das vezes com mais qualidade. Outra opção também é judicializar pelo cultivo da planta e extrair o óleo terapêutico. Neste último caso, estima-se que mais de 4.000 pessoas já possuam Habeas Corpus de cultivo no Brasil”, diz Carla Coutinho.

Para ter a dimensão de quantos pacientes fazem uso da cannabis medicinal no RN, a ONG Reconstruir, em parceria com a Delta9 e a startup Liamba, lançaram no dia 20 de abril uma pesquisa, no formato de questionário. O objetivo é entender quais são as necessidades dos pacientes, para assim poder lutar por mais melhorias no acesso ao tratamento. Podem participar pacientes com prescrição ou não, ex-pacientes, responsáveis por pacientes e cuidadores. Para saber mais sobre a pesquisa, clique aqui.

O gargalo médico

O primeiro passo para se conseguir o tratamento com cannabis é o encaminhamento médico. E é aí que está o maior entrave para os pacientes. Não é todo médico que sabe prescrever cannabis. “E, infelizmente, não é todo médico que tem interesse em estudar a cannabis. Ainda é uma área muito regada a preconceito. Nesse ponto, a gente continua muito atrasado”, comenta Felipe, que lembra que no início da Reconstruir precisou trazer médicos de Recife, São Paulo e Brasília para prescrever em Natal.

“Hoje temos médicos que prescrevem em Natal, infelizmente esse número ainda é pequeno. Então é outro trabalho que a gente tem na ONG, que é buscar a comunicação com os conselhos, não só de medicina, mas de farmácia, biologia, veterinária. É importante que todos tenham entendimento sobre o assunto”, argumenta.

Aumento das vendas nas farmácias

A Anvisa regulamentou a fabricação e venda de medicamentos canábicos em 2019. Desde então vem crescendo a busca por produtos nas farmácias. Conforme matéria da Revista Istoé, a venda mais que dobrou em 2023. O crescimento foi de 127% em relação ao ano anterior. E o faturamento do setor atingiu aproximadamente R$ 150 milhões, um aumento de 119% ante os R$ 65,2 milhões registrados em 2022.

Para Bruna Rocha, diretora da BRCann (Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides), que reúne 18 empresas do mercado brasileiro, o custo médio dos produtos canábicos caiu 40% em 2023, em relação aos últimos três anos.

Os valores dos medicamentos podem variar entre R$ 400 a R$ 3 mil. Felipe chama atenção, entretanto, que é importante perceber a miligramagem do produto. “Alguns são muito diluídos. Então, às vezes, esses mais baratos acabam deixando o tratamento mais caro devido a quantidade de doses necessárias para se tomar”, explica.

Um tratamento ainda restrito às classes altas

Felipe Farias conta que tem muito paciente que roda Natal inteira em busca de medicamentos e não encontra. “Isso em Natal, então imagine em outros municípios, onde o acesso médico à cannabis é mais difícil ainda”.

O que, na opinião dele, acaba sendo um problema de saúde pública “onde o paciente necessita de um tratamento que existe, mas por falta de acesso, tanto pelo SUS, quanto médicos que possam prescrever e produtos nas farmácias, ficam desassistidos”.

Estados buscam estratégias para distribuição de medicamentos à base de cannabis pelo SUS.

Pelo alto preço dos medicamentos nas farmácias (entre R$ 400 a R$ 3 mil), alto custo de cultivo e extração em casa, e a dificuldade de acesso à médicos que possam receitar o tratamento, percebe-se que a cannabis medicinal é uma realidade restrita às famílias com mais recursos.

A judicialização para que o SUS arque com os medicamentos é um caminho para aqueles que não têm como pagar pelo tratamento, porém os custos podem acabar sobrecarregando os cofres públicos - algo em torno de R$ 3,8 milhões foram gastos no Nordeste em 2023, conforme já dito pela advogada Carla Coutinho.

O Governo do Estado de São Paulo vai tentar um modelo novo de distribuição de medicamentos gratuitos pelo SUS. Começa em maio. Ao invés de comprar os produtos importados, mais caros, abriu uma licitação para compra dos medicamentos de indústrias nacionais, a custo de fábrica e não de farmácia. A ideia é expandir o acesso a o tratamento. Os investimentos podem chegar a R$ 100 milhões.

Outra alternativa seria o fortalecimento das associações de pacientes, como a Abrace, de João  Pessoa, que fabrica e fornece os medicamentos para os associados a preço de custo, sem fins lucrativos. É o modelo que a  Reconstruir busca autorização para atuar no Rio Grande do Norte. 

Outro caminho de barateamento seria pela Farmácia Viva, projeto do SUS para fornecimento de medicamentos fitoterápicos. Infelizmente, o RN não dispõe do projeto. Essa é uma luta que a Reconstruir já vem travando há três anos para conseguir.

“Tentamos junto à secretaria de Saúde do estado, e outros órgãos, fazer um projeto para implementação da Farmácia Viva no Rio Grande do Norte, no encanto, por ineficácia do governo estadual, não conseguimos nenhum resultado positivo, porque não houve interesse deles nesse assunto”, critica Felipe.

Aprovações das leis estadual e municipal

O Projeto de Lei 399/15, que regulamenta o cultivo da cannabis para fins medicinais e industriais, está parado na Câmara dos Deputados desde 2021, quando o deputado paranaense Diego Garcia (Republicanos) entrou com recurso após a aprovação da matéria em comissão especial da Casa. Cabe ao presidente da Câmara Arthur Lira (Progressistas-AL) colocar o PL para votação no Plenário.

Enquanto isso, no Rio Grande do Norte, desde 2022 existe a Lei 11.055, de autoria de Isolda Dantas (PT), que garante direito ao tratamento de saúde com derivados de maconha. A aprovação da lei na Assembleia Legislativa aconteceu com votação unânime e contou com a atuação da ONG Reconstruir. “Fizemos um trabalho para que todos os deputados tivessem conhecimento prévio sobre a matéria,  sobre como funcionaria, as indicações clínicas, foi um papel educativo”, lembra Felipe Farias.

E na última semana, a Câmara de Vereadores de Natal também aprovou legislação municipal, o PL 198/2023, do vereador Felipe Alves (União Brasil). O documento agora segue para sanção do prefeito Álvaro Dias (Republicanos).

Institudo Cérebro/UFRN foi a primeira instituição do Brasil a conseguir autorização da Anvisa para cultivar maconha com fins científicos.

O pioneirismo do RN nas pesquisas com cannabis

A partir da lei estadual, começaram a surgir vários desdobramentos, como o edital de pesquisa promovido pela Fapern, em 2022, com recursos de R$ 300 mil para financiamento de cinco projetos de pesquisa, seja para fins terapêuticos ou industriais.

Uma das pesquisas é da Reconstruir em conjunto com a startup Liamba. Trata-se de um protótipo de tijolo de cânhamo, o famoso hempcrete. A ideia é reaproveitar as fibras e caules descartados das plantações dos pacientes com habeas corpus do estado. O projeto está sendo desenvolvido no departamento de Engenharia da UFRN.

“Também estamos encaminhando projetos de capacitação para profissionais da saúde em relação ao uso terapêutico da cannabis”, informa Felipe. “Então essa lei estadual é uma lei que promove educação, promove saúde, reconhece o uso terapêutico da cannabis. Mas, infelizmente, ainda não pode ultrapassar a lei federal, que seria com relação ao cultivo”.

Também no Rio Grande do Norte, a UFRN foi pioneira ao conseguir, em 2022, autorização da Anvisa para cultivar a planta com fins científicos. Era algo que várias instituições pleiteavam desde 2013, porém coube a UFRN, por meio do Instituto do Cérebro, dar o pontapé no cultivo para pesquisa.

Segundo o professor Cláudio Queiroz, que coordena o setor, as pesquisas se dão na fase pré-clínica, ou seja, sem envolver testes com seres humanos. O objetivo é, inicialmente com uso de animais, avaliar o perfil de diferentes compostos da cannabis sobre doenças que atingem os humanos, como epilepsia, depressão e autismo.

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